Edição 267 | 04 Agosto 2008

Declínio da autoridade do pai é patente hoje

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Graziela Wolfart

Para o professor português José Martinho, o que se designa como “crise” contemporânea da função paterna está, sobretudo, associado à sociedade de consumo

Em seus estudos sobre a paternidade, Lacan divide o pai em três dimensões: o pai simbólico, o pai imaginário e o pai real. Ao analisá-las, o professor português José Martinho, da Faculdade de Psicologia da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT), de Lisboa, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, afirma que “é entre o pai real e a sua função simbólica, supostamente normalizadora da sociedade e da mente, que se inserem todas as figuras do ‘pai imaginário’: emblemas da identificação e ideais enaltecedores, ou degradados, que povoam nossos delírios e fantasias”. E completa: “Se o que a mãe diz do pai atribui ou não valor ao nome deste, são os filhos que imaginam um pai como deve ou não ser”. Psicanalista da Associação Mundial de Psicanálise e presidente da Antena do Campo Freudiano, José Martinho é professor Catedrático da Faculdade de Psicologia da ULHT, e autor de vários livros publicados em Portugal e no estrangeiro, entre os quais citamos O que é um pai? (Lisboa: Assírio & Alvim, 1990) e Freud & companhia (Coimbra: Almedina, 2001).

IHU On-Line - O senhor escreveu um livro intitulado O que é um pai?. Quais as conseqüências do que afirma nesta obra para a formação dos sujeitos contemporâneos?

José Martinho - O título refere-se a uma dúvida que o obsessivo de hoje ainda tem. Mas o livro é, sobretudo, um ensaio no qual, a partir de filósofos, romancistas, poetas e psicanalistas, procuro entender melhor o que leva um homem a recusar ser pai. Por exemplo, Rousseau  dizia adorar as crianças, mas abandonou os seus sete filhos. Demitiu-se desta responsabilidade porque era paranóico, e não se pode ser verdadeiramente pai quando se é psicótico. Freud tentou entender o que se passava em cada caso de psicose, neurose e perversão. Mas foi a série dos casos que o levou ao mito da paternidade. O mito é uma verdade com estrutura de ficção. O inventor da Psicanálise descobriu que esta verdade atravessava de forma velada a tragédia grega, as sociedades primitivas e a religião judaico-cristã. Recolhendo o saber inconsciente, elaborou, então, os conceitos de pai-edipiano, de pai-totem (juntamente como o tabu do incesto) e de pai-monoteísta (a partir de um estudo sobre a figura histórica e religiosa de Moisés). Ele apurou que há um Outro que transcende o individual e o coletivo. Baseado na sua experiência clínica e na importância que a história das religiões e das civilizações atribui ao Outro enquanto pai, concluiu que era importante defender este, porque a humilhação e a queda do pai podem conduzir ao pior. Só que o declínio da autoridade do pai acabou por se tornar patente no mundo contemporâneo.  
 
IHU On-Line - Em que medida o pai autoritário pode ser explicado pela concepção lacaniana de paternidade?

José Martinho - Existem várias razões – evolutivas e não só – que podem explicar o predomínio da autoridade do pai e do homem em geral na cultura até à época de Freud. Mas, num primeiro estudo sobre a família humana (conferir “Os complexos familiares”, in Outros escritos), datado dos anos 1930, Lacan anunciava já o declínio desta autoridade. Graças à Sociologia (Durkheim  e outros), ele explicava que a família humana não é uma célula natural, mas uma instituição sujeita às mudanças sociais e transformações históricas, e que estas conduziram ao declínio da função paterna e às patologias subseqüentes. As sociedades desenvolvidas quiseram esquecer ou deixar para trás o passado e, por conseguinte, as maneiras de viver, as lendas e as religiões de onde partiram. É um dos efeitos do modo de produção capitalista, da tecnociência e do conforto prometido pelo consumo. Foi este último que se tornou desde então a prioridade humana, derrubando os velhos valores, nomeadamente os da família. Lacan não era um nostálgico. Ele esforçou-se para que a Psicanálise fosse para além do mito. Para tal, distinguiu, nos anos 1950, o Simbólico, o Imaginário e o Real, como dimensões em que se tece todo o fenômeno humano. Esta distinção afetará também a concepção da paternidade.
 
IHU On-Line - Para Lacan, o que é um pai?

José Martinho - Parto da distinção a que já me referi. O lugar do Outro em Lacan é, antes de qualquer coisa, o da “ordem simbólica” constituída pela linguagem. Pelo menos desde Aristóteles  que se viu na linguagem (Logos) a essência do homem ou a diferença específica do gênero humano; lembro também que a Psicanálise é uma “cura pela fala”, uma talking cure (Freud via Anna O. ). Podemos, assim, entender que o “pai simbólico” é aquele que a função da palavra (falada ou escrita) situa no campo da linguagem. “Pai” é, antes de tudo, um nome. Santo Agostinho  deu-lhe toda a sua importância, quando afirmou que “no nome de Deus discernia o pai que criou as coisas”. O batismo e a bênção fazem-se igualmente em nome do Pai. Na terra, as metáforas proliferam: Pai santo, Pai do povo etc. O pai de Nome marca desde a presença no apelido que os humanos colam ao seu nome próprio. O nome assim completado pelo patronímico é crucial na identificação do sujeito, como na sua identidade pessoal e social. Lacan explica, ainda, que é o “Nome-do-pai” que funda a Lei que vigora ao nível da cultura, aquela que protege dos caprichos da natureza e da sociedade. Mas o bom ou mau nome do pai depende do lugar que a mãe lhe acorda no discurso que articula o seu desejo, ou até o seu capricho. O “pai real” pode ser o pai de família, ou simplesmente o homem da mãe. Para os filhos, é tradicionalmente uma personagem castradora, desmancha-prazeres, feitora de obrigações. Foi já numa época de declínio que este pai se tornou – como gostamos de ver a mãe – um “objeto” de amor. Mas o fato do pai real ser ou dever ser o único a ter “relações” com a mãe – o objeto sexual interdito por excelência aos filhos – levanta como mistério o real do gozo. É entre o pai real e a sua função simbólica, supostamente normalizadora da sociedade e da mente, que se inserem todas as figuras do “pai imaginário”: emblemas da identificação e ideais enaltecedores, ou degradados, que povoam nossos delírios e fantasias. Se o que a mãe diz do pai atribui ou não valor ao nome deste, são os filhos que imaginam um pai como deve ou não ser.
 
IHU On-Line - Mas o que é para um filho/filha ter um pai? O que é que faz com que um sujeito diga que tem ou teve um pai?

José Martinho - Não é a determinação biológica. O pai não pode ser reduzido ao espermatozóide, nem ao pai civil, ou de direito, caso do pai ilegítimo, legítimo ou adotivo. O que faz com que alguém consiga reconhecer que teve verdadeiramente um pai tece-se numa trindade. As três dimensões cruciais deste reconhecimento são: ter um pai de nome; ter um modelo de pai; ter um pai capaz de introduzir um não-saber sobre o gozo. O que resta a cada um é o sintoma . E convém lembrar que não existem homens, nem mulheres, sem sintoma.
 
IHU On-Line - O senhor acredita que a paternidade encontra-se em crise nos dias atuais? O que caracteriza a função paterna em nossos dias?

José Martinho - O que significa “crise”, e que valor lhe dar, negativo ou positivo? Diria que, quando o pai real se ausenta, adoece ou morre, não há forçosamente catástrofe. A mãe pode muito bem exercer a sua função simbólica e alimentar o seu papel imaginário. O que ela não pode nunca ser é o pai real. O problema reside, sobretudo, aqui. Mas aquilo que habitualmente se designa como “crise” contemporânea da função paterna está, sobretudo, associado à sociedade de consumo, hoje na era da globalização. Jacques-Alain Miller  e Éric Laurent disseram que a nossa época é a do “Outro que não existe”, tempo favorável a um novo cinismo, em que cada um desconfia da verdade e do próximo, ou só pensa em si mesmo. Todos os meios se tornam, então, bons para atingir este fim narcísico. Por sua vez, o sintoma procura o seu gozo no consumo desenfreado. Isto tem fomentado cada dia mais o crime, e tornado a violência ilimitada, muitas vezes violência pela violência. Tudo o que fazia obstáculo à violência funciona mal, ou já não funciona. Na família era, sobretudo, o pai que assumia esta função de obstáculo, que fazia com que o sujeito não fosse além dos sintomas que Freud decifrou como girando à volta do núcleo edipiano. Mas a nossa época produz novos sintomas, distanciados deste complexo de representações familiares e muito mais próximos dos objetivos do mercado. O exemplo mais pertinente é o do tóxico-dependente, consumidor ideal por excelência, que é capaz de tudo, nomeadamente de roubar e matar, para atingir o objeto cobiçado.

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