Edição 274 | 22 Setembro 2008

Josué de Castro desnaturalizou a fome

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Graziela Wolfart

Filha de Josué de Castro, a socióloga Anna Maria de Castro conta que cresceu ouvindo falar de fome desde a mais tenra idade, tornando-se fascinada pelo tema

Anna Maria de Castro é socióloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Começou a lecionar, em 1962, no Instituto de Filosofia de Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ. Influenciada por seu pai – o médico, professor, escritor, parlamentar e cidadão do mundo Josué de Castro, que desmistificou a fome como uma vontade da natureza e a conceituou como fenômeno social –, dedicou-se a estudar a relação entre educação e alimentação. Ao longo de sua carreira, Anna Maria trabalhou nos institutos de Nutrição (INJC) e de Estudos em Saúde Coletiva (IESC), além de outras unidades da UFRJ. Na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, ela lembra o convívio com Josué de Castro: “Foi por intermédio de suas palavras que pude reconhecer o quanto é difícil viver neste mundo de homens que são capazes de criar infinitas belezas, capazes tecnicamente de controlar a natureza, capazes de cantar a paz, mas, também, diversamente de outros animais que só atacam para saciar a fome, praticar atrocidades inomináveis contra seus semelhantes. São capazes de aprisionar, torturar e escravizar outros homens, produzir alimentos e não distribuí-los para todos, romper com o equilíbrio ecológico, poluir rios e mares, destruir florestas, consolidando a desigualdade, aumentando a pobreza tudo em busca de mais riqueza”. Anna Maria acredita que os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, se constituem “na melhor alternativa para o momento vivido pelo Brasil e sua ajuda é fundamental para que as famílias possam sobreviver com alguma dignidade.”

IHU On-Line - O que Josué lhe ensinou sobre o tema da fome, dentro de casa e por intermédio de suas obras? Em que medida a sensibilidade foi uma herança que lhe motivou a seguir os estudos sobre o assunto.

Anna Maria de Castro - Esta pergunta é recorrente, entretanto é com muito prazer que a enfrento. Meu pai, Josué de Castro, foi um homem intensamente dedicado ao seu trabalho, mas, sempre que lhe era possível, buscava o convívio familiar. Alimento, ainda hoje, passados muitos anos de seu falecimento, uma profunda e sentida sensação de tristeza, quando recordo o homem afetuoso com quem convivi e cientista incansável a quem admirei em razão de suas claras e entusiasmadas explanações feitas, quase todas as noites, em torno da mesa em que realizávamos nossas refeições. Discorria sobre suas descobertas, sobre suas propostas, que acreditava poderiam solucionar, se implementadas, parte dos problemas mais agudos da sociedade. Foi por intermédio de suas palavras que pude reconhecer o quanto é difícil viver neste mundo de homens que são capazes de criar infinitas belezas, capazes tecnicamente de controlar a natureza, capazes de cantar a paz, mas, também, diversamente de outros animais que só atacam para saciar a fome, praticar atrocidades inomináveis contra seus semelhantes. São capazes de aprisionar, torturar e escravizar outros homens, produzir alimentos e não distribuí-los para todos, romper com o equilíbrio ecológico, poluir rios e mares, destruir florestas, consolidando a desigualdade, aumentando a pobreza tudo em busca de mais riqueza. Cresci ouvindo falar de fome desde a mais tenra idade. A princípio como mera e atenta ouvinte, após como jovem interessada e finalmente como também cientista social, fascinada pelo tema e pelas idéias. Sem dúvida, sua trajetória vitoriosa no campo das ciências sociais foi decisiva para minha escolha pela sociologia. Já graduada e melhor preparada, pude ter a dimensão exata do valor de seus trabalhos científicos e do quanto poderiam ser decisivas, para o desenvolvimento de nosso país, as medidas por ele propostas. A repercussão da Geografia da fome (Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1946), sem dúvida seu mais importante livro, colocava o pensamento social brasileiro em destaque. Sua passagem pela presidência do conselho da FAO, posição que nunca tinha sido ocupada por nenhum brasileiro, ampliava seu prestígio internacional. Tudo me levou à sociologia, opção que jamais abandonei, embora tenha lecionado, vários anos, no Instituto de Nutrição da UFRJ, que hoje se denomina Josué de Castro.

IHU On-Line - O que caracteriza, de modo geral, a relação entre educação e alimentação?

Anna Maria de Castro - Josué sempre acreditou na ciência e na técnica como elementos propulsores do desenvolvimento. Ao longo de sua vida, exerceu várias atividades: médico, sociólogo, geógrafo, escritor, entretanto o magistério foi seu mister preferido. Tinha convicção de que a educação universal e de qualidade seria capaz de mudar o quadro de nosso país.

Não foi, portanto, sem razão que, em co-autoria com a escritora Cecília Meireles,  em 1932, escreveu A festa das letras, uma cartilha que ensinava a boa prática alimentar às crianças. Mais tarde, quando da criação dos restaurantes populares do SAPS,  por ele dirigido, fazia funcionar cursos para orientar os operários na busca de uma alimentação saudável. Foi também admitindo relações íntimas entre nutrição e educação que ajudou, com seus estudos, na criação da merenda escolar, prática até hoje presente em nossas escolas. O trecho que segue resume bem o pensamento de Josué sobre o papel da educação para os países subdesenvolvidos: “uma educação que liberte o homem, eis ao que aspiram os povos do Terceiro Mundo. E isto supõe uma pedagogia da liberdade que liberte da dominação da Natureza, mas também  da dominação de outros grupos humanos -  de todo tipo de dominação. Quer isto dizer que é preciso educá-los para que  se libertem  econômica, política e espiritualmente” (Josué de Castro - Estratégia para o Desenvolvimento Econômico- 1970).

IHU On-Line - Como a senhora vê os programas de transferência condicionada de renda, tendo em vista o cenário da fome em nosso país?O que significa essa ajuda para as famílias que sofrem a fome em sua pior instância?

Anna Maria de Castro - Creio que os programas se constituem na melhor alternativa para o momento vivido pelo Brasil e sua ajuda é fundamental para que as famílias possam sobreviver com alguma dignidade. É evidente que os programas não podem ser vistos como uma solução definitiva para o problema, entretanto, a fome é implacável e “quem tem fome tem pressa”, ensinava Herbert de Souza,  nosso saudoso “Betinho”. Josué, se vivo estivesse, entenderia a Segurança Alimentar como o corolário de suas inúmeras sugestões para o combate à fome. Como já afirmamos, é de sua inspiração o projeto que instituiu a merenda escolar, iniciativa que, sem dúvida, aumenta o índice de permanência das crianças na escola. Esta presença das crianças na escola hoje serve de referência para que as famílias continuem a receber a Bolsa Família.  Portanto, vejo que seu pensamento está presente em muitas das iniciativas adotadas pelo governo, nos dias que correm. Garantir, regularmente, alimento em quantidade e qualidade para todos sempre foi o que Josué mais desejava.
 
IHU On-Line - Qual a importância da obra de Josué de Castro no sentido de tratar a fome não apenas como vontade da natureza, mas como fenômeno social?

Anna Maria de Castro - Josué de Castro afirmava que a fome sempre existiu. O que denunciou, fato hoje plenamente reconhecido, foi a perspectiva de que seria ela um fenômeno social, criação do homem. Assim, novo não seria o fenômeno e sim o viés pelo qual se percebe sua trágica realidade, e foi a partir desta constatação que procurou criar uma teoria explicativa para o subdesenvolvimento, a pobreza e a miséria. Tentava modificar a história de seu país. Como outros cientistas brasileiros de sua época, conseguiu, a partir de uma autoconsciência da realidade social, encontrar o instrumental necessário para o estudo desta realidade. Esta foi uma visão peculiar e original para a época em que a fome ainda era considerada um fenômeno natural. Assim, podemos dizer que foi Josué de Castro quem desnaturalizou a fome. Ao desnaturalizar o fenômeno da fome, Josué transferiu para os homens a responsabilidade maior no seu enfrentamento. Ao afirmar que a fome, nas suas várias manifestações, decorria de opções adotadas pelos homens, evidenciou-se a necessidade da adoção de políticas públicas capazes de tornar efetivo e permanente o combate à fome. O conceito consagrado de Segurança Alimentar, que reconhece o direito de cada cidadão de ter alimento em quantidade e qualidade suficientes para sua sobrevivência, é prova cabal desta compreensão.

IHU On-Line - Em que sentido a fome mais sensibiliza? O que mais comove em relação ao drama da fome?

Anna Maria de Castro - “A fome é a expressão biológica do fenômeno econômico do subdesenvolvimento. A única coisa necessária para acabar com a fome é que os países do Terceiro Mundo possam ser independentes e trabalhar.” E, diante da impotência das grandes potências para resolver os problemas do mundo, Josué ironiza: “O traço mais trágico e característico da expressão sócio-econômica da América Latina é a fome de três quartos de seu povo, que não vivem com fome, mas na verdade morrem, continuamente, de fome. Não somente uma fome de alimentos, mas também uma fome de independência, de conhecimento, de verdade”. Estas duas passagens, constantes de um de seus livros, Adónde va la America Latina (1965), mostram como Josué via a fome na América Latina. Ciclo do caranguejo é outro de seus escritos, onde a realidade do mangue é tratada de forma contundente. Descreve a vida da família Silva que, iludida pela promessa de uma vida melhor na cidade do Recife, desceu do Cariri, tacada pela seca e se vê na condição de habitar o mangue. “Logo na chegada a família viu que a coisa era outra. Não havia dúvida que a cidade era bonita, com tanto palácio e as ruas fervilhando de automóveis. Mas a vida do operário, apertada como sempre. Muita coisa pros olhos pouca coisa prá barriga. O caboclo o Zé Luis da Silva não quis desanimar… Só havia uma maneira de desapertar: era cair no ‘mangue’… No mangue o terreno não é de ninguém. É da maré. Quando ela enche, se avoluma e se estira, alarga a terra toda, mas quando ela baixa, se esconde, deixa descobertos os calombos mais altos. Num deles, o caboclo Zé Luis levantou o seu mocambo… Agora, quando Zé Luis sai de manhã para o trabalho… os meninos vão pulando, abrindo a porta e caindo no mangue… com as pernas e os braços atolados na lama a família Silva está com a vida garantida. Zé Luis vai para o trabalho conformado porque deixa a família dentro da própria comida, atolada na lama fervilhando de caranguejos e siris”. Outras passagens da obra de Josué materializam a fome de maneira trágica e comovente. Entretanto, a mim, estas duas são bastante elucidativas.

IHU On-Line - Qual a importância da reforma agrária e do incentivo à agricultura familiar para contribuir no sentido de erradicar a fome em nosso país?

Anna Maria de Castro - Na minha visão, a má distribuição das terras produtivas em nosso país tem sido uma das razões para que não se erradique a fome de vez. Ao longo dos anos, temos desenvolvido uma agricultura de exportação. Em cada um dos ciclos econômicos, o Brasil caracterizou-se pela exportação de bens primários produzidos nos latifúndios ou nas grandes unidades da agroindústria. Estou convencida de se adotássemos, em grande escala, a agricultura familiar os resultados seriam outros. Para os estudiosos sobre o assunto, só poderemos reverter o problema, como o realizado em alguns países desenvolvidos, promovendo reforma na qual grande parte da população possa ter acesso a terra e aos insumos agrícolas necessários à produção de alimentos. 

IHU On-Line - Ter comida em abundância não é sinônimo de nutrição, é? Quais as diferenças entre passar fome e ser desnutrido ou mal nutrido?

Anna Maria de Castro - A compreensão de Josué do problema da fome contemplava duas vertentes. A primeira entendia que fome não é, necessariamente, a falta de alimentos e a segunda que a fome não é um fato natural. No primeiro caso, falava ele da alimentação inadequada, isto é, aquela onde são ingeridos alimentos que não possuem os nutrientes capazes de satisfazer as necessidades do organismo. Nutrientes estes responsáveis pela manutenção e equilíbrio da saúde. Assim, uma série de doenças que assolam as populações pobres, como o sarampo e a catapora, provocam a morte por conta da subnutrição das crianças, além de provocar, não raro, a obesidade. Com este raciocínio, ele contrariava o sentido clássico da palavra fome que a entendia apenas como a falta do alimento. Os estudos médico-sociais mais modernos demonstram que nenhum fator tem maior influência sobre o equilíbrio vital e manutenção dos níveis de vida que a alimentação. Assim, num mundo onde não se consiga obter condições de vida similares para todos os homens ao nascer, se produzirão conseqüentemente grandes contrastes nos futuros níveis de saúde e capacidade intelectual destas populações. Na segunda vertente, ele entendia que a fome não era um problema natural resultante das intempéries ou de causas sobre as quais o homem não mantinha controle, ao contrário, afirmava Josué, ela (fome) é produto das relações econômicas que se processaram em nosso país e que fizeram com que apenas uma pequena parcela da população tivesse acesso aos bens produzidos, portanto a fome decorre de ação do próprio homem.

IHU On-Line - Que outros tipos de “fome” mais incomodam o povo brasileiro?

Anna Maria de Castro - São inúmeras e graves as carências da população brasileira. Educação, saúde e saneamento são as mais marcantes. Recente pesquisa, citada pelo novo Ministro da Cultura, Juca Ferreira, aponta um expressivo número de municípios que não possuem um cinema. Mesmo nos grandes centros, é mínimo o número dos freqüentam teatros, museus e outros centros de cultura. Portanto, na realidade, quase tudo falta para a grande parte da população de nosso país. Infelizmente, ainda há fome de quase tudo.

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