Edição 274 | 22 Setembro 2008

A riqueza e a dignidade humanas reveladas na escassez inclemente

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Graziela Wolfart

Na opinião do professor João Roberto Maia, a obra Vidas secas destaca o drama do nordestino miserável, a tragédia social do Nordeste, como uma das expressões máximas da situação apartada dos pobres no Brasil

Ao analisar o tema da fome na obra Vidas secas, de Graciliano Ramos, o professor da Fiocruz João Roberto Maia, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, destaca uma questão intrigante: “Ao colocar em pauta a fome e a opressão da família de retirantes, o que vem para o primeiro plano no romance não é a fatalidade da natureza. O sofrimento não está naturalizado nos ciclos da seca e da chuva, mas as razões de sua existência devem ser buscadas em fatores de ordem social e econômica”. Para ele, “várias passagens de Vidas secas nos tocam e nos fazem pensar sobre o problema da fome de modo diferente e certamente mais intenso do que se lêssemos um relato historiográfico sobre o assunto”. E completa: “A leitura do romance de Graciliano faria muito bem a muitos que hoje concebem a fome exclusivamente ou quase segundo dados estatísticos”. João Roberto Maia é mestre e doutor em Letras Vernáculas, pela UFRJ, e professor de Literatura Brasileira da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro.

IHU On-Line - Em que sentido Vidas secas retrata a miséria e a fome como problemas que ferem a dignidade humana?

João Roberto Maia - Em Vidas secas, podemos apontar de saída dois traços que o singularizam entre os romances de Graciliano Ramos: é o único escrito em terceira pessoa e é também o único que eleva a plano de destaque o drama do nordestino miserável, a tragédia social do Nordeste, uma das expressões máximas da situação apartada dos pobres no Brasil. No romance, a habitual economia de palavras do velho Graça serve bem ao tratamento literário conseqüente do problema: a extrema redução da caracterização dos meninos retirantes, por exemplo, é um índice da situação desumanizadora em que vivem. Várias passagens de Vidas secas explicitam o embrutecimento de pessoas submetidas a situações de negação de direitos básicos, que têm de enfrentar a experiência medonha da fome. Logo a primeira referência à família dos retirantes Fabiano e sinha Vitória os qualifica como “infelizes”, que “estavam cansados e famintos”. No primeiro capítulo são muitas as referências à luta contra a fome. Nessas condições, Fabiano sente desejo de matar o filho mais velho que, exaurido, não consegue mais caminhar. Nas palavras do narrador, o pai sertanejo “[t]inha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça”. Ele chega mesmo a pensar em abandonar o filho naquele descampado. As reações brutais dão a medida da redução da dignidade humana a possibilidades mínimas. Por outro lado, uma das forças do livro está nos modos como revela a riqueza e a dignidade humanas daquelas pessoas submetidas ao cerco da escassez inclemente. Como bem observou Lúcia Miguel-Pereira,  Graciliano foi capaz de mostrar a “condição humana intangível e presente na criatura mais embrutecida”, a qual é complexa, nada tem de simples. Isto se verifica, por exemplo, nos dilemas e tormentos interiores de Fabiano e na relação entre compreensão do mundo e apreensão da linguagem pelos meninos. Digamos que para Graciliano as personagens miseráveis não se reduzem a seres unidimensionais, voltados apenas à sua sobrevivência, cuja vida interior não seja digna de nenhum registro. A proeza está na capacidade de construir personagens com complexidade apesar de ser débil a comunicação entre os viventes – debilidade que constitui uma das marcas do estado de destituição a que estes estão submetidos.

IHU On-Line - Qual a especificidade de Graciliano Ramos em retratar o sofrimento humano pela fome?

João Roberto Maia - Vidas secas é tido como um dos romances brasileiros da seca nordestina. Isto é verdade até certo ponto – ou, dizendo de outro modo, trata-se de uma verificação que não pode desconsiderar certa especificidade desse livro na tradição de nossas narrativas que põem o foco no fenômeno da seca. Em livro recente sobre o romance de 30, Luís Bueno apontou que, com a exceção do primeiro capítulo e apesar de as vidas serem secas, o ambiente em que se inserem e circulam os personagens não está sob a inclemência da seca. Por mais surpreendente que seja, segundo Bueno, “a maior parte do enredo se passa em tempos de fartura”. Portanto, ao colocar em pauta a fome e a opressão da família de retirantes, o que vem para o primeiro plano no romance não é a fatalidade da natureza. O sofrimento não está naturalizado nos ciclos da seca e da chuva, mas as razões de sua existência devem ser buscadas em fatores de ordem social e econômica. 

IHU On-Line - Na obra de Graciliano Ramos, em especial Vidas secas, qual a importância do trabalho para a superação da miséria e da seca?

João Roberto Maia - Não consigo ver na obra de Graciliano um sentido positivador do trabalho como parece estar subentendido na pergunta. Na parte final de Vidas secas, os retirantes alimentam a expectativa de uma vida melhor na cidade, de que certamente faz parte alguma nova atividade, outro tipo de trabalho para Fabiano, mas não se aponta necessariamente para a superação do estado de escassez. Para esclarecer melhor, lembremos que a interpretação mais freqüente do livro encarece o “círculo sem saída” em que se encerra a vida da família de sertanejos, a “eterna errância” que o primeiro e o último capítulos sugeririam, a “estrutura circular” a sinalizar o bloqueio à mudança para aquela gente. A meu ver, tudo isso está certo. No entanto, ao aludir à cidade grande, a que se vincula a esperança de Fabiano e sinha Vitória, o final do livro acena com a ampliação de horizonte das personagens, ao sonho de ir além da existência miserável de sempre. Por outro lado, a esperança é tênue, pois seu fundamento prático é muito frágil, o que não permite alijar o “círculo sem saída”, e torna irreal falar, na contracorrente da leitura consagrada, em encerramento otimista. Mas penso que esse remate tem certa ambigüidade, coloca-se entre a esperança e o bloqueio das circunstâncias.

O trabalho na literatura

Mas, por falar em trabalho, Graciliano ressaltou sua importância para a literatura. Ele criticou com vigor o déficit que via na literatura brasileira quanto à representação das condições materiais da existência. Num texto de 1945, “O fator econômico no romance brasileiro”, Graciliano aponta a quase completa ausência do processo social de criação e reprodução da riqueza nos romances de autores brasileiros, como se ninguém tivesse que ganhar a vida ou a labuta da maioria que a ganha não tivesse importância, como se a base material da vida não fosse assunto adequado à literatura e devesse estar, por definição, fora da alçada do romancista, ou ensejasse uma ordem de problemas “impuros” demais para merecerem tratamento literário. Tais apontamentos críticos não são motivados apenas pelo ânimo de apontar limites na produção literária brasileira. De modo conseqüente, são reparos que balizaram à criação artística do próprio Graciliano, cuja ficção, em sua maior e mais importante parte, já havia sido publicada àquela altura. Franklin de Oliveira  afirma, a meu ver com razão, o relevo que o escritor alagoano “confere à luta pela subsistência, ao problema do trabalho, das relações de trabalho”. Um romance como São Bernardo,  no qual a base material da vida está muito presente, dá a medida da importância que as posições críticas veiculadas no texto de 1945 tiveram para sua prática de ficcionista. Diga-se que a acuidade do tratamento que ele deu a tais problemas, em terreno literário, está ausente em outros escritores que, na senda da literatura engajada, diferentemente de Graciliano, fizeram dos trabalhadores protagonistas de seus livros.

IHU On-Line - Qual a importância da literatura no sentido de denunciar a acumulação do capital e as contradições do projeto de modernização do país?

João Roberto Maia - Como sabemos todos, a literatura perde em força artística (e, portanto, torna-se menor) se a denúncia que houver nela for muito direta, unívoca, panfletária. A literatura tem grande poder de conhecimento e para colocar em causa os rumos do país, o estado do mundo, os descaminhos da experiência contemporânea, mas o faz com os recursos que lhe são próprios e bem diferentes, por exemplo, dos de um programa partidário. Dito isso, exponho a seguir um pequeno trecho de um programa de estudo que venho elaborando e vai ao encontro, com exemplos de autores e obras concretos, da questão proposta. Paulo Honório, de São Bernardo, passa de trabalhador alugado a proprietário e utiliza a propriedade para maximizar seu poder. Sua trajetória ascendente faz da violência e da intimidação recursos indispensáveis. A centralidade do personagem estampa um modo de agir que leva tudo de roldão para chegar a seus objetivos. Ele é o agente empreendedor, empenhado em levar adiante um projeto desenvolvimentista. Entretanto, as contradições do processo de modernização capitalista no Brasil estão bem à mostra na trajetória de Honório, pois nela são inextricáveis força modernizadora e hábitos senhoriais. Sua ação encarna avanços consideráveis, mas se mantém vinculado ao padrão oligárquico antigo, à atitude senhorial. Sem reduzir o personagem à significação alegórica, digamos que ele é emblema da face brutal, com suas especificidades, do progresso brasileiro. Embora seja menos bárbara do que o enriquecimento de João Romão, de O cortiço, que se dá ainda num período de vigência da escravidão, a ascensão de Honório decorre de sua determinação obsessiva, do trabalho muito duro e da capacidade de deixar vítimas pelo caminho, três fatores que aproximam as trajetórias dos dois personagens. De modo bem mais discreto, esse perfil não é estranho a personagens de Machado de Assis  que enriquecem. Em suma, um dos interesses de uma proposta de estudo que parta da comparação de três romancistas brasileiros de um ponto de vista de esquerda e tenha curso histórico considerável, na medida em que abarca parte do século XIX e do XX, é tentar compreender como a literatura se situa relativamente aos processos de acumulação do capital e às contradições que pululam no curso da modernização do país.

IHU On-Line - Qual a importância do realismo de Graciliano Ramos ao retratar a dor da fome no sentido de sensibilizar as pessoas para esse drama?

João Roberto Maia - No texto de uma palestra proferida no curso organizado em 1988 pela Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, que visava refletir sobre os direitos humanos em diferentes áreas do conhecimento, Antonio Candido  afirmou que a literatura deve ser considerada como “direito universal” (“O direito à literatura”). O crítico destaca que, pela “fusão inextricável” de forma e conteúdo, de mensagem e estrutura organizada, as produções literárias podem enriquecer nossa percepção e visão de mundo. Para dar conta da relação proposta no referido curso, Candido não deixa de sublinhar que a literatura tem poder para ser “um instrumento consciente de desmascaramento” ao colocar na pauta situações de desrespeito aos direitos sociais, humanos, ou mesmo de ausência deles. E finaliza sinalizando que numa sociedade fundada na justiça a fruição da arte e da literatura deve ser garantida, para todos, como “um direito inalienável”. A literatura, além de ampliar o imaginário e dar prazer, refina nossa compreensão do mundo. Ela tem, portanto, uma dimensão de conhecimento que lhe é própria, proporciona conhecimento que não é óbvio, o qual não pode ser captado do mesmo modo pela experiência imediata ou mesmo pela mediação de outros discursos, tais como o historiográfico, o sociológico ou o psicanalítico. Nesse sentido, lembremos algumas formulações sobre a força das produções literárias e o tipo especial de conhecimento que proporcionam. Comecemos pela famosa carta de Friedrich Engels  a Laura Lafargue, de 13/12/1883, na qual o amigo do peito de Marx  afirma que a leitura de Balzac  lhe permitiu aprender mais sobre a história da França em certo período do que com todos os historiadores burgueses e pequeno-burgueses da época. Em O que é a literatura, Jean-Paul Sartre  examina qual poderia ser o objetivo da literatura, verificando de saída “que o escritor decidiu desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens”, pois, continua, “a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele”. Assim, várias passagens de Vidas secas nos tocam e nos fazem pensar sobre o problema da fome de modo diferente e certamente mais intenso do que se lêssemos um relato historiográfico sobre o assunto (embora eu não esteja defendendo aqui a superioridade da literatura sobre a historiografia, as quais cada vez mais se aproximam e se alimentam reciprocamente). A leitura do romance de Graciliano faria muito bem a muitos que hoje concebem a fome exclusivamente ou quase segundo dados estatísticos.

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