Edição 265 | 21 Julho 2008

Oposição ao nazismo foi radicalmente emudecida por mistura de intimidação e terror

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Márcia Junges

Minorias ainda professam pensamento reacionário, mas não possuem mais chances dentro da política alemã, sentencia o historiador Andreas Wirsching. Entre as causas da ascensão do Terceiro Reich, deve-se levar em conta elementos da cultura política alemã do final do século XIX

O advento do nazismo na Alemanha legou ao país uma “alta sensibilidade para os riscos do extremismo político”, pondera o historiador alemão Andreas Wirsching, na entrevista exclusiva a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Em sua opinião, mesmo que em setores marginais da sociedade existam o nacionalismo, o racismo e o anti-semitismo, “eles já não têm mais chances no discurso político”. E acrescenta: “Neste sentido, a experiência da ditadura nacional-socialista também contribuiu para a estabilidade da democracia alemã do pós-guerra”. Sobre a concordância do povo com a ascensão do Terceiro Reich, Wirsching pontua que este teve inúmeras causas que remontam a elementos da cultura política alemã do final do século XIX: “um pensamento antiliberal, susceptibilidade para ideologias de um nacionalismo extremo e de um populismo racista, mas também a forte ruptura sociopolítica da sociedade alemã que foi refortalecida pela revolução de 1918-1919. Acresce a isto a concreta falência das elites conservadoras burguesas nos anos de 1930 a 1933 e a crise européia da democracia, ante cuja retaguarda foram de muito peso os desenvolvimentos alemães específicos”. Vale lembrar, contudo, que menos da metade dos eleitores deram seu voto a Hitler, e que houve, sim, oposição ao Estado nacional-socialista. Essa oposição, entretanto, foi “radicalmente emudecida por uma mistura de intimidação e terror”. 

Andreas Wirsching é historiador graduado em História e Teologia, pelas universidades de Berlim e Erlangen. Ensina na Augsburg Universität, é professor visitante do Institut d’Études Politiques, em Paris, da Universität Eichstätt, e lecionou, também, em Tübingen, Regensburg e no Institut für Zeitgeschichte em Munique. Organizou os livros Nationalsozialismus in Bayerisch-Schwaben (Herrschaft – Verwaltung – Kultur (Ostfildern, 2004) e Herausforderungen der parlamentarischen Demokratie. Die Weimarer Republik im europäischen Vergleich (München, 2007).

 

IHU On-Line - Como podemos entender que, em pleno século XX, e com amplo apoio do povo alemão e de outras partes do mundo, se tenha chegado ao terror nazista?

Andreas Wirsching - Esta pergunta é, sob diversos aspectos, um permanente desafio. Ela vale da mesma forma para a pesquisa histórica como para a formação política e a cultura da memória. O estabelecimento da ditadura nacional-socialista teve muitas causas. Há, a destacar, alguns elementos da cultura política alemã que remontam a fins do século XIX: um pensamento antiliberal, susceptibilidade para ideologias de um nacionalismo extremo e de um populismo racista, mas também a forte ruptura sociopolítica da sociedade alemã que foi refortalecida pela revolução de 1918-1919. Acresce a isto a concreta falência das elites conservadoras burguesas nos anos de 1930 a 1933 e a crise européia da democracia, ante cuja retaguarda foram de muito peso os desenvolvimentos alemães específicos.

IHU On-Line - Por que as pessoas não reagiram à proposta assassina de Hitler ?

Andreas Wirsching - Em primeiro lugar, é preciso constatar que, mesmo nas eleições já não plenamente livres do Reichstag de 5 de março de 1933 – portanto, após a nomeação de Hitler como Chanceler do Reino –, menos da metade dos eleitores deram seu voto a Hitler, escolhendo a NSDAP . E naturalmente também houve oposição contra o injusto Estado nacional-socialista, oposição que, em todo o caso, já em 1933 foi radicalmente emudecida por uma mistura de intimidação e terror. Não se deve esquecer que os primeiros prisioneiros dos campos de concentração foram alemães que, de uma forma ou de outra, se posicionaram contra o regime. Mas, ao mesmo tempo, certamente também houve na sociedade alemã uma enorme quantidade de entusiasmado apoio ao regime nacional-socialista. Isso permitiu a Hitler e aos nacional-socialistas fundar seu poder num misto de violência e apoio.

IHU On-Line - O que era a Hitlerjugend? Como é possível compreender a adesão dos jovens ao nazismo daquela época?

Andreas Wirsching - No decurso da dominação nacional-socialista, a Hitlerjugend se tornou uma organização estatal dos jovens com uma adesão em princípio compulsória. De regra, portanto, os jovens deviam aderir à HJ. Seu posicionamento à HJ podia, então, realmente oscilar de uma cooperação entusiasta a uma rejeição interior. Embora não tenha sido atingida a plena adesão da juventude, a Hitlerjugend constituiu, todavia, um forte fundamento ideológico e organizatório do Regime.

IHU On-Line – De que modo as ações de Hitler contribuíram para a formação da Alemanha atual? O que você destacaria?

Andreas Wirsching - O mais importante talvez seja uma alta sensibilidade para os riscos do extremismo político. Embora ainda hoje, em setores sociais marginais ainda (ou novamente) existam o nacionalismo, o racismo e o anti-semitismo, eles já não têm mais chances no discurso político. Neste sentido, a experiência da ditadura nacional-socialista também contribuiu para a estabilidade da democracia alemã do pós-guerra.

IHU On-Line – Como é contado na Alemanha o período histórico do nazismo?

Andreas Wirsching - No discurso público, estão em primeiro plano o pensamento nas vítimas e a responsabilidade histórica dos alemães. Na discussão científica, há um bom tempo a investigação dos culpados vem conquistando um grande significado. Esta última também foi incentivada pelo resultado dos grandes processos nacional-socialistas desde os anos de 1960 – como os processos de Auschwitz. Os dois juntos causam uma forte concretização da concepção histórica. Hoje se quer saber com muito maior exatidão quem foram concretamente as vítimas e quem foram os culpados.

IHU On-Line – De que modo o governo e a Alemanha lidam com as vítimas do nacional-socialismo?

Andreas Wirsching - Na República Federal, existe uma longa tradição de “reparação”, um conceito que em todo o caso levanta alguns problemas, já que naturalmente a injustiça cometida jamais poderá ser transformada em algo que não aconteceu. Apesar disso, a República Federal da Alemanha se concebeu, desde o início, como sucessora jurídica do Reino Alemão e, conseqüentemente, também assumiu a responsabilidade pelas conseqüências dos crimes do regime nacional-socialista. Isso vale, apesar do fato conhecido que, nos anos de 1950, muitos culpados do nacional-socialismo escaparam sem punição e certa “repressão” do passado talvez tenha inevitavelmente ocorrido. Em todo o caso, houve na República Federal um número considerável de ações reparadoras, restituições de bens etc., embora nem todas as reclamatórias tenham sido saldadas. Nos anos de 1990, chegou à ordem do dia o tema das vítimas dos trabalhos forçados, que exigiram progressivamente uma indenização individual do Estado alemão ou também das empresas envolvidas. Baseando-se no fundo formado pela indústria, foram criadas na época algumas ações de reparação que, em face da injustiça de fato sofrida pelas vítimas, em geral só podiam ter caráter simbólico. Atualmente, se discutem as reclamatórias de vítimas gregas e italianas de trabalhos forçados e isto mostra que este tema ainda está longe de ser encerrado.

IHU On-Line – Que traumas você destacaria ao falar das pessoas que na época sofreram com o nazismo?

Andreas Wirsching - Os traumas são de natureza multiforme. Eles abrangem desde a perda de familiares mais próximos até danos da própria pessoa pelas conseqüências de prisões, trabalhos forçados e torturas. De sobreviventes do Holocausto, sabemos que as conseqüências podem ser sentidas durante toda a vida e também na próxima geração.

IHU On-Line – De que forma a sociedade lida com o tema do nazismo? Este ainda é um assunto “tabu”, um trauma coletivo?

Andreas Wirsching - Não seria minha opinião que o nacional-socialismo ainda seja hoje um tabu da sociedade alemã. Ao contrário, nas ciências, na opinião pública e na mídia, mas também nas escolas o tema é tratado de maneira bastante ampla. Há um número extenso inabrangível de memoriais, a começar pelo Memorial KZ, de Dachau, até o novo memorial admonitório do Holocausto em Berlim. Outros novos memoriais e, respectivamente, centros de documentação, foram erigidos em Nürenberg, no monte de Obersalz, ou futuramente também em Munique. Assim, o nacional-socialismo realmente não é mais tabu. Isso, em todo o caso, não exclui que em grandes datas comemorativas predomine antes na política pública um trato ritualístico com o tema, que se movimenta dentro de determinados limites.

IHU On-Line – Como se deu esse processo de “hierarquias de vítimas” e de “competições entre vítimas” na Alemanha?

Andreas Wirsching - Esta é uma questão muito importante e interessante. No imediato período pós-guerra, os alemães se consideraram eles próprios, com bastante predominância, como as principais vítimas da guerra – como vítimas de expulsão e de bombardeios, mas também como vítimas de arbitrariedades dos aliados. Demorou basicamente até os anos de 1960/1970 até que na ampla opinião pública tenha surgido uma consciência das vítimas do próprio nacional-socialismo. Desde então, como já foi frisado, a sensibilidade pelas vítimas concretamente palpáveis cresceu nitidamente, tendo, naturalmente, também a mudança de gerações contribuído para isto. Bastante cedo foi lembrado o sacrifício dos crimes de eutanásia, bem como o dos alemães que perderam sua vida no contexto de 20 de julho de 1944. No centro das atenções, estão hoje certamente as vítimas do povo judeu, onde a recordação publicamente construída sobre os judeus alemães que foram deportados da Alemanha e assassinados poderia ser bem mais concreta do que é a consciência para a mídia oriental e os judeus do Oriente europeu, que desde 1939 caíram no âmbito de poder do regime nacional-socialista e se tornaram as primeiras vítimas do Holocausto. Em tempos mais recentes, também cresceu a consciência para outros grupos de vítimas.

Na República Democrática Alemã (RDA), houve uma clara hierarquia das vítimas, ideologicamente fundamentada. Na ponta estavam as “vítimas do fascismo”, ou seja, em geral lutadores comunistas da resistência. Judeus e outras vítimas do racismo nacional-socialista possuíam, principalmente na fase inicial da DDR, um status de vítimas nitidamente menos valorizado.

IHU On-Line – Ainda existem na Alemanha segmentos que defendem uma política xenófoba? O que faz a sociedade para mudar este quadro?

Andreas Wirsching - De fato há, na Alemanha, um ambiente fortemente minoritário de extrema direita com tendências claramente xenófobas. Ultimamente, ele também se organizou num partido político, como o NPD  e, em eleições políticas, como, por exemplo, no Estado da Saxônia, ele também pode pretender alguns resultados. Política e socialmente, este meio é combatido e é realçado o quadro de uma Alemanha hospitaleira e aberta ao mundo. Isto ocorre através de atos públicos, de publicidade e também de medidas políticas concretas, como o cumprimento da proteção constitucional.

IHU On-Line – De que forma você percebe o posicionamento da Igreja Católica e da Igreja protestante em relação ao nazismo?

Andreas Wirsching - Ambas as Igrejas demonstraram pouca força de oposição em face do regime nacional-socialista. No protestantismo alemão, houve a tendência de confundir a história da própria nação com a revelação divina. Formulado teologicamente, isto foi uma espécie de heresia que representava, simultaneamente, uma disposição perigosa para as tentações ideológicas do nacional-socialismo. Em vista disso, não é de admirar que até 1933 os protestantes votaram superproporcionalmente no NSDAP, na posição nacional-socialista alemã. Para a Igreja Católica oficial, o nacional-socialismo, até a tomada do poder, valia como neopaganismo. Isso significa que um bom católico não podia ser também um nacional-socialista. Violações podiam até trazer consigo a excomunhão. No entanto, após 30 de janeiro de 1933, a Igreja Católica “mudou de posição” muito rapidamente e – com base na concordata de julho de 1933 – se arranjou com o Estado nacional-socialista. Determinadas extrapolações cosmovisivas – antiliberalismo, antibolchevismo, em parte também anti-semitismo – facilitavam este arranjo. Uma resistência eclesiástica em sentido mais estrito só existiu em pessoas individuais que, em parte, pagaram por isso com a vida, como o protestante Dietrich Bonhoeffer  ou o católico Alfred Delp . Uma “resistência” eclesiástica só havia quando o regime ameaçava setores nucleares da liberdade de culto. Um ponto importante é o protesto das igrejas contra o crime da eutanásia, que em 1941 também foi publicamente articulado nas igrejas e causou um imediato recuo do regime. No entanto, não se ouviu um protesto público semelhante por parte das igrejas contra a perseguição dos judeus.

IHU On-Line – E, especificamente, o que você diria sobre o papel do Papa Pio XII , Eugênio Pacelli, no momento político da Alemanha nazista?

Andreas Wirsching - Aqui vale basicamente o mesmo. Sob Pio XII, o Vaticano se empenhou por uma postura de compromisso com o regime nacional-socialista. É verdade que ele contemplou as lesões da concordata pelo Estado nacional-socialista através da encíclica Mit brennender Sorge (Com ardente preocupação), porém se omitiu em tomar posição explícita contra o nacional-socialismo ou erguer publicamente sua voz contra a perseguição dos judeus. Neste sentido, a posição do Vaticano, bem como a do catolicismo ante o regime nacional-socialista, se manteve, em seu conjunto, ambígua.

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