Edição 271 | 01 Setembro 2008

Uma cultura ameaçada

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Patricia Fachin

A escola tem o poder de silenciar ou resgatar a memória pomerana, considera a pedagoga Vânia Grim Thies

“A germanização da cultura e o processo de ‘calar’ já fizeram com que os jovens pomeranos deixassem de conhecer muito dos aspectos históricos da própria cultura”, afirma Vânia Grim Thies, professora da rede municipal de ensino, de Morro Redondo. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, a pesquisadora, que realiza estudos nas escolas da região colonizada por pomeranos, diz que não há, entre os jovens, a “preocupação em resgatar os aspectos históricos”. Uma mudança nesse cenário pode acontecer através das escolas, que tem a “tarefa fundamental de reacender nas crianças, a importância do resgate e do conhecimento dos processos culturais do povo pomerano”, acrescenta.

Vânia Grim Thies é graduada em Pedagogia, especialista em Alfabetização e Letramento e mestre em Educação, pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), com a dissertação Arando a terra, registrando a vida: os sentidos da escrita de diários na vida de dois agricultores.

IHU On-Line - Que estilo de vida caracteriza os pomeranos?

Vânia Grim Thies – Eles têm um estilo de vida simples, ligado à religiosidade com seus rituais de batismo, confirmação, casamento. As festas nas comunidades religiosas são, na maioria das vezes, ligadas ao calendário litúrgico. Por vezes, os pomeranos são tomados como “desconfiados” e “teimosos”, mas na verdade é uma tentativa de estigmatização, já que esse povo teve boa parte de sua história “germanizada”.

IHU On-Line - Como os pomeranos são vistos no imaginário social brasileiro e alemão?

Vânia Grim Thies - Os pomeranos são vistos como alemães pelos brasileiros. São vistos da mesma maneira também pelos próprios alemães. Sempre que se fala em pomeranos, percebe-se que eles estão agrupados entre os alemães, embora sejam um grupo diferente.

IHU On-Line - Qual o papel da mulher na comunidade pomerana? Além de ser responsável pela educação dos filhos, que outras funções ela desempenha na vida social da comunidade?

Vânia Grim Thies - A mulher pomerana, embora não apareça explicitamente na história e no contexto da imigração, exerce um importante poder na tomada de decisões. São as mulheres que cuidam do entorno da casa e da produção da culinária, por exemplo. São elas que mantêm em movimento uma grande parte dos “saberes” culturais. A cultura masculina “impõe” que o homem fale. Nas comunidades rurais em que estou realizando uma pesquisa (Solidez e Nova Gonçalves, em Canguçu, Rio Grande do Sul), posso afirmar que as mulheres “guardam” muito das histórias de seus antepassados, ou seja, elas são produtoras da memória no contexto em que vivem.

IHU On-Line - O que os estudos de campo nas comunidades pomeranas revelaram sobre o estilo de vida e os rituais desse povo, não contados pela historiografia alemã oficial?

Vânia Grim Thies - Um dos pontos principais diz respeito à vinda deste povo para o Brasil. A versão da história oficial conta que os pomeranos embarcaram para o país, e que aqui ganhariam terras, garantindo o sustento da família. Na verdade, era preciso desbravar os matos, construir uma moradia, iniciar o plantio para pagar as próprias terras (a um alto juro). Só depois de finalizar os pagamentos, ganhavam a escritura e a posse da colônia. Os estudos de campo revelam que parte da história não foi contada da maneira como verdadeiramente aconteceu.

IHU On-Line - Em que sentido a língua portuguesa introduzida nas escolas e o contato com outras etnias contribuiu para a transformação da cultura pomerana, principalmente entre as crianças? 

Vânia Grim Thies - Em primeiro lugar, a língua pomerana caracteriza-se por ser essencialmente oral. Há, na atualidade, algumas iniciativas por parte de pesquisadores, principalmente do Espírito Santo, de torná-la uma língua com grafia. Porém, é necessário observar que, no contexto da imigração, a língua pomerana foi abarcada pelo alemão oficial, sendo este ensinado nas escolas. Nas entrevistas, constata-se que o pomerano era a língua falada em casa, entre os familiares, enquanto o “hoch deutsch”, o “alto alemão”, ou “alemão puro”, era falado nas escolas, igrejas, no meio social. Mais tarde, a língua portuguesa trouxe o “abrasileiramento” na medida em que foi proibido o uso de outra língua senão a “oficial”. Esse fato permitiu que, aos poucos, tudo o que era próprio da cultura pomerana fosse perdendo a legitimidade.

IHU On-Line - Que aspectos da cultura e tradição pomerana ainda são seguidos nas comunidades estudas pela senhora?

Vânia Grim Thies -  Aspectos que estão ligados à culinária como a schmier (doce feito no tacho), a fabricação de compotas, o pão e a cuca feita no forno de rua. Sabe-se, também, que o pomerano não dispensa a coberta feita com penas de ganso, nos meses de inverno. Outros aspectos observados estão relacionados com a religião. Um deles é a lembrancinha de batismo ofertada pelos padrinhos aos afilhados. Entre os jovens, ainda persiste a tradição da confirmação. Ou seja, após realizarem a primeira eucaristia, eles podem participar dos bailes, como se a confirmação fosse o “termo de maioridade”.

As festas de casamento ainda estão bastante vivas nas comunidades pomeranas, embora com algumas adaptações, envolve um grande grupo de pessoas para os preparativos. Muitas festas ainda são realizadas durante o dia, animadas ao som de bandinhas e tendo a sopa como parte do cardápio principal. A serenata do Stüpper ainda acontece na noite que antecede o dia da Páscoa, na qual um grupo fantasiado e embalado por uma gaita sai para visitar as casas e acordar os moradores com uma alegre cantoria. Os feriados alongados (um, dois dias após o feriado propriamente dito) também são uma característica que ainda permanece nas comunidades rurais pomeranas.

IHU On-Line - Qual é o papel da escola no processo de resgate, manutenção e silenciamento da cultura pomerana?

Vânia Grim Thies - A escola pode resgatar a cultura para fazer o entendimento dos processos culturais, mantendo “acervos vivos”, ou pode desconsiderar toda a bagagem cultural do contexto em que está inserida, provocando o silenciamento da cultura. Nas escolas trabalhadas, o que se busca é o resgate e manutenção da cultura pomerana, com os pais, comunidade local, professores e alunos, através da sensibilização da memória. Trabalhamos, hoje, com a idéia da cultura pomerana na Serra dos Tapes, ou seja, em cidades localizadas no sul do Rio Grande do Sul, principalmente em comunidades rurais de Canguçu e São Lourenço do Sul.
 
IHU On-Line - Como os jovens pomeranos lidam com as memórias de seus antepassados? Há preocupação em resgatar e celebrar os aspectos históricos desse povo?

Vânia Grim Thies -  A germanização da cultura e o processo de “calar” já fizeram com que os jovens pomeranos deixassem de conhecer muito dos aspectos históricos da própria cultura. Percebe-se que não há, entre eles, a preocupação em resgatar os aspectos históricos. O trabalho desenvolvido nas escolas tem uma tarefa fundamental de reacender nas crianças e jovens a importância do resgate e do conhecimento dos processos culturais do povo pomerano.

IHU On-Line - Nas sessões de coleta de cultura material e imaterial realizada nas escolas, que objeto ou história mais lhe chamou atenção em relação à cultura pomerana?

Vânia Grim Thies - São as histórias que não estão registradas em nenhum livro, apenas na tradição contada entre as gerações, guardadas na memória deste povo, como, por exemplo, a confecção das vestimentas, as invenções de instrumentos agrícolas para o trabalho na lavoura, entre outras. Através das histórias e objetos materiais, observa-se o modo de vida e a produção da cultura local, ou seja, a comunidade, produz a sua história. No entanto, essas histórias não serão usadas no presente para reviver fatos passados, mas servem para o entendimento de um contexto histórico que acabaram por produzir a sociedade em que atualmente vivemos e o contexto no qual estão localizadas as comunidades pomeranas.

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