Edição 271 | 01 Setembro 2008

O massacre de San Patricio. Religiosos palotinos são trucidados

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Bruna Quadros

“Qualquer palavra que se dissesse contra os métodos utilizados pela cruel ditadura era praticamente uma condenação de morte”, afirma o padre palotino Mariano Pinasco

“Melhor que, diante do que estamos fazendo, fiquem quietos, calem.” Eram frases deste teor que ditadores argentinos lançavam sobre membros da comunidade palotina de San Patricio, no período de repressão que assolou o país, diante de crimes que vão desde tortura até a morte. Um dos motivos para esta perseguição talvez estivesse no comprometimento claro e profético dos palotinos, diante do momento que a Argentina vivia, conforme aponta o Prof. Dr. Pe. Mariano Pinasco, religioso palotino, em entrevista concedida por e-mail à revista IHU On-Line.

Em 6 de julho de 1976, cinco dos religiosos que integravam a congregação foram brutalmente assassinados. Para Pinasco, os assassinos do Massacre de San Patricio, na Argentina, queriam uma Igreja que ficasse quieta, que não denunciasse a tragédia que a sociedade estava vivendo. A memória destes grandes mártires do século XX continua viva, nos dias de hoje. “O sangue derramado por essa comunidade poderá ser o alicerce para a construção de uma nova sociedade com um jeito também diferente de ser igreja. Uma igreja que volte às suas origens, comprometida até a morte com o ser humano.”

Mariano Pinasco estudou Filosofia e Teologia no Colégio Máximo Palotino de Santa Maria (RS). Em 1990, foi ordenado sacerdote da comunidade palotina. É doutor em História Eclesiástica, pela Universidade Gregoriana de Roma, na Itália. Atualmente, é professor da cátedra de Historia no curso de Teologia na Faculdade Palotina de em Santa Maria (RS) e presidente da Comissão Histórica dos Palotinos, sediada em Roma, Itália. No dia 5 de setembro, ele estará na Unisinos para participar do evento Medellín a Aparecida: marcos, trajetórias e perspectivas da Igreja Latino-Americana, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Durante a atividade, será exibido o documentário 4 de julho, dirigido por Juan Pablo Young e Pablo Zubizarreta, no Auditório Central da Unisinos.

IHU On-Line - Por que os palotinos foram assassinados no Massacre de San Patricio?

Mariano Pinasco - Existem várias teorias ou especulações sobre o crime cometido contra a comunidade palotina de San Patricio. Uma delas seria o fato de dar um golpe contra a Igreja Católica em geral, quer dizer, uma mensagem para a Igreja no começo da cruel ditadura militar sofrida na Argentina: “Melhor que, diante do que estamos fazendo, fiquem quietos, calem”. Outra linha de pesquisa nos pode conduzir ao próprio testemunho que a comunidade dos cinco religiosos dava nas tarefas evangelizadoras por eles realizadas, especialmente por alguns dos seus membros, mas certamente não foi um fato isolado dentro do contexto de morte e destruição que a sociedade Argentina vivia a partir da violência sistemática gerada desde um Estado repressor.

IHU On-Line - Que posturas políticas eles tinham para serem perseguidos pela ditadura Argentina?

Mariano Pinasco – Certamente, alguns dos membros dessa comunidade tinham um compromisso claro e profético diante da situação de regime militar que estava se vivendo na Argentina. Qualquer palavra que se dissesse contra os métodos utilizados pela cruel ditadura era praticamente uma condenação de morte. Desde o púlpito da paróquia de San Patricio, se denunciavam os fatos terríveis que estavam acontecendo na Argentina e isso foi feito na frente de uma congregação composta por fiéis que, em muitos dos casos, ocupavam lugares de privilégio na sociedade, num dos bairros mais ricos da cidade de Buenos Aires. Essas denúncias certamente originaram mais de um comentário nos círculos fechados que apoiavam a ditadura militar e isso ajudou para que a comunidade fosse “marcada” para morrer.

IHU On-Line - Quais eram suas atividades na Argentina?

Mariano Pinasco - A comunidade era composta de três sacerdotes que se ocupavam do trabalho pastoral tipicamente paroquial urbano e, além disso, o Pe. Alfredo Kelly, pároco de San Patricio, era o diretor de uma importante escola de catequistas em Buenos Aires. A comunidade palotina de San Patricio estava também composta pela comunidade de formação, ou seja, os seminaristas da congregação, que eram seis – dois deles assassinados. A paróquia era muito ativa, e os jovens ocupavam um lugar de destaque nas atividades paroquiais. Uma das legendas que os assassinos picharam nas paredes da casa paroquial na noite do crime, como um motivo justificativo do horrível fato, referia-se justamente a eles: “por perverter as mentes virgens de nossos jovens”. Isso também indicaria um dos motivos do crime.

IHU On-Line - Como, quando e por que vieram para esse país?

Mariano Pinasco - Os palotinos chegaram à América do Sul em 1885, seguindo as pegadas da imigração italiana da Quarta Colônia, no Rio Grande do Sul, e se estabeleceram no Uruguai, quando foram convidados a assistir, religiosamente, aos imigrantes irlandeses que se encontravam nas pampas argentinas, assumindo trabalhos paroquiais e na área da educação através da fundação de diversas escolas. Pouco a pouco, foram assumindo trabalhos, não só com os imigrantes irlandeses, mas começaram a se comprometer nas atividades com toda a sociedade Argentina.

IHU On-Line - Quais foram as circunstâncias em que ocorreu o Massacre de San Patricio?

Mariano Pinasco - O massacre de San Patricio se origina num contexto que não escapa do contexto que a América Latina viveu na década dos anos 1970. A partir de março de 1976, foi derrubado o governo democrático na Argentina - na época, o país era presidido por Isabel Perón  e passou a ser comandado por Jorge Rafael Videla  - e começou uma sangrenta ditadura encabeçada pelos militares. A partir daí, começa a execução de um plano sistemático de repressão e de extermínio de tudo aquilo que era participação popular na vida política, no mundo do trabalho e na ação de social. Instaurou-se o terrorismo de Estado que reprimiu, desapareceu e assassinou um bom numero de cidadãos, como parte de um plano muito bem pensado. Foi certamente um regime de terror que silenciou e edificou uma sociedade cheia de medos. Anos de terror se instalaram numa sociedade que durante quase oito anos viveu perseguida, silenciada e paralisada pelo medo.

IHU On-Line - Como a igreja argentina trabalha a memória do Massacre de San Patricio?

Mariano Pinasco - Na verdade, uma das teorias que indicam que o crime cometido contra a comunidade palotina foi um sinal de advertência para toda a igreja argentina parecia estar muito acertada, pois obteve muito efeito. Um mês depois do massacre da comunidade palotina, no dia 6 de agosto de 1976, foi assassinado o bispo Angelelli  de La Rioja, no norte argentino, e leigos, catequistas, irmãs e padres de diferentes regiões também foram desaparecidos ou mortos ao longo do regime. Isto fez com que também o medo se apoderasse de muitos dos referentes da igreja Argentina, paralisando-os, fazendo justamente aquilo que buscavam os assassinos, isto é, uma igreja que fique quieta, que não denuncie a tragédia vivida pela sociedade. Outro capítulo amargo desta história certamente foram os que desde o ministério pastoral apoiaram abertamente a metodologia e a ideologia do sistema ditatorial vigente. Neste sentido, ainda como comunidade católica estamos em dívida na Argentina, pois nunca se assumiu o fato de que muitos dos membros, da hierarquia e não só, foram cúmplices do regime terrorista através do silêncio e até houve alguns que apoiaram o regime ilegal publicamente. No caso particular da comunidade palotina assassinada, começou-se, há quatro anos, com o processo canônico para o reconhecimento martirial oficial por parte da Igreja, um processo que levará tempo mais que certamente será uma oportunidade para resgatar a memória, não só dos cinco membros da comunidade palotina, mas também de tantos eclesiásticos e leigos que derramaram o seu sangue com a esperança da construção de uma sociedade mais justa, mas solidária e mais fraterna. Esperamos que a memória de todos eles seja resgatada e colocada no lugar que merecem, pois, como dizem por aí, “um povo que esquece sua memória é um povo sem futuro”.

IHU On-Line - Qual é o principal legado humanitário e político desses religiosos mortos pela ditadura argentina?

Mariano Pinasco – O legado que nos deixaram os cinco religiosos de San Patricio foi o seu testemunho de vida diante de uma sociedade cheia de sinais de morte ao seu redor. O testemunho deles certamente será semente de vida, o seu sangue será o adubo para muitos que seguindo esse testemunho não se calarão diante das injustiças. O sangue derramado por essa comunidade poderá ser o alicerce para a construção de uma nova sociedade com um jeito também diferente de ser igreja. Uma igreja que volte às suas origens, comprometida até a morte com o ser humano. Muito interessante foi a experiência de ouvir os testemunhos das pessoas que tiveram a oportunidade de assistir ao documentário 4 de julho, principalmente daqueles que se consideram ateus, muitos deles diziam: “Nunca imaginamos uma Igreja assim”. Tenho certeza de que o sangue derramado por estes mártires do século XX brotará por algum lugar na nossa sociedade, gerando uma espécie de experiência de ressurreição, de experiência pascal.

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