Edição 269 | 18 Agosto 2008

Contribuições da espiritualidade de Charles de Foucauld em contexto de pluralismo cultural e religioso

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Bruna Quadros

Para Edson Damian, Charles de Foucuald torna-se um presente de Deus para a renovação da Igreja

“Num mundo que parece cada vez mais curvado diante do material, do conforto e do consumismo, ele significa uma resposta a esta sede de espiritualidade que marca os nossos dias.” Esta é a definição do padre Edson Damian sobre Charles de Foucauld, que concedeu uma entrevista, por e-mail, à revista IHU On-Line. Ao destacar os aspectos centrais da espiritualidade foucauldiana, Damian afirma que a espiritualidade foucauldiana é um contraponto para quem se sente mais evangélico no silêncio da oração, na adoração silenciosa da Eucaristia, na busca do deserto, no serviço aos pobres e na defesa da vida, e no anonimato inspirado na vida oculta de Jesus em Nazaré. A situação das tribos indígenas de Raposa Serra do Sol, em Roraima, também foi abordada na entrevista. Sobre este assunto, Damian destaca que, se o Supremo Tribunal Federal interferir na retirada dos povos das suas terras, significará retroceder à perspectiva integracionista que, do ponto de vista antropológico, cultural e histórico, completará o processo de genocídio dos povos indígenas iniciado com a invasão e a colonização em 1500. 

Edson Damian, gaúcho de Santa Maria, foi ordenado sacerdote por dom Ivo Lorscheiter  em 1975. Durante 6 anos, em Brasília, foi assessor do Setor Vocações e Ministérios da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. É membro da Fraternidade Sacerdotal Jesus Cáritas, um dos dezoito ramos da família espiritual do bem-aventurado Carlos de Foucauld. Desde 1999, é missionário na diocese de Roraima, igreja-irmã da diocese de Santa Maria.

IHU On-Line - Quais são os aspectos centrais da espiritualidade de Charles de Foucauld?

Edson Damian - O teólogo Yves Congar  disse que Teresinha de Lisieux  e Charles de Foucauld  foram os grandes faróis do século XX. Louis Massignon  considera Foucauld um místico em estado puro, um apaixonado de Jesus que fez da religião um amor. Nele, fé e amor nunca existiram separados. O Espírito Santo sempre age de forma nova e criativa na história do mundo e da Igreja. Ele é livre para suscitar homens e mulheres que nos surpreendem pela radicalidade no seguimento de Jesus, pela prática do Evangelho, e suscita novos impulsos e formas inesperadas de espiritualidade e evangelização. Foucauld deixou-se conduzir pelo vento da liberdade e da criatividade do Espírito. Por isso, seu carisma e testemunho nos surpreendem. De forma radical, ele convida a Igreja toda a voltar ao Evangelho para encontrar Jesus, a seguir Jesus, o único modelo, isto é, ir às raízes daquilo que faz com que uma existência seja realmente cristã e evangelizadora. Todos os que salientam a novidade do testemunho de Charles de Foucauld, desde René Bazin , seu primeiro biógrafo, até Jacques Maritain , filósofo que se tornou Irmãozinho de Jesus, passando por Paul Claudel  e muitos outros, insistem sobre o caráter radical de sua experiência de Deus. Desde o momento em que de Foucuald foi lançado e conquistado por Jesus, sua vida permaneceu centrada no mistério do absoluto de Deus em quem se abandonou perdidamente. Sua vida, marcada por extremos, passou por sucessivas conversões. “É preciso mudar muito para permanecer o mesmo”, ensina-nos Dom Helder Câmara . Semelhante a muitos jovens de hoje, Foucauld perdeu a fé na adolescência e amargou o vazio e a solidão. Reencontrou Jesus através da mediação dos muçulmanos que lhe causaram profundo impacto na Argélia, dos judeus que o protegeram durante a longa expedição no Marrocos, da prima Maria de Bondy, do Pe Huvelin, sábio conselheiro espiritual, dos monges trapistas com os quais conviveu durante seis anos, das irmãs clarissas que o acolheram em Nazaré, dos pobres e tuaregues do Sahara que se tornaram também seus mestres na última etapa de sua vida. Entre Deus e nós, existe sempre a mediação humana. Sobretudo em Nazaré, descobriu a santa humanidade de Jesus, rosto humano de Deus e rosto divino do homem. Num tempo em que a religiosidade orna-se de ruídos, balbúrdia de palavras e jogos de efeito, a espiritualidade foucauldiana é um contraponto para quem se sente mais evangélico no silêncio da oração, na adoração silenciosa da Eucaristia, na busca do deserto, no serviço aos pobres e na defesa da vida, no anonimato inspirado na vida oculta de Jesus em Nazaré. Bem antes do Concilio Vaticano II, Foucauld começava a praticar o que chamamos de macroecumenismo. “Estou aqui não para converter os tuaregues, mas para compreendê-los. Acredito que o Bom Deus acolherá no céu aqueles que forem bons e honestos. Os tuaregues são muçulmanos, mas Deus receberá a todos, se merecermos.” Diante de tantos preconceitos raciais, culturais, religiosos e sociais que geram conflitos e exclusões em toda a parte, o Irmão Universal nos ensina que somos diferentes, mas profundamente iguais em dignidade e direitos. Precisamos a aprender a dialogar sem julgar, sem impor, sem condenar.

IHU On-Line - Como o senhor explica o fato de que, ao morrer, Charles de Foucauld não tinha nenhum seguidor ou discípulo que continuasse sua obra, e depois de sua morte a família espiritual foucauldiana floresceu e cresceu ao ponto de estar presente em diferentes lugares do mundo?

Edson Damian - Durante sua vida, Foucauld não conseguiu companheiros que o acompanhassem e colaborassem com ele na missão de levar o Evangelho aos mais afastados. Os poucos que se dispuseram a aceitar seu convite agüentaram por pouco tempo a pobreza e o ritmo intenso de oração e trabalhos vividos e propostos por ele. Além disso, sua vida transcorreu escondida e muito longe de tudo e de todos. Após sua morte, quando foi divulgada sua biografia e começaram a publicar seus numerosos escritos, principalmente as originais meditações do Evangelho, surgiram vários grupos que se propõem concretizar sua mensagem e vigorosa espiritualidade. Hoje são cerca de vinte agrupamentos: onze congregações religiosas e oito associações de fiéis, espalhados pelos cinco continentes. Além dos membros das congregações e associações de fiéis, há muitíssimos homens e mulheres que, tal como o fermento na massa, vivem, rezam, evangelizam seguindo as pegadas foucauldianas em todos os continentes. Entre nós, o bispo Dom Luiz Cappio  se parece muito com Foucauld. Há muitos anos, convive como missionário itinerante entre os pobres ribeirinhos do Rio São Francisco. Conhece de perto a miséria e o abandono em que vivem milhares de famílias. Tem consciência de que a transposição do rio beneficiará o agronegócio ou negócio dos grandes em prejuízo dos pequenos, sempre excluídos dos mega projetos governamentais. A greve de fome foi um gesto profético que testemunha de forma indubitável a evangélica opção preferencial pelos pobres irmanada com a defesa da vida do rio, fonte da vida do povo. E a Igreja não pode deixar de se alegrar, quando a novidade de Cristo e a verdade do Evangelho se irradiam além dos marcos habituais. Com a beatificação, Charles de Foucuald torna-se um presente de Deus para a renovação da Igreja. Num mundo que parece cada vez mais curvado diante do material, do conforto e do consumismo, ele significa uma resposta a esta sede de espiritualidade que marca os nossos dias.

IHU On-Line - Como e onde está presente a família de Charles de Foucauld no Brasil?

Edson Damian - No Brasil, existem as Fraternidades dos Irmãozinhos de Jesus, Irmãozinhos do Evangelho, Irmãzinhas de Jesus, Fraternidade Jesus Cáritas (leigas consagradas), Associação Carlos de Foucauld, Fraternidade Sacerdotal Jesus Cáritas (padres diocesanos), Fra¬ternidade Secular (leigos e leigas), Fraternidade Missionária, Sodalício Carlos de Foucauld e Comunidade de Damasco. Os grupos se caracterizam pelo acolhimento fraterno, pela abertura para o outro, pela vida simples, pelo compro¬misso com os excluídos, pela leitura oral da Bíblia, pela oração e pela adoração eucarística. Procuram estar presentes entre os mais pobres onde a pastoral institucional das paróquias geralmente não consegue chegar. Muitos são operários, domésticas, exercem trabalhos artesanais. Além de procurar viver como Jesus de Nazaré, assumem o trabalho como porta de entrada para descobrir os sofrimentos e as esperanças, a cultura e a religiosidade dos pobres.

IHU On-Line - Como sacerdote diocesano, qual é sua vinculação com a espiritualidade de Charles de Foucauld?

Edson Damian - Entre os ramos da família espiritual foucauldiana, encontra-se a Fraternidade Sacerdotal Jesus Cáritas, que congrega aproximadamente 5.000 padres diocesanos. Procuramos viver a espiritualidade de Charles de Foucuald conservando todas as características e vínculos de pertença a uma diocese. Fundamental é o grupo de cinco ou mais padres que procuram reunir-se mensalmente para partilhar a vida e o ministério, fazer a revisão de vida, aprofundar a espiritualidade do presbítero diocesano, rezar e fazer a leitura oral juntos. Em janeiro, sempre acontece, em algum lugar do Brasil, o retiro espiritual de uma semana nos moldes da espiritualidade da Fraternidade. A cada dois anos, realiza-se o Mês de Nazaré que possibilita o exercício dos meios da espiritualidade de Charles de Foucauld para aqueles que desejam conhecer mais e também comprometer-se com a Fraternidade.

IHU On-Line - O senhor é missionário na diocese de Roraima. Como o senhor descreve a situação dos povos indígenas, que ocupam um 46,35% da área do estado? Qual é a contribuição dos mesmos para Roraima?

Edson Damian - A população de Roraima é de aproximadamente 400.000 habitantes, dos quais 50.000 são índios de diferentes etnias. Não fossem os arragaidos preconceitos e o racismo exacerbado das elites contra os índios, este estado poderia vangloriar-se e enriquecer-se com os valores pluriétnicos e pluriculurais destes povos. Os mais conhecidos são os Yanomami, considerados os povos mais primitivos do planeta. Depois de avassaladores impactos sofridos por milhares de garimpeiros na década de 80, tiveram suas terras homologadas pela pressão internacional da ECO Rio  de 1992. Há tempo, os Macuxi, Wapixana, Patamona, Ingaricó, Wai-Wai, Waimiri-Atroari, Yecuana vivem em contato com os não-índios. Muitos tiveram suas áreas homologadas em ilhas. Devido ao crescimento populacional e ao jeito indígena de cultivar a terra, a maioria destas áreas dispõe de menos terra que os assentamentos do INCRA. São, portanto, inviáveis para a sobrevivência dos índios e dos seus valores culturais. Além disso, é bom não esquecer todos os incômodos, afrontas e desprezo que recebem dos não-índios que cercam as terras deles.

IHU On-Line - Qual é a sua visão a respeito da situação de Raposa Serra do Sol? Qual a posição da Igreja local em relação ao conflito?

Edson Damian - A prática frustrante da homologação das áreas indígenas em ilhas realizadas em Roraima foi determinante para que as Tribos Indígenas de Raposa Serra do Sol (TIRSS) lutassem por mais de 30 anos para ter a terra homologada em área contínua. É bom lembrar que a TIRSS equivale a 7,7% do território de Roraima e aproximadamente 20.000. A Constituição de 1988 explicitou os direitos dos índios sobre suas terras e afirmou o caráter originário desses direitos. É inconcebível que, neste novo milênio, se recorra outra vez a casuísmos para expulsar os índios das áreas que passaram a ser cobiçadas pelo agronegócio e pelas mineradoras, repetindo assim práticas que deveriam nos envergonhar. A ocupação tradicional indígena sobre a extensão integral da TIRSS é comprovada por copiosa documentação histórica. Foi identificada pela Funai em 1993, com a extensão atual, depois foi demarcada administrativa e fisicamente durante o governo Fernando Henrique Cardoso, e, finalmente, homologada pelo governo Lula em 2005, tendo sido rejeitadas todas as contestações apresentadas.  As terras indígenas são bens de propriedade da União, indisponíveis e inalienáveis, e hoje prestam relevantes serviços ambientais ao país, ao proteger as florestas contra o avanço do desmatamento, que destrói as fontes de água, altera o regime de chuvas e elimina a biodiversidade. Raposa Serra do Sol não é a única e nem a maior terra indígena situada em faixa de fronteira; a demarcação dessas terras contribuiu para a regularização fundiária, reduziu conflitos e não criou qualquer dificuldade para a atuação do Estado e das Forças Armadas em particular, mesmo em regiões mais críticas, como a fronteira com a Colômbia. Nunca surgiu em nenhuma Terra Indígena qualquer movimento que atentasse contra a integridade do território nacional, nem qualquer ação insurgente contra o Estado brasileiro. Nada mais mentiroso e falso do que dizer que a TIRSS coloca em risco a segurança nacional.   Por tudo isto, a Diocese de Roraima espera que o STF não tarde a se pronunciar sobre o caso, encerrando essa polêmica que prolonga conflitos desnecessários, reafirmando a plenitude dos direitos constitucionais indígenas e a sua harmonia com os interesses nacionais.

IHU On-Line - Que tipo de conseqüências políticas e sociais poderiam ser provocadas por uma possível decisão do Supremo Tribunal Federal contrária à demarcação das terras indígenas de Raposa Serra do Sol?

Edson Damian - No próximo dia 27 de agosto, o Supremo Tribunal Federal deve decidir sobre Raposa Serra do Sol , ou seja, se permite que os invasores continuem a explorar o território ou se os retira, deixando as terras aos índios. Percebemos que o STF está submetido aos militares e está sendo muito bombardeado por informações incorretas sobre a situação de Raposa Serra do Sol. A visão militar é de entrega do patrimônio público para a exploração, querendo desenvolvimento a qualquer custo e ritmo. Para os militares, soberania é povoar, como fizeram na ditadura, onde a Amazônia era terra para homens sem-terras. Hoje, querem povoar a região com pessoas e empresas de qualquer maneira, porque isso seria assegurar o desenvolvimento. O que eles verdadeiramente querem, no entanto, é entregar os territórios indígenas para as grandes empresas, porque acham que isso está garantindo a presença da sociedade nacional ali. Com relação às terras indígenas, de maneira geral, os militares não vêem com bons olhos, porque não gostaram dos artigos 231 [1] e 232 [2] da Constituição Federal. Esses artigos reconhecem aos índios o direito aos seus territórios, formas próprias de vida, projetos próprios enquanto povos diferenciados no interior do Estado nacional. Eles não gostaram disso e nunca aceitaram a Constituição Brasileira, no que diz respeito aos direitos indígenas. Outro problema reside no poder Legislativo estar muito desprestigiado. O governo federal é muito frágil em tomar decisões e implementá-las. O STF acaba tomando para si um lugar que não é dele, ou seja, ocupando espaços de outros na tomada de decisão. Estamos muito preocupados com o que a decisão do STF poderá significar, pois existem informações, através dos missionários do Cimi  que atuam em todo o país, e percebemos como este caso repercute em diferentes regiões. Há fazendeiros em Santa Catarina dizendo que, quando sair o veredito do STF, eles vão investir contra as terras dos indígenas deste estado. No Mato Grosso do Sul e no Nordeste, está acontecendo a mesma movimentação, tendo em vista o agronegócio e a mineração. Nunca é demais enfatizar que terras indígenas pertencem à União, imunes à cobiça dos latifundiários, dos empresários do agronegócio, da cobiça internacional. Os índios têm apenas usufruto das terras da União. Se a decisão do STF não for favorável aos índios, voltaremos à situação anterior à Constituição de 1998. O objetivo era “integrar” os índios na sociedade nacional e não reconhecer seus direitos históricos. Em última instância, significará retroceder à perspectiva integracionista que, do ponto de vista antropológico, cultural e histórico, completará o processo de genocídio dos povos indígenas iniciado com a invasão e a colonização em 1500.

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