Edição 270 | 25 Agosto 2008

A melhoria da renda não é sinônimo de aumento da classe média

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Graziela Wolfart

Importância do reequilíbrio regional brasileiro: Ladislau Dowbor aponta que não só está havendo crescimento, como está havendo mais crescimento nas regiões mais pobres

“Quando as pessoas começam a comemorar porque estamos diante de uma grande classe média, portanto o Brasil está acomodado e estamos bem, significa que não estão vendo a imensa desigualdade regional herdada, a desigualdade de remuneração entre homens e mulheres e as desigualdades menos medidas, como as de raça.” A afirmação é do professor Ladislau Dowbor, em entrevista concedida por telefone para a IHU On-Line. Para ele, “a tese de que as pessoas, ficando um pouco mais prósperas, se acomodam, não é comprovada por nenhuma estatística”. Dowbor destaca ainda a melhoria da renda da população brasileira em geral, mas considera arriscado dizer que isso é sinônimo de aumento da classe média.

Economista e professor no PPG em Administração da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Ladislau Dowbor é formado em Economia Política, pela Universidade de Lausanne, Suíça, e doutor em Ciências Econômicas, pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia. Seu livro mais recente é Democracia Econômica – Alternativas de gestão social (Petrópolis: Vozes, 2008). Confira na página pessoal do pesquisador http://dowbor.org artigos e publicações.  

IHU On-Line - Podemos identificar realmente uma nova classe média? O que poderia ser caracterizado como essa nova classe social?

Ladislau Dowbor – O primeiro ponto é saber se podemos classificar de “nova classe média” o que era antigamente considerado como classe média: uma burguesia dona de pequenos meios de produção, de pequenas empresas, de comércio e iniciativas empresariais de pequeno porte. Era o que chamávamos de pequena burguesia. Esse tipo de classe média mudou bastante de caráter, pela mudança, inclusive, das próprias profissões. A ascensão atual está relacionada ao acesso ao emprego formal e acho muito exagerado qualificar isso como aumento da classe média. No conjunto, temos uma massa de gente que vive com bastantes dificuldades e é extremamente ampla. Chamamos de “classe média” porque ela está ali no meio. Em termos de renda, é uma massa de gente que não se compara, por exemplo, com essa imensa classe média que temos na Europa ou em países desenvolvidos.     

IHU On-Line – Então existe diferença entre dizer que um conjunto de pessoas entrou na classe média e um conjunto de pessoas saiu da pobreza?

Ladislau Dowbor – Exatamente. A partir de uma visão estatística, temos aquelas pessoas “do meio”, que são aquelas que chegaram a certos confortos elementares, como a geladeira em casa, por exemplo. Mas, se levarmos em consideração o peso que representa para essas pessoas a conta do telefone, do celular e as dívidas bancárias, chegaremos à conclusão de que elas compõem um segmento social ainda extremamente exprimido. O fato de que mais pessoas estejam no meio da escala social não deve encobrir o fato de que o Brasil ainda é um país essencialmente organizado para o terço mais próspero e com uma imensa massa de exclusão social. O Brasil sempre teve a tendência de reduzir a pobreza ao que aqui se chamavam de “bolsões”. Esse bolsão é tranqüilamente a metade da população brasileira, portanto um bolsão razoável. No caso da pesquisa do Ipea, constata-se que 51% da população estava na informalidade. Como no governo atual os avanços têm sido muito significativos na formalização do emprego, temos avançado bastante nesse processo, mas relativamente, numa situação de imenso atraso. A direção é positiva, mas o caminho a andar ainda é longo, para que possamos dizer que temos tantas pessoas incluídas assim.

IHU On-Line – Além do aumento do salário mínimo e das políticas sociais de erradicação da pobreza e da fome, que outros fatores ajudam a compreender esse fenômeno? 

Ladislau Dowbor – Há um processo em curso. Talvez a excessiva insistência sobre a classe média não seja tão adequada, pois é o conjunto da população que está começando a melhorar a sua situação. A última pesquisa do IPEA mostra que houve uma fortíssima redução das pessoas ditas indigentes (que têm uma renda de até um quarto do salário mínimo ), baixando de 14% para 7%, ou seja, houve um corte pela metade. Isso é extremamente importante, pois são pessoas jogadas em situações de crueldade, sem oportunidades para sair da miséria em que foram relegadas. Os chamados “pobres”, que ganham até metade do salário mínimo, tiveram uma redução muito forte, em torno de 7% e isso é muito significativo. A parte de baixo está subindo, mas a mesma pesquisa mostra que houve um grande aumento dos muito ricos no país, que estão beirando agora meio milhão de pessoas. Há um processo de avanço geral, que engorda as faixas estatísticas de cima. Esses são os resultados e, por trás, temos mecanismos. Os mecanismos básicos resultam de uma convergência de fatores e é bom especificá-los. Existe a expansão do emprego (provavelmente esse é o mais importante), que na gestão do atual governo é da ordem de 10 milhões de empregos e isso é gigantesco, ainda mais porque de três a cada cinco são empregos formais. Temos, também, um segundo eixo de imensa importância que é o resgate do salário mínimo no país. Há diversas cifras, mas a realidade é que, no conjunto, a capacidade de compra do salário mínimo no Brasil mudou radicalmente. Em relação à ordem de grandeza, podemos dizer que aumentou quase um terço a capacidade de compra das pessoas com o salário mínimo. E, como o salário mínimo é referência para as aposentadorias, elas também tiveram uma forte elevação. Trata-se de uma área esquecida, mas as pessoas aposentadas, em geral, vivem numa situação extremamente precária. O país sempre foi muito cruel com os que deixaram de fazer parte da população ativa.

Políticas redistributivas para dinamizar as atividades   

A isso temos que acrescentar, evidentemente, o Bolsa Família, que atinge cerca de 50 milhões de pessoas, além do Pronaf,  que atinge uma ordem de grandeza de oito milhões de pessoas, num apoio importante a processos produtivos. Nesse momento, ainda não se sente o impacto, o que vai acontecer dentro de alguns anos, do Programa Territórios da Cidadania . São 11,3 bilhões de reais para 958 municípios inicialmente e o dobro no ano que vem. Esse último ainda não entra no nível dos impactos, mas os outros constituem uma convergência de uma política que é relativamente nova no Brasil, que não consiste em enriquecer os ricos. Na ordem comum, os ricos investem, geram empregos, e, portanto, melhoram a situação do povo. Agora, procede-se de maneira inversa: redistribui-se a renda para segmentos mais fragilizados, que aumentam a demanda, dinamizam a pequena produção e, gradualmente, dinamizam a conjuntura econômica de todo o país. Finalmente, termina repercutindo de maneira positiva para os próprios ricos, ao se elevar a taxa de crescimento. Essa dinamização pela redistribuição de renda, via Estado, e a geração de um fluxo de demanda que dinamiza o conjunto de atividades, é uma visão tradicional, keynesiana  (para citar a teoria econômica), mas que está funcionando. O processo que ocorre é esse: nas regiões mais golpeadas pela pobreza no Brasil, onde houve aportes, é interessante constatar que o processo é mais forte ainda. A PNAD 2007 constata que em um ano houve um aumento de renda oriunda do trabalho (média) no Brasil da ordem de 7,2%, sendo que no Sudeste foi de 6% e no Nordeste de 12%, ou seja, não só está havendo crescimento, como está havendo mais crescimento nas regiões mais pobres. Esse é outro tipo de reequilíbrio que o Brasil precisa: o reequilíbrio regional e não só entre classes sociais. 

IHU On-Line – Mas a desigualdade ainda é grande, professor... 

Ladislau Dowbor – Bato palmas para o que você diz, porque é exatamente o que eu digo. Estamos caminhando na direção certa, mas com bastante atraso diante de um imenso caminho que há pela frente. Quando as pessoas começam a comemorar porque estamos diante de uma grande classe média, portanto o Brasil está acomodado e estamos bem, significa que não estão vendo a imensa desigualdade regional herdada, a desigualdade de remuneração entre homens e mulheres e as desigualdades menos medidas, como as de raça.

IHU On-Line – O senhor não acha irônico comemorar que mais pessoas saíram da indigência para viver na pobreza?

Ladislau Dowbor – As coisas são relativas. Posso dizer que isso é indiscutivelmente positivo, mas é apenas o início de uma caminhada. Nesse sentido, vejo que qualquer oposição a essas políticas é simplesmente burra em termos de compreensão das dinâmicas. Devemos, sim, fazer oposição ao governo, pressionando-o para que ele faça muito mais, mas não para travar essas políticas redistributivas. É importante entender que a tese de que as pessoas, ficando um pouco mais prósperas, se acomodam, não é comprovada por nenhuma estatística. Os pobres, quando têm um pouco mais de renda, se tornam mais ativos, porque o pouco dinheiro que têm se torna um trampolim para um conjunto de atividades: passam a querer consumir mais e melhor, a querer mais coisas para seus filhos, para suas famílias, querem melhorar o telhado da casa, melhorar o equipamento doméstico etc., e isso gera um estímulo de dinamização. 

IHU On-Line – O senhor aponta um estímulo ao consumo. Mas como define o perfil da classe média em função de um possível conformismo social e político?

Ladislau Dowbor – Em inúmeros países onde vemos muitos avanços econômicos, constatamos que as classes médias costumam ser as mais radicais. Em geral, não são os pobres os que mais agitam e ameaçam. O paralelo entre movimentos políticos e o nível de renda não é correto, não se comprova. Basta lembrar que os grandes movimentos sociais durante a ditadura, por exemplo, eram fundamentalmente de classe média. Isso envolve um processo de tomada de consciência, que é muito mais importante do que simplesmente simplificar com a condição de “barriga cheia”. O que acontece, entre os pobres, exige que eu lembre uma cifra mais ampla, porque essa temática da inclusão está sendo discutida no plano internacional. Não somos uma ilha. O Banco Mundial publicou um documento que se chama “Os próximos quatro bilhões”, que constata que no Planeta quatro bilhões de pessoas não têm acesso ao que se chama de os benefícios da globalização. São quase dois terços da humanidade. Construir uma dinâmica de inclusão dessa imensa massa de gente, que está ficando de fora da modernização, é algo vital. Por isso, as políticas sociais no Brasil estão sendo acompanhadas com tanta atenção internacionalmente. Vamos encontrar as experiências do Brasil analisadas em documentos internacionais da Europa, do Banco Mundial, das Nações Unidas etc., porque há uma consciência de que o conjunto das políticas que o Brasil está desenvolvendo (são mais de 100 programas sociais) é algo inédito internacionalmente. O sistema, tal como é, com suas corporações e com esse tipo de mecanismo de gestão capitalista atual, não inclui as pessoas de maneira ampla. De um lado, temos uma política redistributiva, que tenta empurrar o “andar de baixo”, mas, por outro lado, temos um sangramento de recursos por especuladores financeiros, por rentistas de diversos tipos, que trava fortemente o processo de dinamização da economia. Isso é importante para entender que a desigualdade não vem do século XIX. Ela está sendo reproduzida por determinados mecanismos hoje.         

IHU On-Line – Considerando essa melhora, que futuro podemos vislumbrar para os próximos cinco anos no Brasil? Que tendências se apresentam, lembrando que daqui a dois anos teremos troca de governo federal?

Ladislau Dowbor – Qualquer que seja o futuro governo, há algo novo no cenário político, que é o esclarecimento das classes mais pobres, dessa metade mais pobre da população, onde não vamos mais encontrar aquele matuto perdido no interior, que acha que as coisas são assim e sempre vão ser assim. As pessoas assistem à televisão, conversam, muitas passaram pela escola e sabem que é possível viver de outra maneira. A pressão que se gerou no Brasil se manifestou fortemente na votação do segundo turno e se manifesta nos movimentos em toda a América Latina. Acredito que, mesmo com a mudança de governo, é difícil que haja fortes retrocessos. O eixo de reduzir as grandes tensões sociais e regionais da hierarquia social tende a se manter. Um segundo eixo é o ambiental, que abre relativamente menos uma ameaça do que uma oportunidade. Somos o país com a maior reserva de terras paradas no Planeta hoje. Nós temos água e temos clima. A agricultura hoje tem preço, uma imensa demanda mundial, e o Brasil está com a faca e o queijo na mão. Vai depender de aproveitar essa oportunidade de mercado.

IHU On-Line - Como entender a demonstração da pesquisa do IPEA, que aponta que os ganhos de produtividade do trabalho estão crescentemente acima dos ganhos propriamente salariais? Como falar de aumento da classe média em uma sociedade onde temos uma progressiva redução do salário em relação aos ganhos possibilitados pelo trabalho?

Ladislau Dowbor – Isso é planetário. Está gerando imensas tensões nos Estados Unidos, na medida em que os imensos avanços de produtividade, em função dos avanços das tecnologias, não têm revertido para a massa da população e têm se transformado cada vez mais em processos especulativos, que inclusive geraram os desequilíbrios atuais naquele país. No Brasil, o aumento de produtividade do trabalho foi da ordem de um pouco mais de 20% e o aumento dos salários dessa produtividade foi de apenas 10%. É uma perda de posição dos salários dentro do conjunto de acesso à renda. Isso pode ser um efeito diferente da formação de uma dita classe média, mas deve reforçar a mobilização dos trabalhadores, porque, para o futuro do país, é essencial que haja um equilíbrio da progressão econômica, no mínimo, para se equilibrar a progressão dos “de baixo” e dos “de cima” e, se possível, acelerar mais a renda dos “de baixo”. Na medida em que for progredindo a expansão do emprego, acredito que caminharemos para uma capacidade de pressão maior dos trabalhadores. A mais longo prazo, precisamos evoluir para colocar no debate a redução geral da jornada de trabalho, o que se chama de “trabalhar menos para trabalharem todos”.   

IHU On-Line - Qual a contribuição da renovação etária na economia para esse aumento da chamada “classe média”?

Ladislau Dowbor – Estamos numa fase de progressão da parte não ativa da população, a parte idosa da população, que está aumentando com rapidez. Isso ainda é resquício de quando, nos anos 1950, 1960, tínhamos taxas de natalidade muito altas. Esse processo, dentro de algumas décadas, vai se equilibrar. Nesse momento, a relação entre ativos e inativos vai tencionar, evidentemente, a previdência. Como o Brasil tem uma imensa capacidade de expansão de sua capacidade produtiva, gerar mais demanda não é uma tragédia, mas um estímulo para o aparelho produtivo. A curtíssimo prazo, isso pode tencionar os preços, mas nunca é uma ameaça real do “dragão” que reaparece e outras bobagens do gênero.  

IHU On-Line - Podemos estabelecer relações entre essa euforia diante do aumento da dita classe média e uma possível mudança ideológica do PT?  

Ladislau Dowbor – Em geral, os partidos tendem a ter menos peso, enquanto que os movimentos sociais tendem a ter mais peso nos movimentos políticos. Vivemos numa sociedade muito mais interativa. Muito mais gente pertence às mais variadas associações e movimentos do gênero. São novas tendências. Dentro do PT, a classe média sempre foi forte, porque é bastante forte em todos os processos decisórios, pelo próprio acesso privilegiado à educação. Há também o reverso, que é importante: cada vez mais as pessoas têm consciência dos seus direitos e das possibilidades de viver melhor. Na história tradicional do Brasil, a política se deu sempre no andar de cima, até a chegada da democracia. A tomada de consciência e a organização de movimentos sociais nos meios mais pobres está transformando a situação e isso pelos mais variados mecanismos. As pessoas passaram a se articular e, com isso, a política deixa de trabalhar apenas com indivíduos. Os movimentos estão se tornando cada vez mais presentes na política, e o PT terá de levar isso muito mais em consideração. Aquela visão tradicional da hierarquia, da pirâmide de poder, dentro dos partidos, é um processo que está mudando.

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>> Confira outras entrevistas concedidas por Ladislau Dowbor. Acesse nossa página eletrônica

Entrevistas:

* A lógica do sistema é simplesmente insustentável ambientalmente. Notícias do Dia do sítio do IHU, de 15-04-2007

* Catástrofe em câmara lenta. Voltar ao bom senso, eis o desafio! IHU On-Line número 258, de 19-05-2008

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