Edição 265 | 21 Julho 2008

“Paulo foi feito imagem de Cristo, como todo cristão será imagem do Filho de Deus”

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Graziela Wolfart

Padre Valdir Marques reflete sobre a contribuição de Paulo de Tarso para a teologia e a antropologia

“Para Paulo a maior dificuldade era explicar o Cristo crucificado e ressuscitado como salvador, o que as mentes judaica e grega não podiam aceitar”, afirma o padre jesuíta e professor Valdir Marques. Ele lembra que Paulo de Tarso, em Corinto, “combateu os sábios apoiados no mero saber humano e desprovidos do Espírito que conduz a razão em direção da fé. A dificuldade em resolver tais problemas terá sido uma das limitações do cristianismo incipiente”. Para ele, o modelo missionário de Paulo se caracteriza pelo “universalismo da pregação e a inculturação da fé até os confins da terra”. Professor no Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte, MG, Pe. Valdir Marques é doutor em Teologia, pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma. Eis a entrevista, concedida por e-mail para a IHU On-Line

IHU On-Line - Paulo de Tarso é uma figura complexa. Como podemos considerá-lo enquanto figura singular na sua relação com o judaísmo e as origens cristãs?

Valdir Marques - Paulo de Tarso afirmou sempre sua condição judaica de filho de Abraão; porém, viu a Promessa aos Pais (Gn 12,1-3) realizada no Messias Jesus de Nazaré (Gl 3,16). Sua herança cultural helenístico-romana lhe permitiu atingir sínteses fulgurantes a partir das quais o cristianismo teve rápida difusão.  Além disto, muito mais sua figura complexa resulta de sua descoberta de Cristo, a partir de sua experiência na estrada de Damasco. Suas heranças culturais e religiosas superam as dos demais apóstolos. A práxis missionária o levou a “seu Evangelho” desvinculado da Lei de Moisés. Nisto sim, foi totalmente singular na origem do cristianismo. Os Salmos de Salomão 17 e 18, obra farisaica do século anterior,  anunciavam um Messias imortal, santo, justo, capaz de destruir os pecadores e fazer de Israel uma nação santa. Paulo reconheceu em Jesus o Messias imortal de Israel porque o viu ressuscitado. A Ressurreição de Jesus significou o fim do tempo da Lei (Rm 10,4). Este foi o maior confronto com o judaísmo e o motivo de todas as suas divergências na Igreja nascente. Será o motivo do chamado “Concílio de Jerusalém”, que vai provocar o Conflito de Antioquia com Pedro e Barnabé: Paulo não exigia a circuncisão dos gentios. Era uma questão de vida ou morte de seu ministério. Depois de sua morte estes problemas serão resolvidos na Igreja, como o atestam o livro dos Atos dos Apóstolos, que data nos anos 1980.

IHU On-Line - Como entender a experiência de Paulo, o “homem que cai do cavalo”, de encontro com Jesus Cristo no caminho de Damasco?

Valdir Marques - Esta imagem convém mais ao imaginário do que à realidade. Nem Atos nem Paulo mencionam o cavalo (At 9,3-8). Mas esta imagem cumpre uma tarefa: diz a transformação radical de Paulo por iniciativa de Jesus Cristo: o Jesus que julgava morto está inegavelmente vivo e lhe dá ordens. Radicais serão também as conseqüências. Chegado o messias, diziam os Salmos de Salomão 17 e 18, a Lei de Moisés ficava revogada. Jesus Cristo é a imagem verdadeira de Deus e que ilumina todos os que têm fé (2Cor 3,12-18); quem permanecer na Lei jamais entenderá nem o passado de Israel, nem Moisés e nem o Messias; será privado da Salvação dada só pelo Cristo, Vida e Glória de Deus (2Cor 3,38; 4,4-6), pois Salvação da Morte é a Vida eterna. Ora, a Lei não é pessoa e conseqüentemente não tem uma a Vida para dar, isto é, a Salvação. O tempo da Lei passou quando a Vida, o Ressuscitado, chegou (Rm 10,4). Caído por terra, com ou sem cavalo, Paulo foi feito imagem de Cristo, como todo cristão será imagem do Filho de Deus (Rm 8,29). Como valeu aquela queda!

IHU On-Line - É bastante conhecida a importância de Paulo para o encontro da fé cristã com as culturas da sua época. Que continuidades e que rupturas culturais possibilitaram a expansão do cristianismo pela ação missionária de Paulo e de seus colaboradores e colaboradoras?

Valdir Marques - Paulo foi aberto a todas as culturas. Todas elas tinham suas elaborações míticas e filosóficas sobre a divindade, o homem, sua história e o mundo. A diferença entre o que a fé cristã oferecia e o conhecimento acumulado pelas diversas culturas consistia num dado essencial herdado já do judaísmo: a Revelação de Deus a Abraão; em Jesus Cristo ressuscitado, a revelação do Deus dos Patriarcas se completou na “plenitude dos tempos” (Gl 4,4). E a partir disto decorre uma nova compreensão do divino, do cosmo, do homem e sua história. Ao Gênero Humano foi revelado o Deus Vivo e Verdadeiro (1Ts 1,9-10), criador do mundo, do homem e Senhor da história de Salvação que vai se consumar na Parusia  do Filho, o Senhor Jesus. Ora, os dados da Revelação, no confronto de Paulo e seus colaboradores com as diversas culturas, revelaram as rupturas necessárias quanto à compreensão de Deus, do mundo e do homem em diferentes campos: cosmologia, antropologia, ética, sociedade etc. De Harmonia também houve casos, entre o que a razão humana acumulara e os dados da fé; para citar um só exemplo: da ética estóica Paulo conservou elementos válidos.

IHU On-Line - Que possibilidades e que limitações trouxe para o cristianismo o encontro da proposta cristã com a cultura helênica?

Valdir Marques - A possibilidade de diálogo se apresentou em diversos âmbitos. O principal, no entanto, deve ter sido a ultrapassagem da visão herdada do judaísmo quanto à sabedoria ou filosofia dos outros povos. O conhecimento e o ensino no judaísmo eram acumulados e administrados pelos sacerdotes escribas. Para Paulo, a maior dificuldade era explicar o Cristo crucificado e ressuscitado como salvador, o que as mentes judaica e grega não podiam aceitar (1Cor 1,22). Insistindo na necessidade da fé, evita discutir com a “vã filosofia” em Colossos (Cl 2,8). Em Corinto, combateu os sábios apoiados no mero saber humano e desprovidos do Espírito que conduz a razão em direção da fé. A dificuldade em resolver tais problemas terá sido uma das limitações do cristianismo incipiente. Porém, a filosofia greco-romana será integrada mais tarde, como o fizeram Justino e Agostinho (fides quarens intellectum). Ora, se no ensino de Paulo não houvesse brechas para isto (os textos-chaves são 1Cor 6,12; 8,2; 10,23: o cristão deve considerar o que há de lícito e útil nas outras culturas), o cristianismo não ultrapassaria o judaísmo sob este ponto de vista, para lançar as gerações futuras num diálogo com as demais culturas.

IHU On-Line - Que críticas e que inspirações decorrem do modelo missionário de Paulo para a missão cristã em épocas posteriores? O que se pode aprender dele para as questões atuais do diálogo intercultural e inter-religioso?

Valdir Marques - Seu modelo missionário se caracteriza pelo universalismo da pregação e a inculturação da fé até os confins da terra. Era o do proselitismo judaico, paradoxal, porque defendido em teoria por todos, mas rejeitado em momentos pontuais da evangelização. A ação missionária antes do Concílio Vaticano II consistia basicamente na implantação, nas terras de missão, de um cristianismo inculturado na Europa. Ora, para Paulo a fé transcende toda cultura. Os bispos da América Latina em Santo Domingo  adotaram esta visão paulina. Há ainda muito a aprofundar e aprender na direção de um diálogo inter-religioso eficaz. Se procurarmos um ponto a ser atingido, encontramos Gl 3,28: perante Jesus Cristo, todos são iguais, em qualquer cultura, com direito à salvação.

IHU On-Line - Encontramos nos textos paulinos muitas situações em que Paulo lida de frente com conflitos interpessoais, eclesiais e sociais, e também com as próprias fragilidades. Como isto se relaciona com a ética e/ou com a espiritualidade paulina?

Valdir Marques - Paulo solucionou vários conflitos: os pessoais, por seu temperamento forte que o obrigava a auto-correção, como na redação de 1Cor, muito dura, seguida por 2Cor, mais amena. Os interpessoais foram também eclesiais e sociais; os mais dolorosos foram com Pedro e Barnabé durante o “Concílio” de Jerusalém e em Antioquia a propósito da não circuncisão dos gentios. Os sociais mais significativos foram os relacionados com a pastoral e a liturgia (1Cor 11,10; 1Tm 2,11-12 traz normas pastorais, não diminuição da mulher pela soteriologia paulina). Como tanto a ética, como a espiritualidade paulinas procedem da incorporação do cristão a Cristo, Cristo é o critério para discernir o proceder ético e espiritual, individual e comunitário.

IHU On-Line - Como podemos compreender a relação de Paulo com as mulheres que colaboraram e participaram de sua missão e sua visão sobre o lugar e a participação das mulheres nas comunidades eclesiais?

Valdir Marques - Pouco sabemos sobre o que Paulo ensinou sobre a mulher na Igreja porque seus escritos são parte mínima de seu legado. Erro comum nesta discussão é a falta de distinção dos âmbitos teológicos em que Paulo trata da mulher. Do ponto de vista da soteriologia, Paulo considera a mulher igual ao homem: a salvação é dada sem distinção a homem e mulher (Gl 3,28); do ponto de vista do ministério litúrgico, segue o judaísmo que subordinou a mulher ao homem (como em 1Cor 11,7). Do ponto de vista da atividade missionária, em suas comunidades deu a maior importância a líderes como Lídia (At 16,14.20), Evódia e Síntique em Filipos (Fl 4,2); sobre outras mulheres, ver Rm 16,1; Cl 4,15; At 18,18.26; Rm 16,3, além de nove mencionadas em Rm 16. Sobre isto é claro o artigo de Jean-Marie Aubert, “L´apôtre face aux femmes”, em Le Monde de la Bible: Paul de Tarse e voyageur du christianisme, hors série printemps 2008, p.14-17.

IHU On-Line - Quais são os principais elementos da teologia paulina que deveriam ser recuperados para um maior diálogo cultural hoje?

Valdir Marques - A questão fé e razão permanece candente e intrigante. Paulo apenas acena para soluções em textos-chaves (Rm 1,19-20; 11,23; 1 Cor 1,17-30; 2,1-13; 3,19 com 12,8; 2Cor 1,12). A antropologia paulina, tão difícil de sintetizar, é um campo aberto para o diálogo com as antropologias atuais. Muito difícil de conduzir é o diálogo com o judaísmo sobre a cristologia paulina perante o pensamento monoteísta e messiânico. Porém, o problema mais desafiador de todos, porque do próprio cristianismo perante a cultura atual, é o da Encarnação e Ressurreição de Cristo.

IHU On-Line - Qual é a contribuição antropológica que Paulo apresenta na carta aos Romanos?

Valdir Marques - A antropologia de Romanos decorre da cristologia paulina. Rm 5,12-21 é o texto-chave. Remontando às origens do Gênero Humano e a queda no Pecado, Paulo encontra em Cristo o sentido da Criação, sendo Ele o Novo Adão. Conseqüentemente, o Cosmo verá as conseqüências desta Nova Criação em Cristo, num momento pelo qual anseia intensamente: ver a glória dos que antes eram apenas filhos de Adão transformados em filhos de Deus (Rm 8,18-22); todos seremos transformados na imagem do primogênito de Deus (Rm 8,29). Secundariamente a terminologia antropológica de Romanos (anthropos, soma, psyché, sarks, pneuma, thánatos, anástasis nekrôn) traz elementos próprios a serem entendidos em seu contexto.

IHU On-Line - A visão de mundo de Paulo não é um pouco apocalíptica? Como podemos compreendê-la melhor?

Valdir Marques - De fato, é bem pouco apocalíptica em relação ao Antigo Testamento e ao Apocalipse de João. São poucos os textos em que Paulo de Tarso recorre a elementos apocalípticos como em 1Ts 5, onde explica a Ressurreição dos mortos na Parusia. É clara sua concepção de uma Nova Criação que suplanta a Antiga (2Cor 5,17; Gl 6,15; Rm 8,20-22). Se no Antigo Testamento uma Nova Criação viria no fim da história, para Paulo de Tarso este fim já nos alcançou, tendo-se iniciado na Ressurreição de Jesus Cristo para ser pleno com a destruição da morte (1Cor 15,26.54).

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