Edição 266 | 28 Julho 2008

Militarização do Estado criminaliza movimentos sociais

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Patricia Fachin

Para Raúl Zibechi, todos os movimentos sociais que lutam contra a expansão das monoculturas representam, na América Latina, um estorvo ao capital. Conseqüentemente, afi rma, são submetidos à repressão

A segunda etapa do modelo neoliberal, mais perigosa do que a primeira, está focada na especulação do petróleo e dos alimentos, colocando em risco a própria vida humana. A percepção é de Raúl Zibechi, jornalista uruguaio e editor do semanário Brecha. Ao avaliar a criminalização dos movimentos sociais na América Latina, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele afirma que, em países como México, Colômbia e Peru, a militarização da vida social acontece com mais intensidade e se resume à denúncia de toda ação social. Segundo ele, esse processo impede qualquer negociação e coloca as propostas dos movimentos sociais num patamar de igualdade aos problemas de segurança.
Raúl Zibechi também atua como assessor de grupos sociais. De suas obras, destacamos La mirada horizontal – Movimientos sociales y emancipación (Montevideo: Edições Nordam, 1999), Genealogia de la revuelta. Argentina: una sociedad en movimento (Montevideo: Edições Nordam, 2003) e Dispersar el poder. Los movimentos como poderes antiestatales (Buenos Aires: Edições Tinta Limón, 2007).

IHU On-Line - Em que medida a militarização do Estado, a qual o senhor se refere, coloca em xeque a atuação dos movimentos sociais e dos grupos que lutam, na América Latina, pelos direitos das minorias?

Raúl Zibechi - A militarização do Estado e da sociedade causa grandes problemas aos movimentos sociais que necessitam de liberdade de expressão e de manifestação para poder viver. A polarização política, que com freqüência precede a militarização, coloca os movimentos diante de alternativas que não são próprias a eles, e os obriga a escolher aliados de modo forçado.

IHU On-Line - A que o senhor atribui a inversão da atividade exercida pelo poder público, que deveria defender a população civil, mas, ao contrário, a reprime em favor de propriedades privadas? 

Raúl Zibechi – Isso acontece porque vivemos uma segunda etapa do modelo neoliberal dedicado à apropriação dos recursos naturais e bens comuns da humanidade: a água, a diversidade biológica, a natureza. Para isso, o poder público necessita militarizar regiões inteiras, porque entende que a população é um inimigo disposto a impedir o saqueio de seus bens. Antes, o modelo neoliberal estava focado nas privatizações, mas agora a especulação já chegou ao petróleo e aos alimentos, o que mostra que a própria vida está em jogo.

IHU On-Line - O senhor percebe, na América Latina, uma tendência à repressão dos movimentos sociais? Analisando o contexto dos países, em qual deles a coerção contra os movimentos sociais é mais evidente?

Raúl Zibechi – Creio que isso ocorra no México, na Colômbia e no Peru, onde governam fortes aliados dos Estados Unidos, e onde se registra uma forte militarização da vida social. Mas, no Chile, há uma forte repressão aos mapuches  e aos estudantes. Na Argentina, existem cerca de três mil desempregados processados pela justiça “por cortar rutas”;  o mesmo acontece com os sem-terra do Paraguai. A militarização do protesto social se resume, com freqüência, à judicialização, que tem efeitos semelhantes, já que toda a ação social é denunciada diante dos tribunais. O objetivo é impedir qualquer negociação e considerar as propostas como ações não políticas, mas como problemas de “segurança”.

IHU On-Line - Pensando a partir dos movimentos sociais, quem são os novos atores da América Latina?

Raúl Zibechi – Hoje em dia, os movimentos mais importantes são os zapatistas,  do México e os sem-terra, do Brasil. Mas movimentos que lutam contra a mineração a céu aberto, no Peru e na Argentina, estão recebendo forte impulso. Esses lutam contra as multinacionais que contaminam a cordilheira dos Andes. Os movimentos urbanos, na Venezuela e os indígenas em todo o continente são atores de primeira ordem.

IHU On-Line - Muitos presidentes latino-americanos elegeram-se com forte apoio do movimento social. Entretanto, em alguns casos, como os de Chile, Brasil, Argentina e Uruguai, se percebe uma frustração dos movimentos com esses governos, uma vez que não romperam com o ideário neoliberal. Qual é a sua avaliação sobre esse fato?

Raúl Zibechi – Há frustração porque além de não se sair do modelo neoliberal, como era esperado, este se aprofundou. As monoculturas de cana-de-açúcar e soja são um bom exemplo. O papel que o capital financeiro desempenha é outro. Se não bastasse isso, os governos de esquerda e progressista conduziram seus discursos de tal modo que agora não conseguem sair de uma situação defensiva e de grande fragmentação. Todavia, teremos de esperar alguns anos para os movimentos recuperam sua força.

IHU On-Line - Fala-se em “múltiplas esquerdas” na América Latina: em “esquerda inteligente e burra”, “esquerda confiável e não confiável”, “esquerda pragmática”, “esquerda populista”. Como o senhor definiria o modelo de esquerda que se pratica na América Latina?

Raúl Zibechi – Acredito que é uma esquerda muito pragmática, tanto que se tornou neoliberal e faz planos sociais como Bolsa Família para conter os pobres. Pode se dizer que a esquerda se fez neoliberal, porque sair desse modelo exige custos políticos muito altos, como a grande instabilidade que provocam as multinacionais e os Estados Unidos. Estas esquerdas pragmáticas não querem passar por crises políticas, porque isso as obrigaria a mobilizar os povos e, no fundo, elas têm medo de seus próprios povos.

IHU On-Line - A que o senhor atribui a inversão da atividade exercida pelo poder público, que deveria defender a população civil, mas, ao contrário, a reprime em favor de propriedades privadas? 

Raúl Zibechi – Isso acontece pela etapa do modelo neoliberal que vivemos. Os governos se sentem na obrigação de proteger os bancos e a soja, por exemplo, mesmo sabendo que eles estão contra a sociedade. Para expandir os cultivos de soja e a criação de gado na Amazônia, a população e a natureza se tornaram um estorvo, incomodam o capital, já que impede seu rápido movimento especulativo. Então, ocorre a repressão, legal ou ilegal.

IHU On-Line - O senhor acredita na construção de um estado plurinacional na América Latina? Como os diversos movimentos sociais podem atuar nesse sentido?

Raúl Zibechi – A maioria dos movimentos indígenas quer um Estado plurinacional, menos os zapatistas e os mapuches. O problema é que as elites e as classes dominantes conservam tanto poder que põe a palavra “plurinacional” na Constituição, sem nenhum efeito significativo. Isso já aconteceu no Equador, e não ocorreram mudanças. Primeiro, é necessário modificar a cultura política hegemônica, e isso leva muito tempo. Logo, se pode legislar, mas a lei não resolve os problemas de dominação, opressão, dependência, humilhação. Acontece o mesmo com a questão das mulheres: os avanços legais são importantes, mas por si só não são suficientes. É necessário que os opressores mudem e que os oprimidos identifiquem a opressão em suas vidas cotidianas, não só no cenário político.

IHU On-Line - Um dos temas que o senhor tem trabalhado é o da integração latino-americana. Está em curso um processo de integração do continente? Quais são as principais características dessa integração? 

Raúl Zibechi – Existem dois grandes projetos de integração. Um é a Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas), encabeçado pela Venezuela, e que tem poucos avanços. O outro é o Mercosul e agora a Unasur (União de Nações Sul-Americanas), onde o Brasil tem um papel muito importante. Caso se consiga a unidade política e a criação de um Conselho de Segurança, como propõe Lula, ocorrerá um grande avanço, porque a região terá se convertido em um contrapeso de Washington. O problema é o livre comércio. Uma integração comercial beneficia as grandes empresas da região, como Petrobras, Odebrecht, Camargo Correa, Itaú. E isso sempre vai contra a sociedade.

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