Edição 269 | 18 Agosto 2008

A impunidade alenta o retorno da barbárie

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Márcia Junges e Patricia Fachin

A intensidade das dores é aplacada pela memória, por isso é preciso contar a história honestamente, adverte o psicanalista Alfredo Jerusalinsky. Além disso, o sujeito não se extingue com a morte, e continua credor da justiça que o conjunto social lhe deve.

Para o psicanalista argentino Alfredo Jerusalinsky, “o fato de que as pessoas vitimadas estejam vivas ou mortas não muda a dignidade devida ao sujeito em causa. O sujeito não se extingue pela morte do indivíduo, ele continua – quando é vitima – sendo credor de uma justiça que o conjunto social ficou lhe devendo. Quando essa restituição não se opera, a impunidade, sem dúvida, alenta o retorno da barbárie”. Contudo, punições violentas são abuso de poder, e são “o instrumento intimidatório preferido pelas ditaduras”. As declarações fazem parte da entrevista exclusiva, a seguir, que Jerusalinsky concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Militante ativo contra as duas ditaduras que assolaram seu país, o psicanalista afirma que esses regimes despertaram nele o “desejo de liberdade e justiça para todos, e uma profunda aceitação das diferenças”. Em sua opinião, “a memória sempre tende a aplacar a intensidade das dores lembradas, até porque seria insuportável conviver com a suma constantemente atualizada de todos os sofrimentos passados”. Aí reside a importância de se contar honestamente a história, nos livrando desse equívoco. Analisando a Lei de Anistia, afirma que, no caso da brasileira, de “obediência devida”, e, no caso da argentina, de “ponto final”, elas são estabelecidas “porque se cometeram crimes que não poderiam ser perdoados a não ser por uma medida de exceção. Por essa simples razão isso cheira mal. Especialmente quando consideramos que essas leis foram promulgadas quando os Estados ainda se encontravam sob forte pressão e influência precisamente daqueles cujos atos eram objeto do perdão nelas contido. Em certa medida, poderia se dizer que se tratava de um perdão que se outorgavam a si mesmos”.

Jerusalinsky é psicanalista, mestre em psicologia clínica, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e doutor em Educação e Desenvolvimento Humano, pela Universidade de São Paulo (USP). Além disso, é membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e da Association Lacaniènne Internationale. De sua vasta bibliografia, destacamos La formación del psicoanalista (Buenos Aires: Editora Nueva Visión, 1989), Psicanálise e desenvolvimento infantil (2. ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998), Para entender al niño, claves psicoanalíticas (Quito: Ediciones ABYA-YALA, 2003) e Quem fala na língua?: sobre as psicopatologias da fala (Bahia: Ágalma, 2004).

IHU On-Line – Como sua trajetória pessoal é marcada pela ditadura da Argentina?

Alfredo Jerusalinsky – Fui um militante ativo contra as duas ditaduras militares no meu país natal: a que iniciou com o General Ongania , de 1966 até 1973, e a comandada pelo General Videla  e sua Junta Militar de 1976 a 1983, e voltaria a sê-lo contra qualquer ditadura. Por contraste, elas despertaram em mim o desejo de liberdade e justiça para todos, e uma profunda aceitação das diferenças. Ao mesmo tempo em que dizimavam e dispersavam minha geração e a de nossos mestres e professores, os tiranos mostraram claramente onde fica a fronteira entre o humano e a barbárie.

IHU On-Line – Que semelhanças apontaria entre a ditadura de seu país natal e o Brasil?

Alfredo Jerusalinsky – Não é por acaso que as ditaduras militares mais recentes da Argentina e do Brasil se desenvolveram em épocas contemporâneas, comandadas ambas por generais, com objetivos políticos e econômicos orientados pelos mesmos princípios, apresentando condutas repressivas similares. Durante a primeira metade do século XX, a América Latina viu crescer uma vasta população de trabalhadores agrícolas e industriais que transformaram completamente as relações dos Estados coloniais com as suas metrópoles. Estes passaram a representar muito mais a vontade de suas populações do que as imposições dos países centrais. Por isso, a técnica de retenção do poder por parte dos imperialismos da metade desse século foi a da captura dos governos mediante o golpe de Estado. Tiveram de criar, para isso, uma aliança militar capaz de se sobrepor aos nacionalismos. A Guerra Fria foi o instrumento paranóico que uniu todos os militares ocidentais acima de suas fronteiras, e o internacionalismo militar - contradizendo as expectativas leninistas - chegou antes do internacionalismo operário. O Estado em mãos militares garantiu pelo menos três coisas: a primeira, uma abertura para o liberalismo mercantil (leia-se para a entrada de capitais estrangeiros no comando das economias locais); a segunda, a crença de que o inimigo exterior estava vilmente infiltrado na própria nação e que, por lógica conseqüência, era urgente e imprescindível uma purga radical (depois de seu ensaio local o macartismo  prestou seus “bons serviços” para as invenções ideológicas nas semi-colônias); a terceira, a transformação dos contingentes de trabalhadores em massa consumidora. Esse programa se cumpriu não somente no Brasil e na Argentina, mas na maior parte dos países latino-americanos.   

IHU On-Line – O que explica o saudosismo de muitos brasileiros quanto à ditadura, alegando que naquele tempo não havia desemprego, “baderna” e miséria? Essas pessoas não se dão conta das mortes, desaparecimentos e torturas perpetrados naquele tempo?

Alfredo Jerusalinsky – Esse saudosismo só pode se explicar pelo fato de que o incômodo de hoje costuma doer mais do que a mutilação de ontem. A memória sempre tende a aplacar a intensidade das dores lembradas, até porque seria insuportável conviver com a suma constantemente atualizada de todos os sofrimentos passados. A história honestamente contada tem a função de nos livrar desse equívoco.

IHU On-Line – Psicanaliticamente, qual é a explicação para o fascínio dessas pessoas pelo poder militar?

Alfredo Jerusalinsky – Houve uma época em que os exércitos eram contemplados pelo povo do mesmo modo que hoje uma torcida se inclina diante de seu time de futebol. Embora, atualmente, é quase certo que as gentes se inclinam com maior reverência diante dos jogadores do gramado. Ocorre que, se em épocas não tão distantes os exércitos podiam representar a defesa dos habitantes para o exercício de suas liberdades (encarnando por isso a condição de heróis já antes de ter disparado um único tiro), sua participação durante os últimos 50 anos nas repressões internas tem acabado com seu antigo prestígio.
Uma certa prorrogação da contemplação popular dos militares reside nesse desejo perverso de gozarmos de poderes especiais. Diria que, nesse caso, trata-se mais de inveja do que de admiração. A inveja, por certo, é um sentimento bem próximo do ódio, e nada próximo do amor.

IHU On-Line – O que explica o medo e o silêncio em torno dos militares até hoje?

Alfredo Jerusalinsky – A instituição militar é a única instância do Estado na qual costumam prevalecer os atos acima das palavras. Sua doutrina prepara seus quadros para produzir atos reais muito mais do que para produzir expressões simbólicas. Por isso, quando um militar de alto comando formula uma declaração, imediatamente se teme que por trás dela espreite um ato. Na medida em que a história recente confirma esta prevenção, cada vez que uma alta patente manifesta sua discrepância com algum ato ou idéia do governo levamos um susto. Eles sabem que podem assustar e muito freqüentemente se valem disso (como os sindicatos se valem da pressão política) para influenciar nos direcionamentos do Estado.

IHU On-Line – Esquecer o passado é injustiçar as vítimas da ditadura? Esquecer a barbárie pode promover seu retorno?

Alfredo Jerusalinsky – As pessoas se acolhem nos direitos e obrigações que as leis de uma nação lhe oferecem porque acreditam na promessa de que essa lei as protegerá, dentro de um plano de igualdade com todos, na medida em que elas venham cumprir com a moral social que essa lei promove. Dito de outro modo, elas concordam em se tornarem sujeitos de um discurso na medida em que este as reconheça como parte essencial de sua rede enquanto elas obedeçam à lógica desse discurso. As situações de exceção, a supressão de determinadas formas de representação porque convêm a uns, desmerecendo os outros, implicam num rompimento desse pacto com graves conseqüências para o discurso que ampara isso que chamamos de civilização. O fato de que as pessoas vitimadas estejam vivas ou mortas não muda a dignidade devida ao sujeito em causa. O sujeito não se extingue pela morte do indivíduo, ele continua – quando é vítima – sendo credor de uma justiça que o conjunto social ficou lhe devendo. Quando essa restituição não se opera (castigando os autores desse crime social, devolvendo aos sujeitos seu justo lugar, resgatando as identidades perdidas), a impunidade, sem dúvida, alenta o retorno da barbárie. 

IHU On-Line – Do ponto de vista psicanalítico, qual é a importância de cultuar os mortos? E que tipo de implicações psicológicas e comportamentais pode se observar nas famílias que sequer têm um corpo concreto pelo qual chorar, no caso dos desaparecidos à época do regime militar?

Alfredo Jerusalinsky – Quando lemos a notícia de que se achou um cadáver num depósito de lixo ou um corpo enterrado às pressas num terreno baldio por um criminoso assustado, ou que se encontrou uma ossada no cemitério “x” sob o nome de NN, isso nos causa horror. Essa sensação do horrível vai por conta de que as carcaças não estavam no seu devido lugar. O devido lugar de uma carcaça humana é aquele em que ela forma parte de uma série que costumamos chamar de “seres queridos”. Ali, os restos mortais viram símbolo de uma ausência que não se apaga. O sujeito do morto vive nessa ausência, nesse intervalo vazio que ele deixou, e cujo corpo testemunha. Por isso, nossos cadáveres não são jogados no lixo e, quando jogados numa vala comum, isso constitui uma ofensa grave, na medida em que esse ato implica apagar o intervalo significante, o nome que representa esse sujeito cujo corpo diz de sua anterior presença, dos laços com os outros que ainda persistem.

Durante a barbárie fascista na Europa, o ato de jogar os cadáveres de judeus e dissidentes numa vala comum, ou de cremá-los e dispersar suas cinzas, apontava para tornar real o imperativo nazista de que esses seres não deveriam ter existido. Tornar inexistente o que existe é o que em psicanálise se chama “forclusão”, o mecanismo de supressão da realidade próprio das psicoses. Esse ato delirante foi repetido pelos nossos militares. Não que eles fossem loucos, que certamente não o eram, e que, certamente, não se precisa ser louco para produzir delírios messiânicos. Esses delírios, na medida em que servem para se defender de uma realidade insuportável (nas psicoses) também podem servir para justificar atos inqualificáveis para o mesmo sujeito que os produz (nas neuroses).

Quando numa família o corpo de alguém não pode ocupar o lugar simbólico que o culto dos mortos lhe reserva, o sujeito perdido tem de ocupar esse lugar. O que resulta em que quando o corpo está presente o sujeito pode ser esquecido, mas quando o corpo está ausente o sujeito não pode ser “enterrado”. O desaparecimento do corpo causa um luto interminável.

IHU On-Line – No caso brasileiro, qual sua percepção sobre a Lei da Anistia? Criada por políticos e militares, ela foi justa em sua formulação?

Alfredo Jerusalinsky – Quando uma lei de anistia (como a brasileira), de “obediência devida” ou de “ponto final” (como as argentinas) é estabelecida, é porque se cometeram crimes que não poderiam ser perdoados a não ser por uma medida de exceção. Por essa simples razão isso cheira mal. Especialmente quando consideramos que essas leis foram promulgadas quando os Estados ainda se encontravam sob forte pressão e influência precisamente daqueles cujos atos eram objeto do perdão nelas contido. Em certa medida, poderia se dizer que se tratava de um perdão que se outorgavam a si mesmos.

IHU On-Line – Torturadores e guerrilheiros devem ser julgados da mesma forma? Por quê?

Alfredo Jerusalinsky – A tortura é um ato cruel de exercício abusivo do poder. A guerrilha é uma forma de sublevação contra as autoridades instituídas, com o objetivo político de tomar ou transformar o poder estabelecido. A condição moral de um e outro ato não é comparável. A tortura é um ato de lesa-humanidade. A guerrilha (que não é sinônimo de terrorismo) é um ato político. Certamente não podem ser julgados da mesma maneira. Embora ambos estejam fora da legalidade, não respondem ao mesmo estatuto.

IHU On-Line – Como crime contra a humanidade, como deve ser punida a tortura?

Alfredo Jerusalinsky – Não sou um especialista em punições. Não me parece que possa emitir uma opinião responsável sobre esse ponto. Porém, de qualquer modo, acho útil deixar apontado que me oponho a qualquer forma de violência física numa punição. A meu entender, qualquer punição violenta, além de constituir um abuso de poder, não faz mais do que semear uma agressividade e um ódio interminável. Além disso, as punições violentas costumam ser o instrumento intimidatório preferido pelas ditaduras.

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