Edição 266 | 28 Julho 2008

Antes que o diabo saiba que você está morto

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André Dick

O filme comentado nessa edição foi visto por algum/a colega do IHU e está em exibição nos cinemas de Porto Alegre, como Arteplex, no Shopping Bourbon.

Ficha técnica:

Título original: Before the devil knows you’re dead
Direção: Sidney Lumet
Gênero: Suspense
Tempo de duração: 117 minutos
Ano de lançamento (EUA): 2007
Elenco: Philip Seymour Hoffman, Ethan Hawke, Albert Finney, Marisa Tomei
Sinopse: Andy Hanson (Philip Seymour Hoffman) é um viciado em drogas que precisa de dinheiro para conseguir ir embora de Nova York. Ele convence o irmão Hank (Ethan Hawke), que também tem problemas financeiros, a assaltar a joalheria de seus pais. No entanto, o plano não sai conforme o planejado.

Entre a liberdade e a degradação

Alguns filmes baseados na realidade, digamos assim, ou seja, não circunscritos a um universo fantasioso, costumam se exceder: quando percebemos um determinado comportamento dos personagens ou excessivos despistes da trama, sabemos que ele passou do ponto, passando a ser exagerado, irreal. Não é o caso de Antes que o diabo saiba que você está morto, certamente um dos filmes mais realistas dos últimos anos. Mas não – longe disso – comum.

A trama, mesmo contada de forma linear (o que não acontece no filme) é, no mínimo, inusitada: dois irmãos, Andy (Phillip Seymour Hoffman) e Hank (Ethan Hawke), estão interessados em dar um novo rumo em suas vidas. A saída proposta pelo mais velho, Andy, é assaltar a joalheria dos próprios pais. No entanto, sem coragem, para isso, convida o irmão mais novo a praticar o ato – dando a desculpa de que esteve há pouco tempo no local para participar de um negócio, ou seja, de que todos lembrariam dele. Hank, no entanto, ainda mais inseguro, envolve uma terceira pessoa, um atendente de bar que, obviamente, acha que irá praticar um assalto fácil. Obviamente, o plano se depara com percalços e o aspecto inesperado, mas nunca menos do que extremamente real, se pronuncia, levando a trama a uma espécie de “efeito dominó”, em que as peças vão desmoronando aos poucos. À medida que os personagens são seres despedaçados pela realidade, um retrato pálido do que sonharam seus pais, eles nunca são menos do que profundamente desesperançosos. Não há, em nenhum deles, empatia ou otimismo. Tanto Andy quanto Hank parecem representar o limite de degradação, no sentido da conservação de valores, como a família e a ética. No entanto, isso esconde algo mais profundo: o assalto não deixa de ser uma maneira de ambos se aproximarem dos pais, distanciados pela vida adulta. O que significa que, apesar de parecer que apenas o dinheiro traz um conforto existencial e familiar, numa sociedade corrompida, em que tudo se perde e nada parece ser recuperado, nem em termos de compreensão, ele é almejado apenas para o sentido de independência e liberdade – em relação sobretudo ao passado.

Se Hank é cobrado diariamente por não conseguir sustentar sua própria filha – tentando mantê-la num colégio para uma classe melhor de vida, o que o obriga a fazer promessas de passeios a ela, sem nenhum dinheiro no bolso – e por dever meses de pensão à ex-mulher, Andy tenta superar o vazio do casamento com Gina (Marisa Tomei, em boa atuação) e do “sonho imobiliário” americano, com desvios de dinheiro, mergulhando no universo soturno das drogas. No entanto, não há nada no comportamento de ambos que indique tamanho desalento. Um é jovem; o outro conseguiu chegar a um certo patamar confortável. No entanto, ambos estão descontentes e ligados pela mesma mulher, Gina, já que esta é amante do cunhado, Hank. Se o círculo familiar, digamos, não é respeitado, os personagens levam ao limite seu conflito com a figura paterna, Charles (interpretado com rara desenvoltura por Albert Finney), de poucos gestos humanos e distante dos filhos.

Aos 84 anos, Sidney Lumet, cineasta caracterizado por tramas lentas e às vezes complexas – como Rede de intrigas e O veredito – tem uma certa obsessão pelo círculo familiar (Daniel e Negócios de família, filmes da década de 1980, representam bem essa característica) e pela situação de assalto (que enfoca no clássico Um dia de cão, no qual mostra o personagem interpretado por Al Pacino acuado dentro de um banco), mas nunca pareceu tão interessado pela degradação do ser humano quanto em Antes que o diabo saiba que você está morto. Sustentado num roteiro escrito por um ex-frei franciscano, Kelly Masterson, Lumet desenha uma verdadeira concepção mórbida da realidade nova-iorquina. Os personagens, à medida em que adentram um universo ao qual não gostariam de pertencer, vão se ligando cada vez mais à paisagem urbana, soturna, pesada, concentrada em bares, quartos pequenos, salas de jantar, banheiros, escritórios envidraçados – que, apesar da suposta transparência, escondem o uso das drogas. O apartamento, por exemplo, onde o personagem de Hoffman vai se drogar fica num prédio do qual é possível ver outros edifícios de Nova York, e a câmera de Lumet sinaliza o vazio que liga o olhar do traficante, sentado à frente da janela, ao céu cinza, sombrio.
 É impressionante como Lumet filma os personagens, não tendo a menor piedade de nenhum – pelo contrário, isolando-os, também em relação ao espectador, que pouco torce para eles, à medida que parecem extremamente voltados ao próprio universo. É claro que o cineasta concede espaço a alguns maneirismos, provindos da cinematografia de Quentin Tarantino, especificamente de Pulp fiction – Tempo de violência, com seus flashbacks, a trama pouco linear, retomando, a cada seqüência, o que se passou antes dela, a fim de que haja uma maior completude na narrativa, além dos congelamentos de imagem, levados à hiperbolia por Fernando Meirelles no excelente Cidade de Deus. O recurso já foi utilizado à exaustão nos últimos anos, em bons filmes, como Amnésia, mas Lumet, de qualquer modo, consegue extrair um realismo vivo dos mesmos movimentos.

Além disso, os personagens que resolve filmar não parecem nutrir nenhuma esperança no futuro – porque o passado, para eles, representado pela figura do pai, deve ser esquecido. É uma cena significativa aquela em que o filho interpretado por Hoffman conversa com o pai durante o enterro. Nela, o pai procura encobrir o afastamento que teve durante toda a vida do filho, jamais conseguindo, no entanto afastar-se dele, porque, afinal, é sua imagem emblemática de futuro; a conversa é no pátio da casa familiar, com mesas e uma espécie de fotografia outonal. Nesse mesmo enterro, ele também acaba julgando o outro filho, interpretado por Hawke, um sujeito fraco. Os dois irmãos, em suas qualidades e defeitos, acabam se completando, mas o que se percebe é que o mais velho acaba tendo uma inveja de, mesmo sendo “melhor sucedido”, não ganhar o respeito do mais novo. É essa tensão interna entre os personagens – bem resolvida nas atuações de Hoffman, um ator cada vez mais primoroso, e Hawke, que interpreta bons personagens inseguros (como aquele que fez no excelente Dia de treinamento, em que divide a tela com Denzel Washington) – que sustenta o filme até a explosão final de violência e questionamento quanto a qualquer motivação existencial. A independência deles em relação às figuras paternas surge de uma maneira traumática, e o que era até antes do assalto uma vida tranqüila se transforma numa viagem ao mundo da criminalidade.
 Outro eixo central do filme é sua ligação com o corpo: ele inicia o filme com uma cena de sexo pouco comum no cinema hollywoodiano entre os personagens de Hoffman e Tomei. O curioso é que o casal lembra que teve os melhores momentos de sua relação no Rio de Janeiro, no Brasil. Este é sempre lembrado como uma espécie de paraíso. Como o par central não parece estar sonhando – ou tendo um pesadelo –, esse parece ser o outro mote do filme: o corpo lhes dá uma fuga da realidade. O personagem de Andy, também, ao se drogar, parece encontrar uma paz que não está mais presente em sua vida. Ou seja, o corpo, ao longo de Antes que o diabo saiba que você está morto, é um retrato do castigo e do pecado, e, se ele está próximo do paraíso, como subentende o ditado que abre o filme, é porque a pessoa não sabe ainda o que a espera. No entanto, ele ainda sonha com o paraíso real, não só fictício: o objetivo da mulher seria também voltar ao Brasil para voltarem a ter a paz que tiveram na passagem pelo país (o que não deixa de ser também fictício). Sob esse ponto de vista, a trama joga com o peso na consciência que carrega os personagens, cada vez mais envolvidos num universo movido pelo dinheiro (o qual tanto almejam) e suas inseguranças referentes ao corpo. Este, portanto, passa a ser um flagelo quando se tenta justificar que ele precisa de paz, seja por meio das drogas ou das viagens que necessitam de dinheiro.
 É curioso que o ex-frei franciscano Kelly Masterson, responsável pela concepção da narrativa, tenha uma visão tão negativa e nebulosa da realidade, mas, ao mesmo tempo, é notável como ele joga com a própria imprevisibilidade desse universo tão real e perturbador. Pois, a julgar pelo filme de Lumet, realmente não se sabe o que virá depois de corrompido o círculo familiar: o destino parece ser uma incógnita, e a humanidade, até determinado ponto, parece se distanciar num corredor vazio. O que Lumet e Masterson nos oferecem não é conforto, mas um sentimento incômodo de o ser humano estar em trânsito, mesmo estagnado.

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