Edição 235 | 10 Setembro 2007

'A revolução feminista não transformou o papel da mulher, mas agregou funções a ela'

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IHU Online

Magra, alta, cabelos compridos e esvoaçantes: esse é o padrão de beleza da sociedade contemporânea. Como é um padrão que se adapta apenas às minorias, a massa recorre às plásticas e aos inibidores de apetite. É excluído, assim, aquele que está acima do peso e, portanto, fora do padrão. Isso é o que a pesquisadora Joana de Vilhena Novaes chama de moralização da beleza (utilizando referências de Baudrillard) em seu mais recente livro, fruto da sua tese de doutorado,  O intolerável peso da feiúra. Sobre mulheres e seus corpos  (Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio/Garamond, 2006). Sobre as questões abordadas na obra, Novaes falou, por telefone, com exclusividade, à IHU On-Line.

Na conversa, Novaes fala dos impactos sociais que o padrão de beleza tem na sociedade e, principalmente, o impacto da gordura. “A obesidade tem, sim, um impacto social de exclusão mais forte na sociedade contemporânea”, afirma. Ela fala ainda das ações afirmativas que a publicidade precisa fazer para contemplar as pessoas consideradas gordas nos nichos de mercado e constrói uma relação entre sociedade de consumo, padrões de beleza e a cultura do excesso.

Novaes é graduada em Psicologia pela PUC-Rio, com mestrado e doutorado em Psicologia Clínica pela mesma universidade. Atualmente, coordena o Núcleo de Doenças da Beleza da PucRio, onde pesquisa "O corpo nas camadas populares" e, ainda, faz atendimento psicológico à comunidade de baixa renda. É voluntária na Associação Santa Clara e pesquisadora do Instituto Delphos. Eis a entrevista que originalmente publicamos no site do Instituto Humanitas Unisinos - IHU (www.unisinos.br/ihu), em 24-08-2007.

IHU On-Line – A mulher, com todas as revoluções feministas que aconteceram nas últimas décadas, ainda está presa a um padrão de beleza? Quais são os impactos sociais que esse padrão de beleza causa ainda hoje?
Joana de Vilhena Novaes –
Saímos de uma ditadura e partimos para uma revolução feminista, que é, ainda hoje, um marco histórico muito significativo. No entanto, o que é mais enigmático, nesse sentido, é que a mulher conquistou muitos espaços a que antes não tinha acesso, como, por exemplo, o mercado de trabalho. Nem por isso, deixou de desempenhar papéis clássicos, como o de mãe. Ou seja, a revolução feminista não transformou o papel da mulher, mas agregou funções a ela. Hoje, além de ocupar os espaços que conquistou, ela ainda precisa ser, além de boa, “gostosa”, precisando cuidar, constantemente, da aparência. Então, a mulher só ganha novos tipos de obrigação.

Mas o grande advento da liberação sexual é a liberação da mulher daquela idéia que a relaciona sempre à beleza e à feminilidade. Isso aconteceu devido ao advento do feminismo, ou, melhor dizendo, com as conquistas feministas. Este rompimento é a grande conquista feminista. O que normalmente não é dito é que, ao longo da história, há também padrões estéticos que aprisionam a mulher da mesma maneira que essa ditadura estética da beleza. Temos esse advento, mas, em termos históricos, há uma migração de uma ditadura para outra, ou seja, a mulher não está verdadeiramente livre de uma determinada ditadura. Hoje, por exemplo, ela recorre a práticas questionáveis para atingir um padrão de beleza. Não estou querendo satanizar, neste sentido, as práticas corporais, como as cirurgias, que realmente a rejuvenesce e melhora a sua auto-estima. No entanto, há uma variável muito opressora nesse discurso. As mulheres (desde a adolescente até a idosa) querem sempre se adequar a um determinado padrão estético e recorrem a algum tipo de recurso para que não se sintam excluídas. Isso é, sem dúvida, uma moralização da beleza e do corpo feminino. A responsabilidade que se impõe sobre o sujeito e sobre seu corpo acaba sendo uma espécie de moralização.

IHU On-Line – A obesidade tem um impacto social mais elevado do que outros “defeitos” que tiram a mulher de um padrão de beleza preestabelecido?
Joana de Vilhena Novaes –
A obesidade é um problema de saúde pública que atinge 15% da população. O sobrepeso já atinge 25%, sobretudo quando falamos das camadas menos favorecidas. É um problema de saúde pública que demanda investimentos, provoca gastos, onera o Estado. Em relação a isso, temos vários fatores associados. Há várias campanhas informativas, mas que também são terroristas. Há algum tempo, em São Paulo, por exemplo, houve uma campanha contra a obesidade infantil, que mostrava uma criança com uma tarja preta e trazia a seguinte mensagem: “O seu filho obeso de hoje é o diabético de amanhã”.

Tal pensamento é até adequado se a idéia fundamental for realmente instruir e informar a população. No entanto, o que se precisa sublinhar nessa mensagem é que a gordura acaba sendo criminalizada. Isso está dentro do fenômeno de moralização da beleza. Há alguns meses, o Fantástico, da Rede Globo, fez uma enquete para saber se seu público achava que os pais de crianças obesas deveriam perder a guarda dessas crianças. Este é um exemplo bastante ilustrativo de como a gordura é vista no imaginário social. Então, respondendo à pergunta, a obesidade tem, sim, um impacto social de exclusão mais forte na sociedade contemporânea.

IHU On-Line – Você propôs uma ação afirmativa aos “gordos” vítimas de preconceito. Como se define essa ação?
Joana de Vilhena Novaes –
É uma brincadeira, uma proposição, porque esse livro é fruto da minha tese de doutorado e, na época da minha pesquisa de campo, eu notava que a questão da gordura era relacionada sempre à questão da feiúra. Daí o título do meu livro O intolerável peso da feiúra. Sobre mulheres e seus corpos . Neste trabalho, eu estabeleci uma equivalência, associando a gordura à forma mais representativa de feiúra na contemporaneidade, capaz de levar o indivíduo a uma exclusão socialmente validada.

Ou seja, é politicamente incorreto você falar mal de judeu, de negro e de outras minorias, mas não é errado falar mal de gordo. Daí a minha brincadeira. Quando as entrevistadas obesas diziam que não há nenhum nicho de mercado voltado a elas, eu me perguntava como, na sociedade de consumo, uma indústria que movimenta milhões em cuidados com o corpo, e que faz com que as pessoas se sintam satisfeitas, não dedica um nicho, como nos Estados Unidos, voltado aos obesos. Era mais uma brincadeira no sentido de dizer que a indústria deve se organizar, baseando-me numa queixa de exclusão que as pessoas relatavam.

IHU On-Line – Você foi uma das consultoras da campanha da marca Dove, que prezava pela beleza natural das mulheres. Como foi a receptividade do comercial? Muitas mulheres puderam se libertar do padrão a partir do momento em que se “enxergavam” no comercial da novela das oito?
Joana de Vilhena Novaes –
Foi uma jogada de marketing fenomenal. Essa campanha foi baseada numa pesquisa mundial e, por isso, os resultados foram adequados, por se tratar de uma campanha lançada somente no Brasil. O que tem por trás dela, principalmente, é um trabalho de responsabilidade social. A idéia era trabalhar a auto-estima das pessoas, e em cima disso a campanha foi feita. No caso desse comercial, foi feito um recorte para que se trabalhasse com adolescentes, meninas carentes e negras, no sentido de retratar todas as mulheres em uma campanha publicitária. Eu, pessoalmente, acho que conseguimos atingir nosso objetivo com muito sucesso.

A campanha foi um movimento que, fora a jogada de marketing, deu um start para contemplar uma coisa mais crítica, apostando na inclusão de pessoas que costumam ser excluídas. Você tem mais de seis bilhões de pessoas no Planeta Terra e só dez top models. Isso quer dizer alguma coisa. Ou seja, geneticamente poucas pessoas terão essas características que foram determinadas como belas. Como essa indústria gera milhões, foi preciso pensar que, caso se continue investindo somente na exclusão, as pessoas vão parar de consumir.

IHU On-Line – Por que você acha que o Brasil é o segundo país com o maior número de cirurgias plásticas realizadas no mundo?
Joana de Vilhena Novaes –
Porque o Brasil possui uma cultura de superexposição do corpo. Além disso, existe um mito de que é o país das sociabilidades. Criou-se um mito sobre a forma como as pessoas se percebem. E qual é essa percepção? É a de um país cuja sensualidade e sexualidade estão muito expostas. Ou seja, além do fato de ser um país em que é importante a forma como cada um percebe seu corpo, a exposição transcende isso e passa a incluir como os outros percebem o “meu” corpo. Há teóricos que falam sobre isso. O livro Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre  fala sobre isso, sobre o que é corpo brasileiro e as representações dele. Dentro dessas representações, contempla a idéia de que o brasileiro tem um corpo liberado, com ritmo e musicalidade exacerbada, enfim, com sensualidade. O problema se agrava ainda mais quando constatamos que, além do alto número de cirurgias plásticas realizadas, o Brasil tem um consumo imenso de inibidores de apetite e anorexígenos, a fim de que o padrão do corpo seja mantido da melhor maneira possível, em todos os sentidos.

IHU On-Line – A exclusão é maior quando a mulher que se considera feia pertence a uma classe econômica mais baixa?
Joana de Vilhena Novaes –
Muito pelo contrário. Os discursos estão aí e todos somos, independente das classes sociais, afetados por essas imagens dos belos corpos, vindos de toda essa produção imagética que a mídia lança. De uma maneira geral, o padrão de beleza é democrático, mas o uso que se faz disso, em compensação, é diferente. Temos, constatadamente, uma relação maior com os corpos nas classes mais pobres. Nas classes mais altas, há um desconforto com as imperfeições e se esconde o corpo. Nas classes menos favorecidas é o contrário: o indivíduo precisa ser mais gordo para ser considerado como tal.

IHU On-Line – Onde a cultura do excesso, a sociedade do consumo e os padrões de beleza se encontram?
Joana de Vilhena Novaes – 
É um encontro que se dá a todo o momento. A sociedade de consumo é, por excelência, a sociedade do excesso, do desperdício. É um paradoxo esse ideal estético de magreza em tempos de excesso de comida e desperdício. O padrão estético é sempre um padrão da minoria.

Na Idade Média, com a escassez de comida, o padrão, por exemplo, apresentava formas mais rechonchudas, pois quem comia era a elite. Hoje, acontece justamente o contrário. Vemos a obesidade crescendo no mundo todo, nas camadas menos favorecidas, justamente porque não têm dinheiro para fazer uma dieta mais balanceada. Paradoxalmente, precisamos ter a disciplina de não consumir. Neste fenômeno, que nós denominamos como moralização da beleza, a responsabilidade é de cada um. Por isso é tão difícil, à medida que o sujeito está inundado em mensagens coloridas. Se não tivesse estímulo, o sujeito não seria tão exigido. Estamos numa época de compulsões ou patologias narcísicas. Assim, também estamos em meio a uma cultura do excesso, porque o sujeito passa a existir pela via do consumo.

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