Edição 269 | 18 Agosto 2008

Ninguém está acima da lei

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Márcia Junges

Julgamentos e punição de torturadores auxiliam na construção do Estado de Direito, acredita a cientista política Kathryn Sikkink. Julgamentos também simbolizam valores de uma sociedade democrática, e a tortura, enquanto crime contra a humanidade, não prescreve

A cientista política do departamento de Ciências Políticas da Universidade de Minnesota Kathryn Sikkink afirmou, com exclusividade à IHU On-Line, por e-mail, que “os julgamentos e a punição de torturadores ajudam a construir o Estado de direito, deixando claro que ninguém está acima da lei. Além disso, a punição deixa claro que haverá ‘custos’ para os agentes individuais do Estado que se envolverem em abusos dos direitos humanos, e isto pode ajudar a prevenir futuras violações de direitos humanos”. E completa: “Os julgamentos também são acontecimentos altamente simbólicos que comunicam os valores de uma sociedade democrática em favor dos direitos humanos e do Estado de direito”. Em sua opinião, “a tortura, como crime contra a humanidade, não deveria estar sujeita a leis de anistia ou à prescrição”.

Graduada em Relações Internacionais pela Universidade de Minnesota, é mestre na mesma área, pela Universidade de Columbia. Estudou no Instituto para Estudos Latino-Americanos e Ibéricos e é Ph.D em Ciências Políticas e Relações Internacionais, pela Universidade de Columbia. Sikkink é especialista em políticas de direitos humanos, direitos femininos e justiça social. Outros temas que pesquisa são ativismo político, política latino-americana, e tribunais sobre crimes de guerra. Além disso, estuda as leis internacionais de direitos humanos. De suas obras, destacamos, Ideas and institutions: developmentalism in Brazil and Argentina (New York: Cornell University Press, 1991), Activists beyond borders (New York: Cornell University Press, 1999) e Mixed messages: U.S. human rights policy and Latin America (New York; Cornell University Press, 2004).

IHU On-Line – No Brasil, os arquivos da ditadura ainda não foram abertos. Que direito têm as Forças Armadas de manterem inacessíveis à sociedade brasileira documentos que contribuem para elucidar a sua própria história?

Kathryn Sikkink – Como disse Peter Kornbluh,  diretor dos Arquivos de Segurança Nacional, durante sua recente visita ao Brasil, as pessoas têm direito à informação e direito à transparência, o que inclui o direito de consultar documentos cruciais sobre sua história. Os governos poderão atribuir caráter secreto a documentos por um período razoável de tempo, mas, neste caso, pelo que sei, o Judiciário determinou que as Forças Armadas abram seus arquivos, e, neste caso, parece inquestionável que elas precisam acatar a decisão do Poder Judiciário.

IHU On-Line – Como é possível superar um problema que sequer foi enfrentado, como a discussão da tortura no Brasil?

Kathryn Sikkink – Houve, naturalmente, uma discussão muito importante sobre a tortura no Brasil, especialmente com a publicação de Brasil: nunca mais,  que foi um livro de ponta no mundo na época em que foi publicado. O problema é que a discussão foi encerrada depois e só agora está surgindo de novo. Houve também um seminário internacional muito interessante sobre tortura na USP em fevereiro de 2008, organizado pelo Núcleo de Estudos da Violência, que reabriu essa discussão de novo.

IHU On-Line – Como é possível superar um problema que sequer foi enfrentado, como a discussão da tortura no Brasil?

Kathryn Sikkink – Minha pesquisa sugere que a impunidade incentiva mais violações de direitos humanos (de muitos tipos diferentes). Portanto, é provável que o fato de o Brasil não responsabilizar agentes do Estado por violações dos direitos humanos durante o regime militar possa contribuir para criar uma sensação de impunidade no setor da segurança que leve a mais violações dos direitos humanos atualmente, incluindo violência policial e assassinatos.

IHU On-Line – Recalcar a história através do esquecimento dá margens para que a população seja condescendente com a repressão policial e ache-a legítima quando “erradica” sujeitos indesejáveis como os pobres e negros das periferias?

Kathryn Sikkink – Se se examina a linguagem usada efetivamente na lei da anistia no Brasil, vê-se que ela não justifica a tortura. Ela foi simplesmente interpretada por algumas pessoas como se implicasse a anistia da tortura. Mas a formulação da própria lei não diz isso. O que se faz necessário é uma interpretação técnica da lei para verificar o que ela diz efetivamente. No mundo inteiro ocorreram tais interpretações de leis de anistia e elas não concluíram que a tortura seja justificada.

IHU On-Line – Como é possível se falar em direitos humanos e justiça social quando a Lei da Anistia brasileira entende a tortura como “superada” e iguala-a a outros crimes políticos?

Kathryn Sikkink – Muitos outros países usaram leis de anistia, mas, com muita freqüência, essas leis acabaram sendo interpretadas no sentido de não concederem anistia a agentes do Estado acusados de crimes graves. Cada uma dessas leis é ligeiramente diferente. Por exemplo, em agosto de 2003, o Congresso argentino aprovou, com o apoio do governo Kirchner, uma lei que anulou as leis de anistia (Obediencia Debida y Punto Final). Em junho de 2005, a Suprema Corte argentina declarou, por sete votos a um, que as leis de anistia são inconstitucionais. A Corte citou a jurisprudência do Tribunal Interamericano de Direitos Humanos nos casos de Barrios Altos, que limitou a capacidade da legislação dos estados-membros de promulgar leis de anistia para crimes contra a humanidade. A Suprema Corte também decidiu que o crime de desaparecimento era um crime contra a humanidade para o qual não há prescrição. A decisão da Suprema Corte teve o efeito de permitir que se reabrissem centenas de processos envolvendo os direitos humanos que tinham ficado encerrados durante os 15 anos anteriores. No Uruguai, a lei de anistia, chamada de Ley de Caducidad del Poder Punitivo del Estado, recebeu inicialmente um apoio adicional quando uma tentativa de revertê-la mediante um plebiscito não conseguiu a maioria dos votos. Recentemente, entretanto, em 2006 e 2007, líderes políticos, juristas e juízes do Uruguai decidiram que a formulação da lei de anistia não cobre os civis responsáveis por violações de direitos humanos durante o regime militar nem o alto-comando das Forças Armadas, mas apenas quem “agiu cumprindo ordens de seus superiores no comando”. Esta mudança permitiu a realização de julgamentos contra o ex-presidente Juan María Bordaberry  e o ex-ministro de Relações Exteriores Juan Carlos Blanco, que estão em prisão preventiva à espera do processo penal. Em dezembro de 2007, Gregorio Alvarez,  ex-comandante em chefe do Exército e ex-presidente do Uruguai, também foi indiciado por supostos abusos dos direitos humanos durante o período do governo civil-militar.

O Chile também tem uma lei de anistia, mas a Corte Suprema chilena decidiu, em 1999, que essa lei não incluía os desaparecimentos, que foram considerados crimes permanentes e contínuos até que os corpos fossem localizados, não sendo, portanto, cobertos pela lei de anistia. Essa decisão da Suprema Corte permitiu que centenas de processos envolvendo os direitos humanos fossem reabertos e prosseguissem em tribunais chilenos.

A Lei da Anistia em outros países

Na Grécia, depois do regime militar que ficou no poder de 1967 a 1974, um dos primeiros atos do novo governo Karamanlis foi anunciar um decreto presidencial que concedia anistia a todos os opositores do regime que estavam encarcerados. Inicialmente, não estava claro se essa lei também cobria violações de direitos humanos cometidas por membros do regime militar. Mas, em outubro de 1974, o governo Karamanlis emitiu um novo ato constitucional que excluía explicitamente os principais líderes do regime militar do Decreto de Anistia de julho de 1974 e dava ao Judiciário a responsabilidade de investigar e processar altos agentes do Estado por traição, tortura e assassinato.

Depois da revolução de 1974 em Portugal, houve exigências imediatas de que a polícia política (PIDE) e outros órgãos repressivos fossem levados à justiça, e muitos membros do regime autoritário acabaram sendo afastados e se exilaram. Além disso, muitos integrantes da PIDE foram julgados e condenados a cumprir penas breves de reclusão.
Uma lei de anistia foi redigida na Guatemala para excluir explicitamente da anistia qualquer pessoa que cometesse genocídio ou crimes contra a humanidade.

A Espanha é um dos poucos países onde nunca houve processos penais por violações dos direitos humanos cometidas durante a guerra civil e o regime autoritário de Franco. Na Espanha, há atualmente um novo movimento pela recuperação da memória histórica que levou à exumação de muitas valas comuns do período da guerra civil, mas virtualmente todos os perpetradores de violações dos direitos humanos estão mortos e não há julgamentos que estejam avançando.

IHU On-Line – Como compreender que no Brasil não existiu a chamada justiça de transição, como no Chile, Peru, Argentina e Uruguai?

Kathryn Sikkink – O Brasil teve uma “transição pactuada” para a democracia em que os membros do regime anterior negociaram as condições de sua saída do poder. Os países que tiveram uma “transição com ruptura”, como a Argentina, a Bolívia, o Peru, a Grécia e Portugal, inicialmente tiveram menos dificuldade de adotar múltiplos mecanismos de justiça de transição, incluindo julgamentos. Mas atualmente até outras “transições pactuadas”, como as do Chile e do Uruguai, começaram a usar a justiça de transição, e o Brasil não acompanhou esta tendência.

IHU On-Line – A ONG Centro pela Justiça e Direito Internacional levou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos o Caso Araguaia, contra o Estado brasileiro, cobrando a omissão e inoperância do governo por não ter investigado e punido os responsáveis pelos desaparecidos da guerrilha do Araguaia. A acusação diz, no processo, que a Lei da Anistia institucionaliza a impunidade no Brasil. Você concorda?

Kathryn Sikkink – Sim, concordo pelas razões expostas acima. Mas eu deveria esclarecer que esta tem sido a posição consiste da Comissão Interamericana de Direitos Humanos em outros processos envolvendo o Peru, a Argentina e o Uruguai, e não somente o Brasil. A Comissão e o Tribunal têm determinado coerentemente que as leis de anistia são contrárias às obrigações do Estado sob a Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

IHU On-Line – De que maneira a punição de torturadores pode consolidar a regime democrático, e os direitos humanos?

Kathryn Sikkink – Os julgamentos e a punição de torturadores ajudam a construir o Estado de direito, deixando claro que ninguém está acima da lei. Além disso, a punição deixa claro que haverá “custos” para os agentes individuais do Estado que se envolverem em abusos dos direitos humanos, e isto pode ajudar a prevenir futuras violações de direitos humanos. Os julgamentos também são acontecimentos altamente simbólicos que comunicam os valores de uma sociedade democrática em favor dos direitos humanos e do Estado de direito.

IHU On-Line – Sendo a tortura um crime contra a humanidade, ele não prescreve. Como deve ele deve ser julgado?

Kathryn Sikkink – Os torturadores, seja nos Estados Unidos, seja no Brasil, deveriam ser julgados com um cuidadoso processo justo e atenção às provas. A tortura, como crime contra a humanidade, não deveria estar sujeita a leis de anistia ou à prescrição.

IHU On-Line – Como você percebe a ditadura brasileira no contexto latino-americano, tomando em consideração a Operação Condor?

Kathryn Sikkink – A ditadura militar brasileira teve menos assassinatos e desaparecimento do que outros países, como a Argentina, o Chile, a Guatemala ou El Salvador. Teve, entretanto, muitos, muitos milhares de vítimas de tortura e prisão ilegal. Como Peter Kornbluh explicou semana passada no Brasil, temos agora documentos oficiais que mostram que o Brasil foi um membro pleno da Operação Condor, fornecendo, por exemplo, a infra-estrutura de telecomunicações. Além disso, como o primeiro dos golpes militares, como um país grande e importante e como um estreito aliado dos EUA, o regime autoritário brasileiro teve grande influência sobre outros regimes autoritários da região.

IHU On-Line – Como a Justiça e o Estado deveriam lidar com as memórias de dor, sofrimento e lembrança das vitimas da ditadura militar?

Kathryn Sikkink – Há múltiplos mecanismos de justiça de transição que podem ajudar a democracia e ajudar as vítimas. O secretário Paulo Vannucchi já deu um passo muito importante rumo à busca da verdade com a publicação do extenso volume Direito à memória e à verdade, que é o primeiro relatório oficial do Brasil sobre essas violações. O Ministério Público está tocando em frente alguns processos importantes envolvendo os direitos humanos. Projetos de história oral sobre esse período estão em andamento (por exemplo, um na Unicamp). Portanto, alguns passos importantes já foram dados, e, ainda assim, muito mais pode ser feito ainda.

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