Edição 272 | 08 Setembro 2008

Educação popular, José Martí e Chiapas: a pedagogia Latino-Americana

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Bruna Quadros

Cheron Zanini Moretti debate o tema no próximo evento Encontros de Ética 

Educação popular em José Martí e no Movimento Indígena de Chiapas: a insurgência como princípio educativo da pedagogia Latino-Americana é o assunto que será discutido no evento Encontros de Ética, promovido pelo IHU, no próximo dia 15 de setembro. Na entrevista que segue, concedida por e-mail, Cheron Zanini Moretti afirma que para compreendermos a relação educação-sociedade a partir de José Martí, é necessário localizá-lo na história da América Latina. Além disso, enfatizou: “José Martí, os zapatistas, o MST e tantos outros movimentos nos indicam que há muito por aprender, (re) inventar e construir neste caminho e que a defesa da educação é também prática radical de humanização.”

A palestrante possui graduação em História/Licenciatura e mestrado em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Atualmente, é professora tutora no curso de graduação em Ciências Sociais e no curso de pós-graduação em Coordenação Pedagógica: supervisão e gestão educacionais, modalidade de ensino a distância, da ULBRA Ead /pólo Escola Conquistadora-NH.

IHU On-Line - Quais os princípios da educação popular de José Martí , na tentativa de pluralizar e compartilhar os saberes? Qual a relevância destes princípios para o processo auto-formativo da sociedade?

Cheron Zanini Moretti - Para compreendermos a relação educação-sociedade a partir de José Martí, é necessário localizá-lo na história da América Latina. Imagine que, no final do século XIX, Cuba e Porto Rico eram os únicos países que não possuíam sua independência política em relação à Espanha e que havia toda uma ação (de avanço e de neocolonização) dos EUA em relação ao continente. Estavam presentes, em Cuba, todos os elementos do colonialismo europeu: o trabalho escravo, a monocultura, a pobreza nas colônias. O pensamento do revolucionário cubano, influenciado pelas idéias de unidade continental de Simón Bolívar , e as suas práticas estiveram sempre posicionados pela busca da nossa América livre, primeiro politicamente da Espanha, e depois economicamente dos EUA; porém, neste seu compromisso político-militante com os oprimidos havia uma forte combinação entre a educação para todos e um projeto de sociedade. O ideal latino-americano, para o libertador cubano, era o de “conhecer a sua realidade” e a história de seu povo para a se garantir uma autonomia cultural, econômica e política. Dizia ele que “resolver o problema depois de conhecer seus elementos é mais fácil do que resolver sem conhecê-los”, o que implicaria no “único modo de livrá-los [os países] de tiranias. Fazia, portanto, uma crítica a formação dos jovens “abastados” nas universidades européias que estando “míopes” não poderiam compreender e resolver as questões de seus países; pois ele compreende que se imita demais e que as soluções estrangeiras podem ser equivocadas/inadequadas para a realidade dos latino-americanos. Assim, diferentemente de Domingo Faustino Sarmiento,  estadista argentino, que acreditava num confronto entre a civilização e a barbárie, José Martí inverte a lógica afirmando que o confronto existente é entre “a falsa erudição e a natureza”. Percebe-se, portanto, uma valorização da mestiçagem, da auto-afirmação da América Latina, afastando qualquer aproximação com “complexos de inferioridade”. A escola para Martí, é a raiz das novas repúblicas, por isso defende o ensino obrigatório para um povo que quer ser governado pelos “filhos da pátria”, sobretudo através da instrução pública. Quando “todos os homens (sic) souberem ler, todos os homens saberão votar e como a ignorância é a garantia de extravios políticos, a consciência própria e o orgulho da independência garantem o bom exercício da liberdade”. Assim, compreendo que José Martí contribui para que a gente perceba nas lutas sociais e políticas as suas intenções e proposições na (trans) formação da sociedade, mais do que um processo auto-formativo dela.

IHU On-Line - De que maneira o legado de José Martí, no sentido da educação popular, repercute ainda hoje na América Latina? Quais as principais permanências e mudanças?

Cheron Zanini Moretti - Acho que podemos dialogar com José Martí no que representa a sua atualidade, digo, na vanguarda de suas posições sobre a condição latino-americana. Martí alertou e lutou contra o avanço imperialista estadunidense, mas sobretudo pensou, projetou uma outra América Latina. De outra forma, podemos dizer que o revolucionário cubano acompanhou o movimento de seu tempo e com isto assumiu posições de “denúncia e anúncio”. A criticidade, a reflexão, a construção de autonomias e a politicidade da educação presentes na educação popular, ainda hoje, também fazem parte da proposta político-pedagógica martiana. Recentemente, num trabalho em grupo, em minha prática docente, não por acaso, surgiu a questão daquilo que Paulo Freire chamou de “educação bancária”, ou seja, uma prática educativa que está mais preocupada em “depositar” informações e/ou conteúdos do que construir um conhecimento próprio, baseado na curiosidade e na leitura do mundo. Martí já chamava a atenção de que "ler, escrever, contar" de memória era tudo o que parecia necessitar uma criança, e que desta forma se produzia uma uniformidade, uma esterilidade da capacidade criativa e de suas idéias. Mas, sobretudo, para o educador cubano a educação vai, também, na direção dos sentimentos. Martí impulsionou a organização dos grupos sociais, a mobilização, a luta pela independência de Cuba, mas não sem dialogar com a educação, para ele “trincheiras de idéias valem mais que trincheiras de pedras”. José Martí ronda, ainda hoje, a América Latina! O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) fazem uma referência direta e cotidiana a suas contribuições pedagógico-políticas e podemos encontrar nos zapatistas, do estado mexicano de Chiapas, aproximações com o legado martiano.

IHU On-Line - Em que medida os princípios de Martí contribuíram para a evolução dos povos indígenas? Houve aceitação ou resistência?

Cheron Zanini Moretti - Não consigo compreender os princípios, ou melhor, as idéias martianas como uma contribuição para “evolução” dos povos indígenas chiapanecos. Mas, sim, como uma valorização da beleza do índio, do negro, do mestiço, enfim, destas misturas que nos fazem latino-americanos. Somos marcados pelos séculos de dominação, mas também de resistência. Um ponto em comum entre as duas experiências, muito presente na Educação Popular, é a de realizar uma educação que permita com que os sujeitos assumam um importante papel na construção do conhecimento, na leitura da palavra e do mundo, ou seja, um protagonismo, tanto na luta pela independência cubana, no final do século XIX, como na atual luta indígena de Chiapas,  sobretudo a zapatista, em que se participa ativamente, se toma decisões, se identifica e se refletem os problemas locais e globais, buscando alternativas coletivas. A educação está neste contexto e vai ser distinta a partir daquilo que se vive num determinado momento histórico, por aquele grupo ou classe. Daí, acho importante vermos os movimentos sociais como espaços abertos às múltiplas possibilidades em educação, sobretudo contra um discurso determinista/fatalista da História que insiste em retirar da educação a sua dimensão política e que não se pode mudar a realidade. Vejo, portanto, que nesta despolitização da educação acaba-se reduzindo-a a puro treinamento, e isto é freireano.  A educação popular, assim, poderá se (re)inventar ou se (re)construir na dinâmica da sociedade organizada a partir do diálogo com as demandas e necessidades locais com a perspectiva de tomarem dimensões maiores. Gosto da idéia de uma relação entre a rebeldia zapatista, a vanguarda martiana e a boniteza freireana na pedagogia latino-americana.

IHU On-Line - Como se deu a inserção da proposta de disseminação da educação de José Martí no Movimento Indígena de Chiapas, no México?

Cheron Zanini Moretti - Como pesquisadora, teria sido muito interessante ter encontrado em algum comunicado, declaração ou carta dos zapatistas, seja através do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena ou do Subcomandante Marcos,  alguma referência direta da experiência de José Martí e de idéias no Movimento Indígena de Chiapas, mas de qualquer forma podemos dizer que existem algumas aproximações. Uma delas é o contexto de levante zapatista, em 1994, que coincidiu com a assinatura do NAFTA.  Martí, em 1889, reconhecia as intenções dos EUA em formar um bloco econômico com as “nações americanas de menor poder” para realizar comércio livre e “encerrar tratados com o resto do mundo”. Claro que é uma aproximação conjuntural, mas que movimenta as questões econômicas, políticas com as sociais. A educação é parte deste movimento. A educação martiana e a educação zapatista possuem posicionamentos próprios, presentes na autenticidade daqueles que as constroem; portanto, é uma educação comprometida. Observo que, baseadas em laços de solidariedades, lutas intencionadas e organização social, a educação se faz no caminho da luta, dialoga com as necessidades e com o direito de ter raiva e manifestá-la através da busca da libertação nacional. Neste sentido, me sinto acompanhada por Freire, novamente, que credita a esta manifestação uma motivação para a briga, assim como a de expressar o amor ao mundo e brigar pela história como um tempo de possibilidade. “Educação são idéias boas (...) que respeitam a realidade de nossa região, de nossos povos indígenas (...) até avançar para uma verdadeira autonomia”, conforme Júlio representante zapatista do conselho municipal de Ricardo Flores Magón.

IHU On-Line - Quais as classes sociais que a educação popular atingiu na América Latina? Por se tratar de popular, podemos entender que seja para os pobres?

Cheron Zanini Moretti - A educação popular tem isto, de nos oferecer muitas interpretações e possibilidades de diálogo. Particularmente, a compreendo a partir de um compromisso explícito com a construção de outro mundo, em que a relação teoria-prática, de forma dialética, nos coloca em permanente movimento, nunca se esquivando de que o metodológico está presente e se compreende com e para os sujeitos envolvidos. Para José Martí, a educação popular não é exclusividade de uma classe, mas sim de todas as classes que compõem uma nação/povo. Werner Altmann,  em uma edição dos Cadernos IHU, destacou esta característica do pensamento martiano como uma divergência fundamental em relação ao conceito de luta de classes do marxismo. Porém, refere-se a Marx  como o “mais importante pensador do mundo do trabalho” e concorda com a criação de uma nova sociedade e de um outro mundo. Para além do direito do povo de ser educado, o revolucionário cubano revela uma determinada responsabilidade social que encontramos quando ele defende que “todo homem tem direito à educação, e depois, em pagamento, o dever de contribuir com a educação dos demais”. Na experiência zapatista, por exemplo, podemos encontrar uma crítica à negação de educação digna, por parte do estado, aos povos indígenas e camponeses. Conforme Marcos, existe uma profunda diferenciação na educação cujas dimensões são classistas quando diz que “para os ricos (estão disponíveis) as grandes escolas, as modernas técnicas pedagógicas, os laboratórios científicos, professores especializados (...) para nós (...), (restam) professores mal pagos, livros rasgados...”. Apesar destes distanciamentos, entre as experiências quanto às suas concepções de educação popular, ambas a apresentam como um paradigma político-educativo e que dialoga com uma construção da educação polifônica.

IHU On-Line – O que a senhora destacaria como as maiores contribuições da educação popular?

Cheron Zanini Moretti - Uma importante contribuição da educação popular, disto tudo que estamos conversando, é a construção da pedagogia latino-americana que, ao apreender e compreender alguns dos legados da educação popular, não se fez inscrita, nos espaços oficiais da educação. Acredito que poderia ser compreendida como um contraponto a uma pedagogia dominante que estabelece a educação como mercadoria e focada no individualismo. A diferença entre elas está na forma de ver o mundo e de agir sobre ele, pois as pedagogias pressupõem idéias do que é ou do que deva ser o homem e a mulher. Compreendo, portanto, que a pedagogia da autonomia, a pedagogia da libertação, a pedagogia do oprimido, a pedagogia da terra, entre outras, formariam uma grande Pedagogia Latino-Americana e que por ter a noção de aprender-ensinar a partir do conhecimento do sujeito, de educação como ato do conhecimento e transformação social, bem como a sua politicidade, nos possibilita percebê-la aberta às experiências, (re) criando-se a partir destas e outras pedagogias que existem e/ou produzindo novas pedagogias que dialoguem com outras realidades. Para mim, esta idéia de movimento da pedagogia latino-americana contraria alguns aspectos da “visão de mundo dominante”, o que a coloca no campo da resistência. José Martí, os zapatistas, o MST e tantos outros movimentos nos indicam que há muito por aprender, (re) inventar e construir neste caminho e que a defesa da educação é também prática radical de humanização.

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