Edição 267 | 04 Agosto 2008

A função paterna autorizada pela mãe

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Graziela Wolfart

Para Edna Galvão, o sujeito com muitos conflitos emocionais e existenciais sofreu a falta da lei paterna inscrita em seu psíquico

“É necessário que haja, na contemporaneidade, a fala atestante da mãe sobre a autoridade do pai para a criança, pois nenhuma figura do pai, não importa o quanto paternal seja ela, pode prescindir dessa fala.” A consideração é da pedagoga Edna Galvão, ao analisar a função paterna a partir do pensamento de Lacan. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ela ainda afirma que “ter um pai, para um filho, passa pela sensação de se sentir amado e tocado afetivamente por esse homem, de receber proteção física, recursos materiais, cuidados e atenção, fatores que contribuem para a formação de seu caráter e de sua identidade. Esse pai o educou com base na ética, no afeto e no respeito e oportunizou, desta maneira, a este filho, uma vida física, psíquica e emocionalmente equilibrada, dando-lhe condições de sair da posição de objeto do gozo do outro, para ser sujeito de sua própria história e, no rodar do ciclo da vida, saber, um dia, passar de filho a pai”.
Doutoranda em Memória Social na UniRio, Edna Galvão é mestre em Educação, pela mesma instituição, com a dissertação intitulada Ser pai hoje: uma conexão entre educação e psicanálise. Ela ainda possui graduação em História, também pela Unirio, e em Pedagogia, pela Faculdade de Educação Jacobina. Tem experiência na área de Educação, atuando principalmente com os seguintes temas: educação, subjetividade, paternidade e família, memória e criação.

IHU On-Line - Em que sentido a concepção de paternidade a partir de Lacan contribui para o entendimento da figura do pai na contemporaneidade? Que lugar a figura do pai ocupa hoje na sociedade?

Edna Galvão - Lacan parte de uma concepção de família para pensar o pai e o coloca como simbólico, sendo a paternidade decorrente de uma função social, mais importante do que a paternidade biológica. Segundo Lacan, é o Nome-do-Pai que cria a função do pai. Como este não é uma figura, e sim uma função, é através da estrutura da linguagem que a transmissão é possível. É o Nome-do-Pai que dará significação à criança, a partir do significante do desejo da mãe, de que ele tem o que falta nela: o falo simbólico. A emergência do pai enquanto metáfora pura e simples não deixa de subsistir como a única investidura estruturante para a criança, e, se o recalque originário não se dá (o falo como objeto imaginário do desejo da mãe passa para o nível significante do desejo do Outro), todo o processo da metáfora do Nome-do-Pai é comprometido e até mesmo fracassado, pondo em dúvida a questão paterna para o filho. É necessário que haja, na contemporaneidade, a fala atestante da mãe sobre a autoridade do pai para a criança, pois nenhuma figura do pai, não importa o quanto paternal seja ela, pode prescindir dessa fala.

IHU On-Line - O que é para um filho/filha ter um pai? O que faz com que um sujeito diga que tem ou teve um pai?

Edna Galvão - A psicanálise está diretamente relacionada com a possibilidade dada a cada um de dizer, a posteriori, em que medida teve ou não um pai. Lacan formula o Nome-do-Pai (conceito relativo ao conceito de lei, aquilo que coloca limite para os sujeitos) e a metáfora paterna. Para que um sujeito diga que tem ou teve um pai, é necessário que, enquanto sujeito, tenha sido inscrito em sua constituição o significante do Nome-do-pai pelo corpo de um pai sustentando a função paterna. O que é para um filho ter um pai passa pela sensação de se sentir amado e tocado afetivamente por esse homem, de receber proteção física, recursos materiais, cuidados e atenção, fatores que contribuem para a formação de seu caráter e de sua identidade. Esse pai o educou com base na ética, no afeto e no respeito e oportunizou, desta maneira, a este filho, uma vida física, psíquica e emocionalmente equilibrada, dando-lhe condições de sair da posição de objeto do gozo do outro, para ser sujeito de sua própria história e, no rodar do ciclo da vida, saber, um dia, passar de filho a pai.

IHU On-Line - Qual a influência do pai (na concepção de Lacan) para a formação de sujeitos sem os tantos conflitos emocionais e desafios existenciais, comuns hoje, na cultura contemporânea da fragmentação e da globalização?

Edna Galvão - Penso que o sujeito com muitos conflitos emocionais e existenciais sofreu a falta da lei paterna inscrita em seu psíquico - a inscrição do em Nome-do-pai -, que retira o filho da simbiose com a mãe, permitindo ao filho adequar-se às leis da cultura e da linguagem, em direção ao social. Atualmente, e principalmente, na sociedade contemporânea, existe nos seres humanos um anseio pelo pai que lhes dê o contorno da vida, que lhes projete na cultura e que também supram a necessidade da autoridade e da lei. No entanto, como o homem, por ser humano, no exercício da função paterna pode cometer falhas, a função paterna também pode apontar falhas. Reflexos dessas falhas acontecem no meio social, onde o declínio do Nome-do-Pai, e a conseqüente indulgência às leis, produzem alternativas de formação de grupos que não interessam à sociedade.

IHU On-Line - A falta de pai ou um pai que não cumpriu com sua função pode ajudar a explicar o mal-estar da civilização nessa atual época de crises: crise familiar, crise política, crise ética?

Edna Galvão - A falta de pai ou um pai que não tenha cumprido com sua função ajuda a explicar um pouco essas crises, na medida em que não tenha havido outra pessoa (a função paterna, ou seja, o exercício da lei e da autoridade, pode ser exercida pela mãe, na ausência do pai, ou pelo avô, tio etc.) a exercer a função paterna e, por conta disso, o filho não conseguir se enquadrar adequadamente à cultura. O declínio da função paterna, dentro da reflexão social, faz com que o Estado tome o lugar do pai. Em relação ao cumprimento dessa função, pensamos que um filho tem necessidades básicas que precisam ser atendidas não apenas no que diz respeito ao registro da lei, à moradia, à alimentação e saúde, mas também e, principalmente, às suas demandas afetivas, permitindo assim que suas subjetividades sejam estruturadas de maneira saudável.

IHU On-Line - A senhora afirma, em artigo disponível na internet, que “a queda do patriarcado é uma das dificuldades que o homem moderno está enfrentando” e que essa “é uma questão relevante para a subjetividade masculina”. Em que sentido isso afeta no cumprimento da função paterna a partir da concepção lacaniana?

Edna Galvão - O desenvolvimento humano é produto da interação entre os fatores biológicos, ambientais, psicossociais, culturais e econômicos que permeiam a realidade e a singularidade de cada indivíduo. As mudanças socioculturais e econômicas produzidas desde que a mulher, em busca de outras realizações pessoais e profissionais, saiu do mundo privado para o mundo público, têm afetado o exercício da função paterna pelo pai. O homem vive fragmentado entre o que é, o que quer ser e o que deve ser. Com o equilíbrio familiar rompido, o pai contemporâneo, de alguma forma, deve buscar exercer a função paterna sabiamente. Para que o pai ocupe um lugar, é necessário que este exista na estrutura e para o cumprimento da função paterna, dentro da concepção lacaniana, é preciso que a mãe permita que se origine no filho o Nome-do-pai, o que vai afirmar sua autoridade e sustentar suas subjetividades.

IHU On-Line - O que faz parte das subjetividades do “ser pai” hoje?

Edna Galvão - As subjetividades são constituídas pela interioridade – eu, isso e supereu –, pelas instâncias psíquicas, e pelas relações sociais privadas e públicas que o homem vivencia no seu dia-a-dia. Hoje observamos uma mudança radical na maneira de o homem educar e se relacionar com os filhos: pais exercem outras funções no auxílio aos cuidados domésticos e da criança. O poder atribuído hoje, à mulher, por vezes, tem reduzido a figura paterna a uma presença sem muita importância, seja no comando da casa e na divisão de despesas, seja na hora do planejamento familiar no que se refere à concepção. Esses fatores produzem novas e diferentes subjetividades no ser-pai atualmente. Apesar disso, o homem atual, como introdutor da lei e promotor da cultura para os filhos, não pode ignorar as variadas formas de males que permeiam a sociedade contemporânea: a indiferença, a violência, a delinqüência, a toxicomania, o terrorismo e a massificação de nossas singularidades, com profundas e sérias preocupações para a formação das novas gerações.

IHU On-Line – Quais são as principais preocupações que os pais de hoje têm em relação a seus filhos?

Edna Galvão - Ser pai hoje é talvez mais difícil do que o foi ontem. Porém, o ser-pai exige uma profunda preocupação no que se refere ao desenvolvimento dos filhos, em virtude das várias “necessidades” de consumo da dinâmica e competitiva sociedade contemporânea. A preocupação hoje é maior do que antes porque as estatísticas da violência, do vício e do tráfico estão aumentando nas grandes cidades. Para reduzir esses riscos, no entanto, é fato que a efetiva presença dos pais, no exercício da função paterna, dentro dos pressupostos de que se uma criança é amparada, recebe afeto e tem suas necessidades básicas garantidas, levará os filhos a crescerem de maneira saudável e feliz e a permanecerem longe de engrossar essas estatísticas.

IHU On-Line - Qual a relação que se dá entre o papel do pai e o ensino da ética?

Edna Galvão - A psicanálise, para Lacan, é uma ética, uma experiência da ordem da subjetivação, referenciada ao desejo e ao gozo. Em relação à ética social, o pai, no exercício da função paterna, percebe que um dos valores que o paradigma vigente estabelece é a concepção de vida em sociedade como uma luta competitiva pela existência, além da crença de um progresso ilimitado a qualquer custo. A importância da ética se dá na justa medida em que, sem ela, a maior preocupação dos pais poderia ser ensinar seus filhos a competir em um mundo regulado pela lei do mais forte, do mais ágil, do mais esperto ou do que fala mais alto, posto que é preciso aprender a viver neste mundo para vencer e obter sucesso. A partir da ética, vislumbramos um caminho novo para uma cultura paterna mais lapidada e refinada. Talvez a afirmação de que o afeto, o amor e o respeito estão em primeiro lugar, na relação entre pais e filhos, seja a primeira medida da ética paterna.

IHU On-Line - Como entender as três dimensões do pai segundo Lacan (1990): simbólico, imaginário e real, ou seja, as versões do pai?

Edna Galvão - É nas leituras de Freud que Lacan encontra os três registros do pai onde o simbólico é o que permite distinguir um do outro, já que é a função do complexo de Édipo, realidade psíquica que amarra os três. Lacan (1990) aponta a recuperação da função paterna como eixo da cura e procura uma amarração das três dimensões do pai:

- O pai simbólico: originalmente, para a criança, o pai é instaurado como Nome pela mãe. “Aquilo sobre o que queremos insistir, diria Lacan, é do valor que a mãe atribui à palavra do pai, à sua autoridade. O lugar que ela reserva ao Nome-do-pai na posição da lei.”  Só há verdadeira autoridade paterna quando esta for recebida de uma mulher. Para Lacan, é o Nome-do-pai, inscrito na mãe, que permite que se origine no filho o que se chama autoridade paterna. Lugar de inscrição, nesta estrutura que Freud denomina de “inconsciente” e Lacan “o grande Outro”, ou seja, a ordem simbólica onde o pai tem ou não seu lugar.

- O pai imaginário: se o pai como Nome, vem da mãe, o pai como imagem vem da criança. Por volta dos cinco ou seis anos, a criança é introduzida no registro da castração pela entrada em cena da dimensão paterna e passa a se interrogar sobre ser ou não ser o falo, no momento do declínio do Complexo de Édipo e da interiorização do supereu. Cria um pai imaginário, uma imagem paterna de alta estatura e de forte status. É preciso que o pai encarne uma parte dessa autoridade, cuja origem é mais de natureza política e religiosa, do que familiar.

- O pai real: é aquele que, ao instaurar para a criança o luto do pai imaginário, lhe permite não procurá-lo em outro lugar: fora da família, no líder social, político ou religioso. O pai real é aquele que introduz para a criança uma castração, isto é um dizer: “Não, tu não és o falo de tua mãe, nem és aquilo que a ela falta”. O pai real é o agente da castração, quando instaura para a criança um anteparo.

IHU On-Line - Para Lacan, qual o papel da religião na articulação da paternidade, na invocação do Nome-do-Pai? O que permanece disso se pensarmos no pai contemporâneo?

Edna Galvão - Para Lacan, a articulação da paternidade ao pai é efeito de um puro significante, de um reconhecimento não do pai real, e sim daquele que a religião invoca como Nome-do-Pai. A civilização foi edificada na transmissão da crença de um mito fundador da lei, por uma metáfora paterna. Na religião, isso fica muito claro na figura do Papa. Ele encarna o Deus, onipotente e onipresente, porém sua materialidade só pode ser pensada em nível da fé. Diante de qualquer tipo de desamparo, o sujeito busca esta Instância. Não há, na realidade, nada que garanta ao ser humano um lugar de proteção e amparo diante das dificuldades do dia-a-dia. A morte é uma condição humana impossível de se evitar. Porém, o sujeito continua a buscar instâncias imaginárias de proteção, uma lei que o proteja, que promova o encontro com uma ordem inscrita em seu psíquico: um Nome-do-pai, ou seja, a autoridade, a lei que preserva sua saúde mental. O pai contemporâneo deve exercer a função paterna dentro de um novo modelo: participar com a mãe de seu filho da nova estrutura igualitária de poder e hierarquia entre os gêneros.

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