Edição 272 | 08 Setembro 2008

Um filtro da MPB com coloquialidade, otimismo, sofisticação e modernidade

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Graziela Wolfart

“A Bossa Nova nasceu em meio a um vale de lágrimas atroz”, dispara o maestro Julio Medaglia

Na opinião do renomado maestro e arranjador brasileiro Julio Medaglia, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, “a Bossa Nova representa de forma muito refinada as diversas características da alma musical brasileira”. Para ele, a Bossa Nova foi o único movimento musical brasileiro que se internacionalizou, “porque ela conseguiu compactar nossa rica e inspirada expressão musical em sua linguagem, usando recursos modernos e universais de linguagem”. Julio Medaglia estudou regência na Alemanha com o diretor da Escola Superior de Música da Universidade de Freiburg, Artur Hartmann, formando-se em 1965, com distinção, pela Academia de Freiburg, em regência sinfônica.

No final dos anos 1960, Julio retorna ao Brasil e participa ativamente, com Solano Ribeiro, da organização dos Festivais da Record. Nessa época, participa dos mais variados movimentos artísticos de vanguarda, entre os quais o da Poesia Concreta. No final de 1967, escreve o revolucionário arranjo para a canção “Tropicália”, de Caetano Veloso, que marca o início do Tropicalismo. Em 1987, inicia um programa diário na rádio Cultura FM de São Paulo (Pentagrama e, depois, Tema e Variações), trabalho que mantém, ininterruptamente, até os dias de hoje. Os anos 1990 marcam sua participação em grandes espetáculos cênico-musicais, como “Carmina Burana”, de Carl Orff; a “Ópera Ainda”, de Verdi; a “História do Brasil”; e a ópera afro-brasileira “Lídia de Oxum”, de Lindembergue Cardoso e Ildázio Tavares. No final dos anos 1990, Julio Medaglia mais uma vez ganha as manchetes do Brasil e do mundo ao montar uma orquestra filarmônica de nível internacional em plena floresta amazônica. Atualmente, tem regido, como convidado, dentro e fora do país, e trabalhado em diversos projetos culturais. Tem livros publicados como tradutor e autor, entre os quais citamos Música impopular (2. ed. São Paulo: Global, 2003).

IHU On-Line - Quais as principais contribuições da Bossa Nova para a atual música popular brasileira e para a música erudita também? A Bossa Nova inspira a produção de músicos de concerto?

Julio Medaglia – A Bossa Nova nasceu em meio a um vale de lágrimas atroz. Foi a época da bolerização do samba-canção, época do ninguém-me-ama-ninguem-me-quer. Ela filtrou a MPB, trouxe a coloquialidade, o otimismo, a sofisticação camerística, a fina poesia urbana e jovem ao cancioneirismo e a modernidade em vários aspectos. Enfrentou a música sentimentalóide do final dos anos 1950 e, fazendo uma música inteligente e sensível de câmara, beneficiou a todos.

IHU On-Line - Em que medida a Bossa Nova tornou-se um instrumento de constituição da identidade brasileira, principalmente no exterior?

Julio Medaglia – A Bossa Nova representa de forma muito refinada as diversas características da alma musical brasileira. Como ela assimilou a modernidade, em termos harmônicos, rítmicos, melódicos e literários, se impôs internacionalmente – como nenhum outro movimento musical popular brasileiro – e permanece viva ainda hoje no repertório dos grandes intérpretes.
 
IHU On-Line - Podemos considerar a Bossa Nova como um movimento nacionalista e patriótico?

Julio Medaglia – Há que tomar cuidado com esse “nacionalista/patriótico”. É uma música 100% brasileira, com suas raízes fincadas em nossa tradição, mas não tem o componente “oba-oba” do samba-exaltação dos anos 1940, com o Brasil prestes a entrar em guerra, com Getúlio incentivando o ufanismo e coisas assim.
 
IHU On-Line - A Bossa Nova é fruto de quais influências musicais? E provoca influência em quais estilos?

Julio Medaglia – Ela é fruto de um samba coloquial camerístico que havia em nossa MPB há anos, como a de Noel, Mario Reis, Dick Farney e outros. Só que composta numa linguagem mais moderna com a assimilação – até via jazz – de elementos técnicos mais atuais em seu tempo. Todos que fizeram música boa depois dela aprenderam muito com suas contribuições estruturais.
 
IHU On-Line - Como a linguagem e a estética da Bossa Nova refletem o contexto desenvolvimentista de seu tempo? Em que medida a Bossa Nova, enquanto forma de expressão musical, refletia o Brasil da época, o da era Juscelino?

Julio Medaglia – A Bossa Nova se insere 100% em seu tempo. Foi o tempo da poesia concreta, super enxuta, com pouquíssimas palavras ou letras dispostas num papel, sem discursos lineares intermináveis, uma poesia homeopática; foi o período do cool-jazz, música feita com poucos músicos, poucas notas, mas com mais tensão; da Nouvelle Vague,  um cinema intelectualizado, discretíssimo, com textos elaboradíssimos e mensagens sutis; período da pintura concretista, geométrica, “limpa”, econômica em seus meios de expressão; época da arquitetura despojada, branca e de poucas linhas e curvas de um Niemeyer; momento da recuperação do dodecafonismo na música erudita, um estilo musical que filtrou a expressão musical erudita de todas as cargas semânticas do passado, emotivas, folclóricas, regionalistas, românticas etc. etc., reduzindo a expressão musical ao som puro e cristalino e assim por diante.
 
IHU On-Line - Para o senhor, como entender que a Bossa Nova foi o único movimento musical brasileiro que se internacionalizou e porque há 50 anos suas canções correm o mundo?

Julio Medaglia – Porque ela conseguiu compactar nossa rica e inspirada expressão musical em sua linguagem, usando recursos modernos e universais de linguagem.
 
IHU On-Line - O senhor afirma que “inexiste na face da Terra um país com um repertório tão diversificado de matérias-primas musicais como o Brasil”. Como as características do povo brasileiro ajudam a entender que nosso país seja “campeão da biodiversidade musical?

Julio Medaglia – A miscigenação brasileira permitiu o entrecruzar de idéias, tendências, musicalidades, formas de expressão, línguas e linguagens, sensibilidades diversas etc. Como aqui não existe conflito racial, étnico, as coisas se cruzaram com facilidade. Nossa matéria-prima musical é a mais rica do mundo. Só falta saber industrializá-la melhor – privada e oficialmente - e procurar meios para divulgá-la internacionalmente – antes que a imbecilidade de nossa indústria de comunicação eletrônica acabe com ela.

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