Edição 265 | 21 Julho 2008

Perseguição nazista à arte: o modernismo como arte “degenerada”

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Márcia Junges

Exposição Arte Degenerada, organizada em Munique, em 1937, foi a maior campanha contra o modernismo. Nazistas queriam desmoralizar arte moderna e substituí-la por uma arte oficial, que espalhasse o ideal de força e pureza alemã, acentua Yeda Arouche

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line por Yeda Arouche, é discutido o uso que os nazistas fizeram da arte, bem como as censuras que impuseram aos modernistas, sobretudo expressionistas, através da desqualificação de suas obras. “O tom satírico e de exprobração, além da constante exposição das mazelas sociais alemãs da época, terminam por irritar as autoridades que passaram a perseguir os expressionistas e, também, os demais modernistas, classificando-os como degenerados”, explica Arouche. Segundo ela, “em 1927, Alfred Rosenberg, principal teórico do nacional-socialismo, inspirado em Nordaus, publica vários ensaios acusando a livre e subjetiva estética moderna de desequilíbrio e de alienação, iniciando um processo de massificação dessa idéia. No ano seguinte, o arquiteto e teórico Paul Schultze-Naumburg  edita seu livro Arte e raça, no qual – usando a força da linguagem visual – apresentava um paralelismo entre imagens de enfermos e desequilibrados mentais com as pinturas modernistas, a fim de imputar degeneração à arte. Em 1929, Rosenberg funda a Liga de Combate pela Cultura Germânica”. Estava montado o pano de fundo sobre o qual os nazistas desqualificariam a arte expressionista equiparando-a ao conceito de degenerada. Infelizmente, não apenas o nazismo usou a arte para atender seus fins: “Por diversas vezes, a arte esteve envolvida, de uma forma ou de outra, com um ou outro tipo de poder, principalmente, os totalitários”, lamenta Arouche.

Carioca, bacharel em Comunicação Social, habilitada em Relações Públicas, Publicidade e Propaganda, também bacharel em Comunicação Visual, pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1980), Arouche priorizou, inicialmente, suas atividades profissionais na área da editoração e produção gráfico-visual, quando paralelamente, trabalhou com estamparia têxtil, desenvolvendo arte para serigrafia. A partir de 2005, retoma as artes plásticas, freqüentando cursos livres de pintura e de história da arte. Dedica-se, também, a estudar e a manter um blog sobre arte (yedaarouche.arteblog.con.br). Em 2008, no Museu Nacional de Belas Artes, cursou Análise da Forma do Estilo/Valores Plásticos das Artes Visuais. Prepara-se para reingressar na Escola de Belas Artes, a fim de sedimentar conhecimentos no campo das artes visuais, destacando pintura.

IHU On-Line - De forma geral, que fatores propiciaram o surgimento de uma arte rompida com a escola acadêmica?

Yeda Arouche - A Revolução Industrial, em meados do século XVIII, foi um grande marco da humanidade, causando mudanças críticas em todos os campos: declínio do feudalismo, espaço para o capitalismo, bens de produção mudando de mãos, reconfiguração de classes sociais, formação da massa de assalariados, reorganização urbana, crescimento populacional, desenvolvimento tecnológico etc. No século seguinte, o processo, iniciado na Inglaterra, já se encontrava espalhado. Havia uma nova ordem, novos pensadores e novas teorias para explicar o novo mundo. Na segunda metade do século XIX, as rígidas tradições da Academia começam a estremecer. Segundo Ferreira Gullar,  quando, em 1874, na França, os impressionistas “rompem com toda e qualquer representação alegórica da realidade, eles de fato operam no campo da arte, a ruptura que já se dera no nível da vida prática”. 

IHU On-Line - O que era o expressionismo, como surgiu e como demonstrou a situação sócio-político-econômica na Alemanha?
Yeda Arouche -
Aponta-se o norueguês Edvard Munch como um dos precursores do expressionismo. Foi influenciado pelo trabalho pós-impressionista de Van Gogh  e de Gauguin.  Do primeiro, veio a carga emocional, e, do segundo, o tratamento achatado das figuras, as cores e a ausência de sombras. Para Munch, uma obra de arte só poderia nascer do interior do homem: “as imagens que ficam do lado de trás dos olhos”. No ano de 1892, Munch repercutiu grandemente na Alemanha, após sua primeira exposição em Berlim. A obra "O grito" (1893), com sua personagem encarnando a própria angústia, é considerada emblemática.

O expressionismo alemão

O expressionismo sedimentou-se na Alemanha, no início do século XX. Seus adeptos criticavam o impressionismo por não aceitarem sensações visuais dando origem à representação. Para o expressionista, o artista deveria lidar com a subjetividade, com os impulsos e com as paixões, fazendo crítica social e tocando em dramas psicológicos. Logo, a simples observação/imitação do mundo exterior havia perdido o valor, enquanto que o sentimento é que seria o notável. O simbolismo, também pode ser apontado como fonte em que bebeu o expressionismo pela possibilidade do uso do onírico.

Inicialmente, dois grupos foram formados. O primeiro foi o Die brücke (A ponte), criado em 1905. Contava com Otto Muller, Emil Nolde  e Ernst Ludwig Kirchner,  dentre outros. Trabalhavam com o cotidiano e com as obsessões. Apresentavam pinceladas vigorosas, deformações no traço e com cores fortes e contrastantes. O segundo núcleo, com postura mais intelectualizada, surgiu em 1911 – o Der Blaue Reiter (O cavaleiro azul) – e contava, entre seus adeptos, com Franz Marc,  Paul Klee  e Wassily Kandinsky.  O grupo apresentava uma variedade de formas, sem nenhum compromisso com um “particular estilo pictórico”, conforme ilustrou Kandinsky. Tanto A ponte quanto O cavaleiro azul se desfizeram antes da Primeira Guerra Mundial. As idéias expressionistas produziram grandes ecos, acabando por se estender para outras manifestações artísticas como a música, a dança, a literatura, o cinema e as artes gráficas.

A crise econômica que se propagou na Alemanha de 1918, ao final da guerra, provocou um caos. Sob falências, alta inflação e desemprego em massa, o país vivia uma sucessão de fracassos. A instabilidade e a falta de perspectivas muito contribuíram para que as idéias do nazismo acabassem por triunfar, em 1933, com a ascensão de Hitler.

Mazelas sociais expostas na arte

O expressionismo, em 1923, contou com uma nova formação: o Neue sachlichkeit (Nova objetividade), que recusava tendências abstracionistas. Em 1925, o grupo realiza uma exposição, em Munique, mostrando a decadente sociedade alemã. Assumindo postura muito mais politizada que seus antecessores mantiveram-se na crítica social e incluíram temas antibelicistas e preocupações com o cenário evolutivo para a centralização do poder e conseqüente fortalecimento do Estado.  

Otto Dix  e George Grosz  foram expoentes dessa terceira geração de expressionistas. Ambos vão abraçar certas temáticas como a hipócrita burguesia alemã, os horrores da guerra e os socialmente rejeitados. É interessante observar as obras “Prague street”(1920), “Metropolis” (1928) e “The seven cardinal sins” (1933), todas de Dix; e “Street scene” (1925), “The pillars of society” (1926) e “Berlin street” (1934), de Grosz.

O tom satírico e de exprobração, além da constante exposição das mazelas sociais alemãs da época, terminam por irritar as autoridades que passaram a perseguir os expressionistas e, também, os demais modernistas, classificando-os como degenerados.

IHU On-Line - Quais são as origens da idéia do “degenerado”?

Yeda Arouche - Na década de 1920, o modernismo faz renascer velhas discussões em torno do estilo artístico versus qualidade racial, com a finalidade de confirmar a arte naturalista alemã do século XIX, como nobre representante da estirpe ariana. Anteriormente, em 1829, Max Nordaus  já havia feito analogia entre a degeneração patológica com a decadência que imputava à arte dos simbolistas, para defender a espiritualmente saudável e superior cultura alemã. Isso terá desdobramentos futuros.

Em 1927, Alfred Rosenberg,  principal teórico do nacional-socialismo, inspirado em Nordaus, publica vários ensaios acusando a livre e subjetiva estética moderna de desequilíbrio e de alienação, iniciando um processo de massificação dessa idéia. No ano seguinte, o arquiteto e teórico Paul Schultze-Naumburg edita seu livro Arte e raça, no qual – usando a força da linguagem visual – apresentava um paralelismo entre imagens de enfermos e desequilibrados mentais com as pinturas modernistas, a fim de imputar degeneração à arte. Em 1929, Rosenberg funda a Liga de Combate pela Cultura Germânica. Ao cenário que se vem arquitetando, somam-se idéias políticas sobre indesejáveis influências, tanto capitalistas como comunistas, sobre a arte.

Quando Adolf Hitler chegou ao poder, em 1933, o modernismo já estava definitivamente ligado à imagem de degeneração. Sobre os artistas modernos, Hitler disse que se suas obras foram “resultado de uma experiência interior, então eles são um perigo público e devem ficar sob supervisão médica […] se era pura especulação, então deviam estar numa instituição apropriada para o engano e a fraude”.

IHU On-Line - Por que se acusava a estética modernista de ser desequilibrada? Que tipo de arte se tornou oficial do Estado nazista e como funcionou a repressão às manifestações artísticas?

Yeda Arouche - O modernismo incomodou primeiro por rejeitar as tradições do passado. O artista moderno adquirira liberdade de criação, formal e de expressão, lidando com a sensação pessoal, fazendo críticas e levantando questões. Tal postura, no mínimo, foi desconfortável para um estado centralizador que precisava sustentar uma ordem e uma união em torno de sua ideologia. Além disso, para a ótica nazista, qualquer representação fora dos padrões naturalistas seria considerada um desequilíbrio, uma degeneração.

A partir de 1933, a Liga de Combate pela Cultura Germânica propagaria a idéia de que o esforço nazista não se importava apenas com os aspectos político-econômicos, ao contrário, preocupava-se em realizar uma ampla ação cultural. Nesse sentido, calar os indesejáveis e nortear os padrões estéticos do regime, o governo proibiu a diversidade criativa e impôs o neoclassicismo como modelo a ser seguido. Promoveu algumas exposições difamatórias e ditou medidas coercitivas.

Passam a ser perseguidos todos os que pudessem ser identificados como contrários às diretrizes nacionalistas e retirados de circulação qualquer meio de disseminação de idéias vanguardistas. Hitler mandou fechar a Bauhaus, a primeira escola de design, arte e arquitetura de vanguarda (1919/1933). Muitos livros e outras publicações foram varridos do território alemão. Diretores de museus foram cassados. Artistas foram proibidos de dar aulas, de expor ou de comercializar seus trabalhos. O nazismo impôs uma verdadeira “caça às bruxas”, confiscando de galerias, de museus e de particulares, todas as obras de arte consideradas degeneradas. George Grosz pinta A bestialidade avança, em 1933, como resposta a perseguição do Terceiro Reich.

IHU On-Line - O que foi a exposição Entartete Kunst (Arte Degenerada) e quais são os principais artistas considerados “degenerados” pelo nazismo?

Yeda Arouche - A exposição Arte Degenerada foi inaugurada em Munique, no ano de 1937, como maior acontecimento da campanha contra o modernismo. Os nazistas pretendiam a total e irreversível desmoralização da arte moderna. O evento foi de grande repercussão reunindo em torno de 650 obras, selecionadas entre milhares que foram apreendidas. Tal acervo era “fruto da insanidade, imprudência, inépcia e completa degeneração”, segundo Adolf Ziegler , presidente da Câmara de Artes Plásticas e organizador do evento. Paralelamente, o governo planejou e inaugurou com grande pompa e destaque a Exibição da Grande Arte Alemã. Assim, o povo poderia bem comparar a arte “degenerada” com a arte que oficialmente espelhava o ideal de força e de pureza da raça alemã.

Guerra à “desintegração cultural”

Observa-se como curiosa a arrumação propositalmente descuidada da exposição degenerada. Tal coisa fazia parte dos planos do Reich para aumentar a estranheza e a desagrado que deveriam transmitir as obras condenadas pelo sistema. Pinturas de autoria de doentes mentais internados em hospitais alemães foram expostas junto aos quadros de artistas consagrados. Muitos títulos foram substituídos por outros mais jocosos para causar impacto negativo. Fora isso, é claro, fluía um discurso político moralizante e insultos atirados contra a estética modernista.  Nas palavras de Hitler, “de agora em diante nós iremos empreender uma guerra implacável contra os últimos remanescentes da desintegração cultural [...]. Por tudo que nós apreciamos, esses bárbaros pré-históricos da Idade da Pedra podem retornar às cavernas de seus ancestrais e lá realizar os seus rabiscos primitivos internacionais”.

A Arte Degenerada circulou pelo país, coroando o esforço de purificação de galerias e museus alemães. O empenho nazista foi um sucesso, se for considerado o expressivo número de visitantes. Mais de dois milhões de pessoas desfilaram pelas galerias para ver as obras dos desprezados, e, principalmente, a dos expressionistas alemães em grande evidência na época. Os cofres do partido também lucraram com o empenho. Muitas obras foram leiloadas, rendendo ótimos números para o ideal nazista. Algumas obras de arte que não foram vendidas destinaram-se à destruição sumária. Cerca de quatro mil pinturas, aquarelas e trabalhos de outras técnicas foram incinerados.

A exposição contou com mais de 100 artistas, destacando-se Herbert Bayer,  Max Beckmann,  Marc Chagall,  Lasar Segall,  Otto Dix, Wassily Kandinsky, Franz Marc, Georg Munch, Emil Nolde, El Lissitzky,  Paul Klee, Max Ernst,  Piet Mondrian  e George Grosz.

IHU On-Line - Após a guerra, o que aconteceu aos artistas que aderiram à arte oficial do nazismo?

Yeda Arouche - Boa parte dos artistas “degenerados” ao final da guerra tornou-se célebre. O mesmo não ocorreu com os artistas “perfeitos” que reproduziam a Alemanha “perfeita” sob a luz da eugenia e da “saudável” arte nazista. Estes últimos foram estigmatizados e caíram numa espécie de limbo, no ostracismo.

IHU On-Line - Como compreender a submissão de artistas e uso da arte pelo regime ditatorial de Hitler?

Yeda Arouche - É preciso lembrar que o nazismo não foi a única organização a usar a arte para melhor atender às suas necessidades. Por diversas vezes, a arte esteve envolvida, de uma forma ou de outra, com um ou outro tipo de poder, principalmente, os totalitários: fascismo, stalinismo, maoísmo e até o salazarismo. Anteriormente, Napoleão Bonaparte  já havia utilizado o neoclássico para oficialmente glorificar e divulgar seu desempenho político. Taunay e outros artistas franceses de sua época registraram as glórias napoleônicas: foram artistas moldados na França revolucionária, preparados para a arte a serviço do Estado. E, mesmo fugindo da ótica política, encontramos o barroco como um exemplo de estilo oficial utilizado pela “reforma” católica, conhecida por contra-reforma, que transformou igrejas em verdadeiros espaços cênicos, onde se esperava comover pessoas a fim de mantê-las fiéis a religião, em época de cisão.

Principais fontes pesquisadas:

• CHIPP, H. B. Teorias da Arte Moderna Martins Fontes, 1999

• FER, Briony e outros. Realismo, Racionalismo, Surrealismo – a arte no entre-guerras. Cosac & Naify Ed. 1998

• Revista “Aventuras na História" - Edição 47 / Julho de 2007, artigo de Sérgio Miranda

Sites:

• Museu de Arte Contemporânea/ USP: http://www.mac.usp.br/

• Enciclopédia Itaú Cultural: http://www.itaucultural.org.br

 

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