Edição 269 | 18 Agosto 2008

O regime do medo continua

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Patricia Fachin

A falta de esclarecimento sobre as atrocidades cometidas na ditadura militar suscitou na população brasileira um sentimento de conformidade com o abuso de poder dos agentes do Estado, avalia Deisy Ventura

O silêncio sobre os fatos ocorridos no período militar representa “uma das maiores lacunas da democracia brasileira”, afirma a Profa. Dra. Deisy Ventura, do curso de Direito da Unisinos. Esquecidos e desconhecidos por boa parte da nação, os atos de tortura instituíram hábitos que perpetuam até hoje. Segundo a pesquisadora, a existência de políticas de extermínio, ainda presentes na realidade nacional, “deve-se entre outros fatores, à impunidade dos torturadores e assassinos que forjaram uma nefasta cultura de segurança pública em nosso país”.

Na entrevista que segue, concedida por e-mail à IHU On-Line, Deisy Ventura explica que aos crimes contra a humanidade correspondem “o princípio da jurisdição universal”, ou seja, “todos os Estados são obrigados a julgar os responsáveis por genocídio em suas próprias cortes, ou extraditá-los para um Estado capaz e disposto a fazê-lo mediante um julgamento justo. Logo, se não julgarmos os violadores, outros Estados o farão”.

Deisy Ventura é graduada em Direito e mestre em Integração Latino-americana, pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutorou-se em Direito, pela Universidade de Paris I. Docente da Unisinos, atualmente a professora também é membro da Diretoria da Associação Brasileira do Ensino do Direito (ABEDI), da comissão editorial da Revista Estudos Jurídicos, da Unisinos. Deisy também integra a lista de advogados que assinaram o Manifesto público dos juristas em prol do debate público nacional sobre o alcance da Lei da Anistia. O texto está disponível no endereço http://unisinos.br/blog/ppgdireito. Interessados podem assinar o documento até 27-08-2008.

IHU On-Line - Quais são as implicações de abrir os arquivos da ditadura? Sob o ponto de vista democrático e político, é melhor recordar ou esquecer esse assunto?

Deisy Ventura – As principais conseqüências da abertura dos arquivos da ditadura seriam o conhecimento público de documentos suprimidos da “história oficial” - e com isto a chance de construir uma história mais fidedigna daquele período -, e a melhor instrução dos processos judiciais, que buscam o julgamento dos crimes contra a humanidade cometidos durante o regime militar. O silêncio sobre este assunto é uma das maiores lacunas da democracia brasileira, a tal ponto que, atualmente, a maioria da população considera natural o emprego da violência e o abuso de poder dos agentes do Estado, desde que seus alvos sejam cidadãos pobres, particularmente os jovens e os negros. A existência de políticas de extermínio - que, malgrado sua ilegalidade, são implementadas pelo próprio Poder Público ou beneficiadas por sua indulgência - deve-se, entre outros fatores, à impunidade dos torturadores e assassinos que forjaram uma nefasta cultura de segurança pública em nosso país.
 
IHU On-Line - O que significa para o país, atualmente, “rever” e ampliar a Lei da Anistia? Juridicamente, isso é possível?

Deisy Ventura – Do ponto de vista jurídico, toda e qualquer lei pode ser modificada pelo Congresso Nacional, total ou parcialmente, exceto as chamadas “cláusulas pétreas” da Constituição Federal. No entanto, o julgamento dos torturadores e assassinos não requer a revisão da Lei de Anistia, que concerne os crimes políticos praticados durante o regime militar. Um crime político é aquele que visa a subverter uma ordem instituída. Na década de 60, um grupo de militares promoveu um golpe de Estado, obviamente ilegal e antijurídico, autodenominado revolução. Este golpe de Estado é um crime político. Entretanto, a tortura, o estupro, o desaparecimento forçado e a execução sumária, praticados por alguns agentes do Estado partidários da ruptura da ordem democrática, não o são. Tais crimes configuram um abuso das prerrogativas adquiridas quando da tomada do poder do Estado, e almejavam a eliminação ou a segregação de um grupo humano: o que resistia ao seu poder. Já os movimentos de resistência à nova ordem autoritária praticaram atos que configuram, evidentemente, crimes políticos: aqueles cujo intuito é contestar a ordem política vigente, e entre os quais jamais estiveram a tortura sistemática e o desaparecimento forçado.
 
IHU On-Line - A interpretação da Lei da Anistia é de competência do Judiciário ou do Executivo?

Deisy Ventura - A interpretação da Lei da Anistia é da competência de todos os cidadãos brasileiros. Quando provocado para tanto, o Judiciário é obrigado a manifestar-se. Quanto ao Executivo e ao Legislativo, chegam a este debate com mais de 20 anos de atraso.
 
IHU On-Line - Tortura é um crime político ou contra a humanidade? 40 anos após a ditadura, qual a relevância de rediscutir o assunto? 

Deisy Ventura – A tortura jamais poderá ser considerada um crime político. Não existe e jamais existiu ordenamento jurídico que a corrobore ou anistie. Caracteriza crime contra a humanidade, entre outros, a perseguição sistemática de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de sexo. Mireille Delmas-Marty  ensina a especificidade dos crimes contra a humanidade: o ser humano vê-se reduzido à condição de elemento de um grupo e rejeitado como tal, sendo destituído, a um só tempo, de sua singularidade e de seu estatuto no seio da humanidade. A relevância deste assunto deve-se a muitas razões, sobretudo a de que é preciso informar a população sobre a gravidade e a ilicitude destas práticas, para evitar que elas se repitam e possibilitar a reparação dos seus danos.
 
IHU On-Line - Considerados crimes que não prescrevem, como deveria ocorrer o julgamento dos torturadores da ditadura militar?

Deisy Ventura – Alguns processos já tramitam no Brasil e também no exterior, eis que aos crimes contra a humanidade corresponde o princípio da jurisdição universal. Em virtude deste postulado, todos os Estados são obrigados a julgar os responsáveis por genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra em suas próprias cortes, ou extraditá-los para um Estado capaz e disposto a fazê-lo mediante um julgamento justo. Logo, se não julgarmos os violadores, outros Estados o farão. Não é caso de jurisdição internacional - porque o Tribunal Penal Internacional só pode processar crimes anteriores à sua criação -, mas é caso de jurisdição penal nacional universal, cujo exemplo mais notório foi o Caso Pinochet,  processado na Espanha, extradição solicitada à Inglaterra em 1999 e deferida, não cumprida por razões médicas. Além disso, a Resolução 3074, de dezembro de 1973, da Assembléia Geral da ONU, estabelece os Princípios de cooperação internacional na identificação, detenção, extradição e punição de pessoas responsáveis por crimes de guerra e crimes contra a humanidade, declarando que todos os Estados devem cooperar reciprocamente no plano bilateral ou multilateral para levar a julgamento os responsáveis por tais crimes. Registre-se que o direito internacional proíbe a concessão de asilo a acusados de cometimento de crimes contra a humanidade, bem como a caracterização destes crimes como crimes políticos para fins de extradição (entre outros, art. VII da Convenção sobre Genocídio, vigente no Brasil desde 1952).
 
IHU On-Line - Torturadores e guerrilheiros devem ser punidos de modos diferentes? Quais os critérios éticos e jurídicos que devem permear o julgamento desses casos?

Deisy Ventura – Sim. Se algum guerrilheiro praticou o crime de tortura ou desaparecimento forçado, então ele passa a ser torturador, e não guerrilheiro. Os critérios jurídicos de julgamento são abundantes no direito interno e internacional. Quanto aos critérios éticos, parece-me que o respeito à dignidade humana já fala por si, tanto em relação às vítimas como a suas famílias.

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