Edição 264 | 30 Junho 2008

A “estética do frio” e a identidade rio-grandense

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Graziela Wolfart e Greyce Vargas

Para Vitor Ramil, é preciso fugir dos estereótipos e retratar a cultura gaúcha a partir das experiências de vida

Música e literatura são áreas artísticas que falam muito sobre a cultura de um povo. Mais do que isso, são uma forma de registro dessa cultura ao longo do tempo. E foi por essa razão que a IHU On-Line entrevistou por telefone o músico e escritor gaúcho de Pelotas Vitor Ramil. Em suas respostas, Vitor embasa sua visão sobre a identidade do gaúcho contemporâneo num conceito criado por ele chamado “estética do frio”. Este conceito virou livro, com o mesmo título, publicado em 2004 pela editora Satolep Livros.
Quando Vitor pensa em identidade rio-grandense, ele afirma: “Estamos numa região em que existe a confluência de três culturas (brasileira, argentina e uruguaia), numa espécie de funil do país. Temos Santa Catarina e Paraná entre nós e o resto do país. Enquanto região Sul, somos bastante diferentes do ‘Brasil tropical’. Seria importante enfrentarmos nossos clichês e percebermos como é a nossa brasilidade, como é ser brasileiro nesse lugar, nessas condições geográficas e culturais”. Vitor é também autor de Pequod (São Paulo: Cosac Naify, 2008) e Satolep (São Paulo: Cosac Naify, 2008). Mais informações podem ser encontradas no site oficial do artista: www.vitorramil.com.br  

IHU On-Line - Quais são as relações entre a “estética do frio” e a identidade do gaúcho contemporâneo?

Vitor Ramil – A expressão “estética do frio” criou uma movimentação bem significativa, porque, quando reflito sobre esse conceito, eu fatalmente entro em assuntos como as questões de identidade aqui do Sul. Especificamente para o Rio Grande do Sul, as reflexões sobre a “estética do frio” com relação à identidade e à produção cultural têm encontrado muito eco no que as pessoas pensam e sentem. Percebi que o ecletismo, muito forte na música brasileira, me atrapalhava em termos de encontrar uma definição para meu trabalho. E meu norte foi justamente o sul, quando comecei a pensar nessa estética. Pois achei que o Brasil tinha uma espécie de estética que unificava todas as suas regiões, com músicas que eram sempre um convite à dança, à rua, à festa. E isso é diferente aqui no Sul. Falo desse nosso sentimento de ser ou não ser brasileiro, de ser uruguaio, argentino, mais platino do que brasileiro. E comecei a reagir um pouco aos estereótipos, tanto a esses que acabo de mencionar (de ser mais uruguaio etc.) e do gaúcho se achar melhor do que o brasileiro, quanto àquele de ser brasileiro: ser alegre, tocar música para dançar, pular carnaval, entre outras coisas. Por meio da “estética do frio”, me dei o direito de transitar pelo imaginário regional com muita liberdade. Comecei evitando o estereótipo do gaúcho. Ao olhar para meu trabalho, para minha música, e de outros artistas também, sempre quando entrava no terreno do regional soava muito caricato, em termos de instrumentação, de letras. Estamos numa região em que existe a confluência de três culturas (brasileira, argentina e uruguaia), numa espécie de funil do país. Temos Santa Catarina e Paraná entre nós e o resto do país. Enquanto região Sul, somos muito diferentes do ‘Brasil tropical’. Seria importante enfrentarmos nossos clichês e percebermos como é a nossa brasilidade, como é ser brasileiro nesse lugar, nessas condições geográficas e culturais.

IHU On-Line – E, a partir disso, como você avalia o que está acontecendo na política gaúcha atual?

Vitor Ramil – Avalio como algo que acontece em qualquer outro lugar do país. Não há diferenças. Não consigo, por exemplo, relacionar o sentimento de “ser gaúcho” com o comportamento dos políticos. Os políticos são esses que já conhecemos. As barbaridades que estão acontecendo aqui e agora acontecem em todos os estados brasileiros.

IHU On-Line – Mas sempre houve a concepção entre o povo gaúcho de que aqui não havia corrupção e esse tipo de coisa não acontecia...

Vitor Ramil – Isso é uma mentira! Quem falou isso? Isso é um clichê, mais um estereótipo. “Ah, somos o povo mais politizado...”. Nós já fomos um estado com muito investimento em educação, na época do Júlio de Castilhos, dos positivistas, e do Brizola, que colocou escolas por todos os cantos do estado. O governo do PT também teve uma atuação interessante nessa área. Mas isso não significa que seja assim o tempo todo, que sejamos mais politizados do que outros estados, ou que aqui não tenha corrupção. Cada região tem suas características, mas o corrupto está em todas as partes, em todo o país.

IHU On-Line – E por que o gaúcho se sente tão diferente num país feito de tantas diferenças?

Vitor Ramil – Temos a questão do clima como exemplo de diferença. Quando falo em “estética do frio”, não é para dizer que onde faz frio precisamos criar dessa ou daquela maneira. Utilizo a idéia do frio como uma metáfora. É preciso abstrair para entender o conceito. O frio é algo simbólico na gente. Evidentemente, ele é bastante determinante no nosso comportamento. O clima nos leva a um outro tipo de atividade cultural, de ritmo de vida. No entanto, não quer dizer que não possamos fazer uma música alegre, por exemplo.

IHU On-Line - Que tipo de música mais representa o povo gaúcho atual?

Vitor Ramil – Não acho que exista uma música que represente mais o povo gaúcho. É um desafio interessante buscar isso. Mas não fico procurando. O artista fala por si mesmo, de uma realidade sua, interna. A obra representa o artista, a pessoa, o ser humano, individual. Claro, a partir do momento em que o artista escreve sobre a sua cidade, o seu lugar, no caso da literatura em que os personagens transitam em um local que é compartilhado, que é público, daí se fala de coisas que as pessoas também reconhecem em seus atos. Para mim, a a música gauchesca não nos representa completamente. Em parte, ela nos representa tanto quanto o rock porto-alegrense. Sinto falta e sempre procurei fazer o meu trabalho no sentido de conseguir uma linguagem artística que unificasse todas essas coisas, porque eu, Vitor, particularmente, me interesso por todas essas linhas.

IHU On-Line - Como é o gaúcho morador de Satolep? Quais são suas características e relações com o gaúcho estereotipado?

Vitor Ramil – Esse livro (Satolep) tem chamado a atenção das pessoas tanto daqui como de fora do estado em relação a como estão retratados nossos hábitos, nossa vida, mas sem nenhum clichê. Eu não coloco um gauchão de bombacha, ou uns caras assando churrasco o tempo todo. Eu simplesmente escrevo a partir da minha experiência, da minha vida, de coisas que vivi. Há uma cena no livro em que o personagem pega uma lata de goiabada, coloca álcool e acende o fogo para aquecer o banheiro na hora de tomar banho. Muitos de nós já passamos por essa experiência no Rio Grande do Sul. É algo bem simples, mas não é conhecido nem comum. Então, esses pequenos traços da nossa realidade, quando vêm à tona, falam da gente.

IHU On-Line - Que influência a “estética do frio” exerce nas suas composições musicais? É possível estabelecer uma relação entre a sua noção de identidade do gaúcho e as suas músicas?

Vitor Ramil – Minhas canções são como meu texto. As pessoas lêem e sempre encontram coisas daqui. E eu não preciso falar de campo ou de cavalo, posso falar de carro e de edifícios. A questão é o contexto.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição