Edição 272 | 08 Setembro 2008

Uma ruptura radical com o convencional

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Graziela Wolfart

Santuza Cambraia Naves traça um paralelo entre a Bossa Nova e a Tropicália, e fala sobre como esses movimentos influenciaram o Brasil

“Acredito que a Bossa Nova tem sido muito importante para o Brasil como produto de exportação cultural, na medida em que, tal como Mário de Andrade e Oswald de Andrade prescreviam, ela representa o Brasil através da junção do local com o universal. Ao proceder dessa forma, a Bossa Nova nos liberta do que parecia uma maldição do chamado ‘terceiro mundo’: a figuração do Brasil via exotismos.” A opinião é da professora Santuza Cambraia Naves, da PUC-Rio. Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, ela afirma que a “Bossa Nova orientou profundamente a geração posterior que criou a MPB, representada por figuras como Chico Buarque de Hollanda e Edu Lobo, entre outros”.

Santuza Cambraia Naves possui graduação em Ciências Sociais, pela Universidade de Brasília, mestrado em Antropologia Social, pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e doutorado em Sociologia, pelo IUPERJ. Atualmente, é professora no Departamento de Sociologia e Política da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e coordenadora do Núcleo de Estudos Musicais da Universidade Cândido Mendes, atuando principalmente nos seguintes temas: modernismo musical, música popular brasileira, tropicália e sonoridades contemporâneas, como funk, hip-hop e música eletrônica. É autora de, entre outros, Da Bossa Nova à Tropicália (2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001).

IHU On-Line - Como a senhora descreve o período histórico e político brasileiro no surgimento da Bossa Nova?

Santuza Naves - O período de surgimento da Bossa Nova — final dos anos 1950 — é marcado pelo governo democrático e desenvolvimentista de Juscelino Kubistchek (JK). Trata-se de um momento em que o Brasil, de maneira geral, procura ser “moderno”, tanto em termos político-sociais quanto culturais. E é necessário qualificar a concepção de “moderno” que se cria à época, orientada por uma atitude de rejeição ao viés nacionalista das tendências que davam continuidade ao movimento modernista. Assim, ser “moderno” equivalia a adotar uma estética clean, despojada e em franco diálogo com informações internacionais, atitude que não negava a afirmação da brasilidade, mas que se diferenciava do modernismo ao propor um gesto mais ousado em termos de experimentações artísticas.

IHU On-Line - Podemos considerar que o contexto desenvolvimentista contribuiu para uma elaboração tão criativa quanto a Bossa Nova?

Santuza Naves - Acredito que sim, na medida em que a concepção desenvolvimentista se caracterizou pela busca de novidades nos mais diferentes planos — social, político, econômico e estético — e pela rejeição de tradições consideradas incompatíveis com o processo de modernização do país. É a partir da configuração deste tipo de postura que entenderemos a construção de Brasília — conhecida como “a capital do futuro” —, cuja concepção significa uma ruptura radical com a idéia convencional de cidade, e a criação da Bossa Nova, que também estabelece parâmetros musicais em nada familiares a uma escuta convencional.

IHU On-Line - O que marca a passagem da Bossa Nova para o Tropicalismo? Como entender que o segundo movimento optou por incorporar elementos do primeiro? 

Santuza Naves - O Tropicalismo,  paradoxalmente, incorporou tanto o espírito da Bossa Nova quanto a tradição rejeitada por ela. Mas esta atitude pode se mostrar menos paradoxal se entendermos que a proposta do tropicalismo é exatamente essa de jogar, como diria Augusto de Campos  no Balanço da bossa (São Paulo: Perspectiva, 1968), com o fino e o grosso, ou seja, com os elementos tanto associados à baixa cultura quanto à alta cultura.

IHU On-Line - Quais as principais diferenças entre os fenômenos da Bossa Nova e da Tropicália? Em que medida eles se complementam?

Santuza Naves - Acredito que se trata de duas propostas musicais bastantes diferentes uma da outra. A Bossa Nova valoriza o clean, o camerístico, o despojado, ou seja, uma estética do menos, enquanto a Tropicália, como disse na questão anterior, lida com o fino e o grosso. A Bossa Nova representa um aspecto da cultura brasileira que joga com o moderno, o refinado, o sofisticado, enquanto a Tropicália aposta também no kitsch e no excessivo. É como se a Tropicália dissesse que somos tudo isso ao mesmo tempo. Um dos versos de “Vaca profana”, canção de Caetano Veloso do LP Totalmente demais, de 1986, traz exatamente essa idéia: “Sou tímido e espalhafatoso / torre traçada por Gaudí”.

IHU On-Line - Em que medida a Bossa Nova foi decisiva na vida cultural brasileira e na identidade brasileira? Como esse movimento pode nos ajudar a pensar o Brasil?

Santuza Naves - Acredito que a Bossa Nova tem sido muito importante para o Brasil como produto de exportação cultural, na medida em que, tal como Mário de Andrade  e Oswald de Andrade  prescreviam, ela representa o Brasil através da junção do local com o universal. Ao proceder dessa forma, a Bossa Nova nos liberta do que parecia uma maldição do chamado “terceiro mundo”: a figuração do Brasil via exotismos.

IHU On-Line - O que caracteriza a estética bossa-novista?

Santuza Naves – Basicamente, a estilização do samba a partir de informações do cool jazz e outras musicalidades, como o bolero camerístico do mexicano Lucho Gatica.  Gabriel Improta,  em artigo que escreveu a quatro mãos comigo para a revista Ciência Hoje,  caracteriza a estética bossa-novista, num primeiro momento, pelo ritmo que João Gilberto criou ao violão, definindo-o como “uma redução estilizada, uma tradução do samba executado por instrumentos de percussão de forte volume, como o surdo e o tamborim, para a instrumentalidade mais intimista do violão”. E é importante registrar que a estética bossa-novista não se esgota com sua forma canção e com a maneira de criar o arranjo, porque ela contempla também uma performance. Trata-se de uma concepção de performance que não se limita ao uso do palco, mas que inclui a própria construção de uma corporalidade: um corpo que evita excessos em termos gestuais, mas que não abre mão da sensualidade.
 
IHU On-Line - Como podemos relacionar a característica intimista da Bossa Nova com as concepções de modernidade que vigoravam no período do seu surgimento?

Santuza Naves - Ser “moderno”, naquela época, significava ser clean, discreto e portador de uma subjetividade que dialogava com a objetividade. Significava ser clássico, no sentido de lidar com a idéia de equilíbrio, e não romântico, que significava uma certa descompensação.
 
IHU On-Line - Quais as principais heranças musicais e culturais da Bossa Nova? Como ela contribui para o que chamamos hoje de MPB?

Santuza Naves - A Bossa Nova orientou profundamente a geração posterior que criou a MPB, representada por figuras como Chico Buarque de Hollanda e Edu Lobo,  entre outros. Se os músicos dessa geração ampliaram poética e musicalmente a temática da Bossa Nova, trocando a Zona Sul do Rio de Janeiro pela idéia de Brasil, eles jamais abandonaram as lições da Bossa Nova, sintetizadas basicamente pela batida que João Gilberto criou ao violão e pela harmonia de Tom Jobim.

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