Edição 272 | 08 Setembro 2008

Bossa Nova: um patrimônio da cultura brasileira

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Graziela Wolfart

Autor do clássico livro Chega de saudade, o jornalista Ruy Castro acredita que a Bossa Nova completou um ciclo de sofi sticação da música brasileira que já vinha desde o Pós-Guerra

Na opinião do jornalista Ruy Castro, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, a Bossa Nova “se impôs pela beleza de suas melodias, a complexidade de suas harmonias e a sedução de seu ritmo, para não falar das letras, que se tornaram a sua ponta-de-lança ideológica. Com a Bossa Nova, as letras se libertaram do rame-rame da mulher traidora ou de como era bom viver na orgia. De repente, todo um universo temático se abriu, principalmente com Vinicius de Moraes, e foi desaguar em Chico Buarque, Caetano Veloso, Aldir Blanc etc. A música popular ajudou a pensar e foi a cara do Brasil nos anos 1960 e 1970”. 

Ruy Castro é jornalista, tradutor e escritor brasileiro, reconhecido pela produção de biografias e reportagens extensas que vieram a se desenvolver na qualidade de livro-reportagem. A partir de suas obras, consagrou-se como um dos escritores brasileiros mais respeitados da atualidade. É autor das biografias de Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. Entre seus livros citamos Chega de saudade: A história e as histórias da Bossa Nova (São Paulo: Companhia das Letras, 1990), Saudades do século XX (São Paulo: Companhia das Letras, 1994), Ela é carioca (São Paulo: Companhia das Letras, 1999), A onda que se ergueu no mar (São Paulo: Companhia das Letras, 2001), Tempestade de ritmos (São Paulo: Companhia das Letras, 2007) e Era no tempo do rei: um romance da chegada da corte (Rio de Janeiro: Objetiva, 2007).

IHU On-Line - Como o senhor descreve o período histórico e político brasileiro no surgimento da Bossa Nova (considerando que esse “surgimento” tenha sido no final da década de 50, com "Chega de saudade")?

Ruy Castro - Em 1955, a Segunda Guerra fazia 10 anos que terminara. Havia, de repente, uma onda de prosperidade e muito dinheiro sobrando, no mundo inteiro. O Brasil iria entrar num ciclo desenvolvimentista que, na minha opinião, aconteceria de qualquer maneira e só por acaso teve a ver com Juscelino Kubitschek.  No meio de todo aquele otimismo, era inevitável que a música da boate, lenta e melancólica, como o samba-canção, desse lugar a uma música mais viva, alegre e sincopada.

IHU On-Line - Podemos considerar que o contexto desenvolvimentista contribuiu para uma elaboração tão criativa quanto a Bossa Nova?

Ruy Castro - Nesse sentido, sim. Mas a elaboração dessa música já vinha, no Brasil, desde o Pós-Guerra. João Gilberto  efetivamente inventou a Bossa Nova, mas não a inventou sozinho. Ele se valeu das buscas e contribuições de centenas de outros cantores, compositores, músicos e arranjadores que já estavam trabalhando desde 1945 - um deles, o fabuloso e pouco conhecido Janet de Almeida,  que gravou “Pra que discutir com madame?”, em dezembro de 1945 e morreu em janeiro de 1946.

IHU On-Line - Em que medida a Bossa Nova foi decisiva na vida cultural brasileira e na identidade brasileira? Como esse movimento pode nos ajudar a pensar o Brasil?

Ruy Castro - A Bossa Nova completou esse ciclo de sofisticação da música brasileira que já vinha desde o Pós-Guerra, e que pode ter começado com “Copacabana”, com Dick Farney.  Ela se impôs pela beleza de suas melodias, a complexidade de suas harmonias e a sedução de seu ritmo, para não falar das letras, que se tornaram a sua ponta-de-lança ideológica. Com a Bossa Nova, as letras se libertaram do rame-rame da mulher traidora ou de como era bom viver na orgia. De repente, todo um universo temático se abriu, principalmente com Vinicius de Moraes,  e foi desaguar em Chico Buarque,  Caetano Veloso,  Aldir Blanc  etc. A música popular ajudou a pensar e foi a cara do Brasil nos anos 1960 e 1970.

IHU On-Line - Na sua opinião, a Bossa Nova ainda é atual, ainda é ouvida e considerada MPB nos dias de hoje? Qual sua opinião sobre o que é considerado MPB atualmente? 

Ruy Castro - Ninguém pergunta se o jazz  “ainda é atual”, já reparou? Claro que a Bossa Nova ainda é “atual” - senão, como se explicaria que canções feitas há 50 anos ou mais continuem a ser gravadas e executadas com tanta freqüência ainda hoje? Quanto à “MPB”, não sei o significado dessa sigla, nunca soube.
 
IHU On-Line - Em que medida a ditadura militar interferiu na continuada do caminho da Bossa Nova?

Ruy Castro - O golpe de 1964 politizou subitamente toda uma geração no Brasil. Não só na música, mas em todas as outras artes, houve um racha imediato entre os que se diziam “participantes”, ou seja, de esquerda, contra os que queriam apenas continuar fazendo boa música, cinema ou teatro - e que, por isso, foram rotulados como “alienados”, o que era apenas uma maneira suave de chamá-los de “de direita”. Essas divisões são sempre um horror: afastam as pessoas umas das outras e não produzem necessariamente grande arte, muito menos derrubam governos. Os estudiosos da Bossa Nova deveriam atentar para o fato de que os mais “participantes” do processo eram letristas vindos do cinema e do teatro, como Ruy Guerra,  Gianfrancesco Guarnieri,  Oduvaldo Viana Filho,  e não músicos - com as exceções de Carlinhos Lyra  e Sergio Ricardo.  A música nunca é de esquerda ou de direita - é apenas boa ou má. Mas a prova de que a Bossa Nova era muito forte está no disco do show “Opinião”, de 1965, que se propunha a enterrar a Bossa Nova: quando se ouve hoje esse disco, percebe-se que as letras das canções podiam ser de esquerda, mas a música continuava a ser, em grande parte, Bossa Nova.

IHU On-Line - Quais as principais diferenças entre os músicos da Bossa Nova, da Jovem Guarda e da Tropicália?

Ruy Castro - O próprio Caetano Veloso já definiu: a Bossa Nova foi um fenômeno musical; o tropicalismo, um fenômeno jornalístico. E eu acrescentaria: o iê-iê-iê foi um fenômeno de marketing. Pode-se fazer 10 CDs triplos com o repertório da Bossa Nova sem repetir uma canção. Já o tropicalismo e o iê-iê-iê, não sei se rendem um CD.
 
IHU On-Line - Quando o senhor escreveu Chega de saudade, o que mais lhe impressionou no processo de coleta de informações? Que ponto mais lhe impressionou no sentido de perceber que se tratava de algo especial, com alto poder de sedução?

Ruy Castro - Eu já sabia disso muito antes de escrever o livro, porque fui formado pela Bossa Nova e me deixei seduzir por ela desde o começo. Mas nem eu tinha idéia da sua riqueza humana e musical. Durante dois anos, que foi o tempo que levei apurando e escrevendo, convivi com músicos e pessoas da mais alta qualidade. Cinco minutos ao lado de Luizinho Eça  tocando piano, por exemplo, davam a impressão de justificar a existência do ser humano no mundo. Ou assistir a um ensaio dos Cariocas.  Ou apenas conversar com Tom Jobim.  Ou falar ao telefone com João Gilberto, o que fiz seis ou sete lonnnnngas vezes. 
 
IHU On-Line – Qual sua opinião sobre essa celebração em torno dos 50 anos da Bossa Nova?

Ruy Castro - A Bossa Nova não se resume a essa efeméride de 50 anos, nem é um objeto de nostalgia, feito para que coroas e gagás fiquem suspirando por sua mocidade perdida. É um patrimônio da cultura brasileira e, como tal, é permanente, atemporal e deveria interessar a pessoas de todas as idades. (Aliás, isso está acontecendo - o Brasil voltou a se apaixonar por ela.) Como diria o Vinicius, seu tempo é quando. Eu apenas gostaria de deixar claro que a música brasileira já era extraordinária desde pelo menos 1930, quando se consolidaram os sambas e as marchinhas, e que figuras como Mario Reis,  Carmen Miranda,  Ismael Silva,  Bide & Marçal,  Ary Barroso,  Noel Rosa,  Silvio Caldas  e outros não surgiram do vazio. E que, quase 30 anos depois, a Bossa Nova também não veio para salvar a música popular da estagnação - mas, como eu disse, foi gerada por uma intensa fermentação musical que já vinha do Pós-Guerra. Estou enfatizando isto para que não pensem que, para mim, a música brasileira é só a Bossa Nova, ou só a partir da Bossa Nova. Se você quer saber, em casa ouço muito mais os discos dos anos 1930 do que os dos anos 1960.

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