Edição 267 | 04 Agosto 2008

Medellín, Puebla, Aparecida e Santo Domingo: a luta pelos pobres e pela libertação

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Bruna Quadros

Para o teólogo Paulo Suess, as Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano estabeleceram horizontes regulativos como o próprio evangelho

“As conferências marcam uma caminhada com trigo e joio: Medellín (libertação), Puebla (comunhão e participação), Santo Domingo (inculturação) e Aparecida (missão).” Quem faz essa reflexão é o doutor em Teologia Fundamental e integrante do Conselho Indígena Missionário (CIMI) Paulo Suess, em entrevista concedida por e-mail à revista IHU On-Line. Segundo ele, todas as Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano impregnaram também um caráter sacramental, um caráter indelével na Igreja latino-americana, como a opção pelos e com os pobres e a libertação. “Esse caráter indelével aparece mais na microestrutura eclesial do ‘povão’ do que nas instâncias hierárquicas”, destacou. Neste sentido, Suess enfatizou que temos uma grande responsabilidade de continuar essa caminhada, “sobretudo por causa dos pobres e por causa dos nossos mártires que deram a vida pelo povo pobre e as causas do Reino”.

Paulo Suess é doutor em Teologia Fundamental com um trabalho sobre “Catolicismo popular no Brasil”. Em 1987, fundou o curso de Pós-Graduação em Missiologia, na Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, onde foi coordenador até o fim de 2001. Recebeu o título de “Doutor honoris causa”, das Universidades de Bamberg (Alemanha, 1993) e Frankfurt, 2004). Atualmente é assessor teológico do CIMI e professor no ciclo de pós-graduação em Missiologia, no Instituto Teológico de São Paulo (ITESP). Entre suas recentes publicações, destaca-se Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida (São Paulo: Paulus, 2007).

IHU On-Line - Como o senhor avalia a importância das Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano já realizadas para a consolidação da imagem e dos princípios da Igreja na América Latina?

Paulo Suess - Não estou preocupado com a consolidação da “imagem” nem com os “princípios” da Igreja na América Latina. Estou preocupado com a operacionalização das promessas e preocupações da V Conferência (Aparecida) – promessas são dívidas - e a consolidação da Igreja do povo de Deus a serviço do Reino.

- A V Conferência Geral se considerou “uma oportunidade para que todas as nossas paróquias se tornem missionárias” (Documento de Aparecida 173), “centros de irradiação missionária”, “lugares de formação permanente” (Documento de Aparecida 306) e “fonte dinâmica do discipulado missionário” (Documento de Aparecida 172).

- A “firme decisão missionária deve impregnar todas as estruturas eclesiais e todos os planos pastorais (Documento de Aparecida 365). Para que isso aconteça, exige-se de todas as comunidades que entrem “nos processos constantes de renovação missionária” e que abandonem “as ultrapassadas estruturas que já não favoreçam a transmissão da fé” (Documento de Aparecida 365).

- A missionariedade da paróquia deve ser autêntica, quer dizer integral: “Toda autêntica missão unifica a preocupação pela dimensão transcendente do ser humano e por todas as suas necessidades concretas” (Documento de Aparecida 176). A opção pelos pobres “deve atravessar todas as nossas estruturas e prioridades pastorais” (Documento de Aparecida 396, cf. Medellín 14,4-11; Documento de Puebla 1134-1165; Santo Domingo 178-181).

- “A tarefa missionária se abre sempre às comunidades, assim com ocorreu em Pentecostes” (Documento de Aparecida 171). “Conforme há anos estamos propondo na América Latina, a paróquia chegará a ser ‘comunidade de comunidades’” (Documento de Aparecida 309, Comunidades Eclesiais de Base: 179; cf. Santo Domingo 58). “Levando em consideração as dimensões de nossas paróquias, é aconselhável a setorização em unidades territoriais menores com equipes próprias de animação e coordenação que permitam maior proximidade com as pessoas e grupos que vivem na região” (Documento de Aparecida 372).

- A formação é uma peça-chave do Documento de Aparecida (cf. Documento de Aparecida 315). Mas a formação não é um substitutivo pelo “número insuficiente de sacerdotes”, que impossibilita “que muitíssimas comunidades possam participar regularmente na celebração da Eucaristia” (Documento de Aparecida 100e). A realidade da escassez de ministros ordenados produziu apenas lamentos: “Com profundo afeto pastoral, queremos dizer às milhares de comunidades com seus milhões de membros, que não têm a oportunidade de participar da Eucaristia dominical que também elas podem e devem viver ‘segundo o domingo’” (Documento de Aparecida 253). Também a celebração da palavra “faz presente o Mistério Pascal” (Documento de Aparecida 253).

- Face à escassez dos ministros ordenados, segue o apelo aos leigos. “A renovação da paróquia exige atitudes novas nos párocos e nos sacerdotes” (Documento de Aparecida 201), “maior abertura de mentalidade” (Documento de Aparecida 213). “Requer-se que todos os leigos se sintam co-responsáveis na formação dos discípulos e na missão. Isso supõe que os párocos sejam promotores e animadores da diversidade missionária (...). Uma paróquia renovada multiplica as pessoas que realizam serviços e acrescenta os ministérios” (Documento de Aparecida 202). Deve-se avançar para “garantir a efetiva presença da mulher nos ministérios que na Igreja são confiados aos leigos, como também nas instâncias de planejamento e decisão pastorais, valorizando sua contribuição” (Documento de Aparecida 458b, cf. 454) e promover o “mais amplo protagonismo” do “gênio feminino” (Documento de Aparecida 458a).

IHU On-Line - Que relações podem ser estabelecidas entre os objetivos pretendidos nas conferências? Podemos afirmar que eles foram alcançados?

Paulo Suess - As conferências estabeleceram horizontes regulativos como o próprio Evangelho. As conferências marcam uma caminhada com trigo e joio: Medellín  (libertação), Puebla  (comunhão e participação), Santo Domingo  (inculturação) e Aparecida  (missão). Mas essas conferências impregnaram também um caráter sacramental, um caráter indelével na Igreja latino-americana: opção pelos e com os pobres, libertação, participação, CEBs, metodologia do ver-julgar-agir, que é a metodologia que parte dos “sinais do tempo” enfatizados por João XXIII,  em sua encíclica Pacem in Terris.  Esse caráter indelével aparece mais na micro-estrutura eclesial do “povão” do que nas instâncias hierárquicas. Temos uma grande responsabilidade de continuar essa caminhada, sobretudo por causa dos pobres e por causa dos nossos mártires  que deram a vida pelo povo pobre e as causas do Reino. Os mártires da América Latina consolidaram a caminhada da Igreja e confirmaram as inspirações profundas da Teologia da Libertação  (vejam o filme sobre Romero ). Essa teologia que se desdobrou em múltiplas outras teologias (Teologia Índia, Teologia da Terra, Teologia do Gênero) não está, talvez, na boca dos teólogos que esperam alguma carreira eclesiástica, mas nas mãos e nos pés do povo. A continuidade da teologia e da pastoral está na continuidade das condições de vida dos pobres e na sua resistência que podemos assumir (“assumir para redimir” Puebla 400) ou largar.

IHU On-Line - O que mudou na Igreja Latino-Americana, a partir da Conferência de Santo Domingo, que teve como tema "Nova evangelização, promoção humana, cultura cristã"?

Paulo Suess - Aparecida restabeleceu o status quo antes de Santo Domingo. Retomou a opção pelos pobres e a análise da realidade de Medellín. O nervosismo de Santo Domingo por causa dos 500 anos, que exigiu um mea culpa da Igreja por causa de sua conivência com a colonização, hoje está aparentemente superado. A própria conferência de Santo Domingo corrigiu, por exemplo, o terceiro subtema da “cultura cristã” que lhe foi imposto por Roma. Nas “Linhas Pastorais Prioritárias” (Santo Domingo 287-302), Santo Domingo assume o primeiro subtema da “nova evangelização” (que não era tão nova), e o segundo subtema da “promoção humana”. Quando chega ao terceiro subtema, a “cultura cristã”, a conferência o substitui pela “evangelização inculturada” que os delegados de Santo Domingo assumem “na perspectiva de novos métodos e expressões para viver hoje a mensagem evangélica”. Mas Santo Domingo não era apenas um acidente de percurso. Os que pretenderam deslocar a análise da realidade do início das reflexões a colocaram no centro das conclusões (Segunda parte, Capítulo II, Santo Domingo 157-227). A cultura cristã, com certo saudosismo da cristandade, cedeu lugar à inculturação: “A inculturação do evangelho é um imperativo do seguimento de Jesus e é necessária para restaurar o rosto desfigurado do mundo (cf. LG 8). Trabalho que se realiza no projeto de cada povo, fortalecendo sua identidade e libertando-o dos poderes da morte” (Santo Domingo 13). Em contraste com a cristandade e seu derivado da “cultura cristã”, Santo Domingo definiu a Evangelização inculturada como “salvação e libertação integral de determinado povo ou grupo humano, que fortaleça sua identidade e confie em seu futuro específico, contrapondo-se aos poderes da morte” (Santo Domingo 243). Superando o medo dos profetas do passado (Antônio Montesinos,  Las Casas ), Santo Domingo reivindicou estas atitudes proféticas do passado para seu agir de hoje e amanhã: “A Igreja, ao se encontrar com estes povos nativos, desde o princípio, tratou de acompanhá-los na luta pela própria sobrevivência, ensinando-lhes o caminho de Cristo Salvador, a partir da injusta situação de povos vencidos, invadidos e tratados como escravos” (Santo Domingo 245).

IHU On-Line - No seu ponto de vista, como está hoje a cultura cristã na sociedade e como o senhor percebe a humanização, a partir de uma nova evangelização?

Paulo Suess - A rigor, a cultura cristã nunca existiu. O que existiu, por um lado, foi uma cultura hegemônica imposta aos outros povos. Por outro lado, houve uma tentativa de viver o Evangelho em todas as culturas, como a Evangelii nuntiandi  tinha proposto: “O Evangelho, e conseqüentemente a evangelização, não se identificam por certo com a cultura, e são independentes em relação a todas as culturas”. Nos grandes conflitos de hoje, que são conflitos de redistribuição dos bens (capital, terra, água, trabalho) e de reconhecimento da alteridade (dignidade humana, questões de gênero, causa indígena e afro-americana, migrantes), o Evangelho pode, a partir do seu campo próprio, que é o campo dos sinais de justiça e das imagens de esperança, construir estruturas de participação e de gratuidade. Estas configuram cunhas nas fissuras do sistema e anúncio e prática do Reino.

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