Edição 266 | 28 Julho 2008

Ações de criminalização mostram o autoritarismo das instituições

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Patricia Fachin

Há uma “relação estreita entre a defesa dos interesses do agrenegócio e as ações de criminalização”, garante Sérgio Sauer

Para o Prof. Dr. Sérgio Sauer, da Universidade de Brasília (UnB), em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, a criminalização dos movimentos sociais pode ser explicada pela ineficiência das instituições de entender que “as divergências de interesses e a luta por direitos fazem parte de qualquer sociedade democrática”. Segundo ele, as alianças políticas estabelecidas pelo governo federal estão contribuindo para a deslegitimação dos ativistas. E garante: “Isso resultou na presença, por exemplo, de setores oligárquicos atrasados na base do governo, os quais são completamente refratários às demandas dos movimentos sociais e trabalham ativamente para evitar que políticas públicas estruturantes”.
Sauer possui graduação em Teologia, pela Escola Superior de Teologia (EST), de São Leopoldo, em Filosofia, pela Universidade Católica de Goiás, mestrado em Filosofia da Religião, pela School of Mission and Theology – University of Bergen, da Noruega, e doutorado em Sociologia, pela Universidade de Brasília (UnB), onde atualmente atua como docente. O pesquisador foi responsável pela organização de vários livros dos quais destacamos Capturando a terra: Banco Mundial, políticas fundiárias neoliberais e reforma agrária de mercado (São Paulo: Expressão Popular, 2006), Conferência nacional da terra e da água: reforma agrária, democracia e desenvolvimento sustentável (São Paulo: Expressão Popular, 2007) e Encontro nacional dos povos do campo: por dignidade e justiça (São Paulo: Expressão Popular, 2007).

IHU On-Line - O senhor percebe uma tendência a criminalizar os movimentos sociais no Brasil? Quais são as explicações para compreender esse sentimento de deslegitimação dos que lutam pelos direitos das minorias?

Sérgio Sauer - Acontecimentos recentes, como investigações policiais, processos judiciais, inclusive com o uso da Lei de Segurança Nacional no Paraná, Rio Grande do Sul e Pará, demonstram claramente um processo crescente de criminalização das bandeiras sociais e de seus protagonistas, os movimentos sociais.
Em primeiro lugar, é importante mencionar que essa prática não é recente, mas se tornou mais visível nos últimos anos. A lógica de tratar reivindicações populares como “caso de polícia”, portanto, como crime, não é novidade na sociedade brasileira. A novidade talvez seja o fato de que vivemos em uma sociedade democrática e as iniciativas de criminalização estão partindo de instituições que deveriam primar pela defesa dos direitos das minorias.

A Constituição brasileira estabeleceu o Estado democrático de direitos como um princípio fundamental. Portanto, tentativas de restringir direitos consolidados como, por exemplo, o direito de associação, são chocantes. Além disso, essas ações de criminalização explicitam o autoritarismo das instituições que não conseguem entender que o conflito, ou seja, as divergências de interesses e a luta por direitos, faz parte de qualquer sociedade democrática.

Em segundo lugar, a prática da criminalização é um aprimoramento da violência. Digo isso porque a violência direta e explícita (assassinatos, despejos violentos etc.) é “substituída” por mecanismos mais eficazes de repressão das demandas sociais legítimas. De um lado, não tem a rejeição da sociedade como acontece com a violência aberta e, de outro retira a eficácia das ações. A acusação de crime retira a legitimidade dessas demandas e de seus atores, pois são “criminosos” e “agitadores”.
 
IHU On-Line - A criminalização ocorre com mais freqüência ou de maneira mais acentuada com os movimentos que lutam pelas causas do campo, pela reforma agrária, contra a construção de usinas e barragens, por exemplo?

Sérgio Sauer - Há dois aspectos importantes para entender esse processo. Em primeiro lugar, a criminalização tem como principal objetivo afetar os setores mais organizados e atuantes da sociedade. A lógica é fragilizar, e em última instância condenar para aniquilar aqueles movimentos sociais mais organizados, com maior capacidade de luta, de mobilização. O processo recente de democratização da sociedade brasileira foi forjado junto e através da criação e organização de movimentos sociais que ainda estão atuantes. Esses têm visibilidade na opinião pública e, conseqüentemente, são também os mais visados  nas ações de criminalização.

Em segundo lugar, a sociedade brasileira é determinada pelo que os teóricos chamam de “patrimonialismo”. Em outras palavras, há uma relação direta entre “ter” (propriedade) e “poder”, sendo que a terra é uma expressão simbólica importante desse patrimonialismo. Qualquer ameaça à propriedade da terra afeta, real ou simbolicamente, as relações de poder gerando reações violentas ou mais bem elaboradas, que são as ações legais de criminalização.

No entanto, é importante registrar que a criminalização não acontece apenas com movimentos nacionais, a exemplo do MST. Em recente audiência na Comissão de Participação Legislativa da Câmara dos Deputados, representantes de quilombolas, por exemplo, denunciaram o mesmo tipo de ação em diferentes localidades do país. Nessa lógica de criminalização, há várias iniciativas, como projetos de lei, pedidos de fiscalização, projetos de cancelamento de decisões do Executivo, de parlamentares da Bancada Ruralista caçando direitos de grupos indígenas etc.

IHU On-Line - O avanço do agronegócio tem interferido nas relações do campo e no processo das lutas sociais? Em que medida?

Sérgio Sauer - A expansão do grande agronegócio tem influência direta nas relações sociais e políticas no campo, mas não é mesma coisa que criminalização. Sem sombra de dúvidas, há uma relação estreita entre a defesa dos interesses do agronegócio e as ações de criminalização. Entretanto, a criminalização é o uso dos mecanismos legais e institucionais para transformar ações legitimas em crimes. Tem ocorrido uma inversão da lógica fundante do Estado democrático de direitos, pois aqueles que deveriam ser protegidos são perseguidos e incriminados. Por outro lado, a expansão do agranegócio passa por incentivos e mecanismos econômicos, afetando os direitos das populações pobres em vários sentidos. Um exemplo são as ações governamentais de reforma agrária: a expansão do agronegócio pressiona os preços das terras tornando os processos desapropriatórios mais caros, impedindo a constituição de novos assentamentos ou empurrando esses para regiões de terras ruins, regiões de pouco dinamismo econômico, distantes dos centros urbanos.
 
IHU On-Line - É possível manter uma convivência pacífica entre Estado, grande capital e movimentos sociais?

Sérgio Sauer - Essa é uma pergunta complexa. Diante da conjuntura atual, inclusive de reações de lideranças ruralistas, a exemplo do presidente da UDR (União Democrática Ruralista) no Pontal, a minha primeira reação seria dizer “não”! Mas acredito que é preciso separar e melhor conceituar esses três “atores”. O que quero dizer com isso?

Em primeiro lugar, é preciso ter claro que um Estado democrático  se diferencia de regimes autoritários não só porque aceitam o conflito, mas porque o pressupõe. O conflito - não a violência - faz parte de qualquer sociedade democrática, portanto, manifestações de insatisfação e demandas não podem ser tratadas como crime. Se é assim, a “convivência pacífica” é sempre uma relação que respeita as diferenças de interesses e de demandas. Portanto, reconhece o conflito e as divergências como legítimas.

Não há como negar, esse é o segundo ponto, que os interesses do grande capital não são os mesmos dos movimentos sociais agrários. Em um país como Brasil, de  tanta desigualdade no acesso à terra - e, no momento, com uma tendência de ampliação dessa desigualdade pela crescente expansão do agronegócio -, esses interesses não são facilmente passíveis de acordo. Aliás, em muitos momentos, não há possibilidade de nenhum tipo de arranjo político.
 
IHU On-Line - Como compreender um governo que se originou nas lutas sociais e que apóia uma política neoliberal? O governo é contraditório em relação aos movimentos sociais?

Sérgio Sauer - Não há qualquer sombra de dúvidas que o governo Lula é contraditório em relação às políticas agrárias e agrícolas. Contraditório por várias e diferentes razões, mas cito apenas o fato de que é um governo composto por alianças políticas amplas. Isso resultou na presença, por exemplo, de setores oligárquicos atrasados na base do governo, os quais são completamente refratários às demandas dos movimentos sociais e trabalham ativamente para evitar que políticas públicas estruturantes como a ampliação das desapropriações sejam efetivamente implementadas.

Nesse sentido, a origem do atual governo não explica a atuação do mesmo, e tem um peso pequeno no processo de disputa interna e nas opções políticas. As escolhas e alianças levaram a ações de governo que são planejadas e implantadas, visando ampliar a produção, seja do agronegócio, seja da agricultura familiar. Políticas estruturantes são conflitivas, portanto não são implementadas.
Por outro lado, a origem popular do governo, contraditoriamente, é um dos atores que acionou outras instâncias do Estado a ampliar a criminalização. Em outras palavras, como o Executivo não age para conter os movimentos sociais, adotando uma postura de diálogo, outros mecanismos e instituições atuam ou ampliam suas ações de criminalização.
 
IHU On-Line - O senhor defende a relação do MST com membros do Executivo. Como isso deve ser feito, num estado como o Rio Grande do Sul, por exemplo, em que o governo apresenta uma política de repressão aos movimentos sociais?

Sérgio Sauer - Na verdade, salvo algum equívoco meu, disse recentemente algo no sentido de que é preciso que os movimentos sociais atuem e estabeleçam relações mais estreitas com o Legislativo. Eu estava pensando em âmbito nacional, ou seja, uma atuação mais sistemática junto à Câmara e Senado, mas acho que essa atuação deve se estender para os Legislativos estaduais e municipais.
Essa afirmação é resultado, primeiro, do fato de que eu trabalhava no Senado e percebia uma distância entre aquela Casa legislativa e os movimentos sociais. Mas é mais do que isso, pois acredito que o momento exige a ocupação de espaços políticos de um Estado contraditório. É preciso ampliar as alianças, tanto com setores da sociedade como do Estado, diante de uma conjuntura de crescente ações de criminalização por parte instituições estatais. Na atual conjuntura, acho muito difícil esse tipo de relação com o Executivo gaúcho.
 
IHU On-Line - Em que medida ampliar a participação política pode representar benefícios para os movimentos sociais?

Sérgio Sauer - Mais do que participação política, é fundamental a construção de alianças com diferentes segmentos da sociedade. Portanto, a atuação política deve ser entendida em seu sentido amplo. Em outras palavras, entendo que os movimentos sociais têm atuações diferenciadas de partidos políticos, portanto atuação política não deve ser entendida como atuação parlamentar ou partidária. Por outro lado, a conjuntura exige um maior envolvimento de lideranças políticas (parlamentares), o que vai acontecer a partir da mobilização dos movimentos sociais que estão sofrendo com a criminalização.
 
IHU On-Line - No Rio Grande do Sul, o Ministério Público tentou impedir as marchas do MST. O senhor percebe esse fato como um atentado à democracia e à autonomia dos participantes?

Sérgio Sauer - Sem sombra de dúvidas. Vivemos - mesmo que com todas as imperfeições que as desigualdades sociais impõem a uma real democracia - em um Estado democrático de direitos. A Constituição é clara no direito de ir e vir, no direito de associação, no direito de expressão. As ações do Ministério Público do Rio Grande do Sul atentam contra todos esses direitos. Portanto, são expressões de um estado de exceção. Posso não concordar com o conteúdo da manifestação desse ou daquele movimento, mas preciso respeitar o direito à manifestação. Isso é o mínimo que o Estado de direitos exige.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição