Edição 264 | 30 Junho 2008

O processo de consolidação programática. Uma análise do sistema partidário gaúcho

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Bruna Quadros e Graziela Wolfart

Para o deputado Raul Pont, o governo vive uma crise profunda e o pior é que não há muita perspectiva de sair dela

“Existe, ao menos no imaginário popular, uma noção, que eu acho positiva, de que no Rio Grande do Sul se deve ter mais respeito às instituições republicanas, de que não se pode confundir o dinheiro público com o dinheiro do governante. Essas coisas devem ser mantidas neste imaginário, ainda que isso não elimine um caso de corrupção, como o que aconteceu no Detran, ou outros casos que tenham ocorrido ou venham a ocorrer. Mas, no geral, esses valores republicanos que o estado se orgulha devem ser elogiados, mantidos, garantidos.” A opinião é do deputado Raul Pont (PT). Para ele, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, é preciso “reagir à repressão que atinge a sindicalistas, trabalhadores do campo, com terra, sem terra e atingidos por barragens”. Pont acredita que o atual governo do estado “vai pagar um preço alto pela sua postura antipopular, anti-desenvolvimento econômico”. E classifica: “É um dos governos mais reacionários, conservadores e ineficientes que o estado teve nas últimas décadas”.
Raul Pont, gaúcho de Uruguaiana, é historiador, político e um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores – PT. Foi líder estudantil, militante sindical, professor universitário, inclusive da Unisinos, deputado estadual e federal e prefeito de Porto Alegre. Atualmente, é secretário-geral do PT e ainda ocupa uma cadeira na Assembléia Legislativa gaúcha, para a qual se reelegeu em 2006. Concluiu o curso de História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, cursou Ciências Econômicas na mesma universidade e fez pós-graduação em Ciências Políticas na Unicamp.

IHU On-Line – Como o senhor caracteriza o que vem ocorrendo no governo Yeda? Em que sentido esse episódio retrata os bastidores da política gaúcha atual?

Raul Pont – O governo vive uma crise profunda, e o pior é que não há muita perspectiva de sair dela. Ela não é determinada apenas pela corrupção, que já vinha do governo Germano Germano Rigotto.  Neste um ano do governo Yeda, o que ficou provado na CPI, no inquérito policial, é que, se mudaram alguns sistemistas do negócio, o processo de corrupção é o mesmo do governo anterior. É manter contrato com as fundações universitárias, para escapar da licitação. E sub-contratar, de maneira combinada e articulada, previamente, com os sistemistas, como forma de gerar um excedente e desviar o recurso para os diretores dos órgãos e partidos. Além desta crise que bateu direto no próprio governo, não é gratuito que quatro secretários do primeiro escalão da governadora estejam envolvidos neste processo, direta ou indiretamente. Isso revela que o governo e a governadora sabiam desta sistemática. Além disto, este é um governo que tem políticas muito ruins, antipopulares e equivocadas. Elas coexistem com uma política fiscal brutal, que compromete quase um terço do ICMS potencial do estado e, simultaneamente, só busca equilíbrio fiscal através do corte de despesas, do corte de pessoal e do desmantelamento dos serviços públicos. É por isso que é um governo tão odiado pela população. A governadora não consegue trabalhar nem com verbas disponíveis para setores sociais, como a reforma agrária, pela sua postura reacionária, conservadora e completamente preconceituosa para enfrentar a questão da terra, essa crise social da grande propriedade no Rio Grande do Sul.

IHU On-Line – Como o senhor percebe a estrutura político-partidária do Rio Grande do Sul hoje? É possível definir, de forma geral, o perfil dos partidos políticos no estado atualmente, pensando nas coligações que vêm sendo feitas?

Raul Pont – Há um processo de redefinição do conjunto dos partidos e de uma redefinição histórica em função de que temos um sistema partidário que não alcançou 30 anos ainda. A reorganização partidária do final dos anos 1970 não consolidou ainda um novo quadro partidário mais definitivo. A reforma política, que não foi aprovada pelo centro e pela direita no Congresso Nacional, colabora para que os partidos não tenham uma definição mais ideológica e programática. Aqui no estado, há um campo da direita, que é composto hoje pelo DEM e pelo PSDB, que nacionalmente estruturam o discurso mais acabado de defesa do neoliberalismo e, portanto, são e se constituem na principal oposição ao projeto nacional que o governo Lula desenvolve. Os demais partidos vêm sofrendo um processo de transformação profunda. O PP sempre foi um partido de direita, extremamente conservador, mas encontra-se em crise nacionalmente. Podemos dizer que ele foi o esteio da ditadura, via Arena, e apoiou o neoliberalismo com facilidade, algo contraditório com o governo da Arena, com o governo militar dos anos 1970. O PP, como um partido de direita brasileiro, rapidamente saiu do modelo militar da ditadura para um modelo neoliberal. O PMDB, por sua vez, é um partido completamente fragmentado. Em cada estado ele é diferente e sobreviveu até aqui com o capital político adquirido na resistência à Ditadura Militar. No entanto, hoje está desmoronando, porque em cada estado ele é uma espécie de feudo de alguns dirigentes, de alguns coronéis. Não consegue ter um programa nacional, um candidato à presidência da República, ainda que seja o maior partido no país. Mas, exatamente pela sua fragmentação ideológica programática, ele se agarra em governos de esquerda, ou até mais à direita, como forma de sobrevivência fisiológica.

Outros partidos

O PTB é um balcão de negócios, não chega a ser muito um partido. Quer dizer, é um partido que também não tem um programa, uma ideologia. Sua ideologia é a ordem estabelecida, e esta é o sistema capitalista, com seus instrumentos de corrupção. O PDT vive também uma crise profunda de definição programática. A morte do Brizola ajuda nisso, porque o partido fica órfão. Ele tem ainda o discurso do trabalhismo, mas regionalmente, com muita facilidade, entrega o partido para pessoas que vêm de tradições e políticas muito diferenciadas. São partidos que, desde os anos 1980, vêm perdendo espaço, diminuindo a sua presença. E os novos partidos que aparecem no cenário nacional, como o PR e o PRB, respondem muito mais a relações de ordem confessional, a vínculos com igrejas, numa clara agressão aos princípios constitucionais, pois transformam igrejas em estruturas eleitorais e partidárias. Mas, programaticamente, não têm uma definição mais clara, mais precisa. No campo da esquerda, o PT está no governo nacional. O partido também tem problemas internos, do ponto de vista das suas origens e definições, mas vem mantendo, ao menos, a maior organicidade, a maior coerência nas votações, alcançando uma fidelidade programática maior no voto que pratica no congresso. Além disso, agora está reforçado por estar no governo, por ter o compromisso de estar mais aliado com a estrutura governamental. Mas são partidos que estão todos num processo de consolidação realmente programática, de formulação de um projeto mais de longo prazo para o país. E é normal que se tenha uma certa complacência com isso, porque 30 anos é pouco para consolidar um sistema partidário como o nosso, que nasceu num regime militar.

IHU On-Line – Quem é o eleitor gaúcho atual? Como as raízes da cultura do povo gaúcho aparecem na hora de escolher um representante político?

Raul Pont – O eleitor gaúcho e os partidos no estado, considerando os conflitos que comentei na pergunta anterior, têm mantido uma coerência um pouco maior em relação aos outros estados brasileiros. Não é comum a “dança” dos deputados entre partidos aqui no Rio Grande do Sul. O eleitor tem se demonstrado nas eleições como um algoz ou como alguém que pune os dirigentes e as lideranças que trocam de partido numa jogada meramente eleitoral. Não é menor esse tipo de comportamento. Existe, ao menos no imaginário popular, uma noção, que eu acho positiva, de que no Rio Grande do Sul se deve ter mais respeito às instituições republicanas, de que não se pode confundir o dinheiro público com o dinheiro do governante. Essas coisas devem ser mantidas neste imaginário, ainda que isso não elimine um caso de corrupção, como o que aconteceu no Detran, ou outros casos que tenham ocorrido ou venham a ocorrer. Mas, no geral, esses valores republicanos que o estado se orgulha devem ser elogiados, mantidos, garantidos.       

IHU On-Line – Considerando esse imaginário de “retidão” aqui do Rio Grande do Sul que o senhor menciona, de mais respeito com o dinheiro público, não há uma espécie de contradição entre esse imaginário presente na cultura gaúcha e o que está acontecendo no governo estadual? A identidade gaúcha também está mudando? 

Raul Pont – Esse imaginário não elimina que casos como esse venham a acontecer. Mas é bom lembrar que, neste processo todo, nós não tivemos, por exemplo, funcionários do Detran envolvidos. O que vimos foi um golpe muito bem montado, escondido, urdido através da liberação de licitações para poder escapar dos órgãos de controle do estado, que envolveu dirigentes e alguns eram de carreira, como o Flávio Vaz Neto, procurador do estado. Isso é lamentável e mostra que nem instituições como a Procuradoria do Estado estão isentas de terem entre seus meios corruptos e malfeitores. Nesse caso, o que possibilitou o golpe foi a condição de diretor do Detran. As pessoas estavam lá como cargos de confiança, indicadas por partidos e pelo governo do estado e que exerciam papéis de comando. Os responsáveis por essa crise não são os funcionários públicos. São os diretores indicados por partidos e pelo governo.  

IHU On-Line – O que o senhor pensa da repressão feita pelo governo do estado aos movimentos sociais?  

Raul Pont – É de indignar o comportamento das forças policiais do estado. A Brigada Militar tem se caracterizado, nas últimas semanas, por um absoluto desrespeito à Constituição, aos princípios elementares da democracia, porque cada vez mais vem cometendo violências e arbítrios inaceitáveis num estado de direito, onde as pessoas têm normas, regras, leis e se comportam diante delas. O que tem sido feito como tentativa de criminalizar os movimentos sociais é algo absurdo, inaceitável. Por isso, precisamos reagir à repressão que atinge a sindicalistas, trabalhadores do campo, com terra, sem terra e atingidos por barragens. Os acampamentos que reivindicam a reforma agrária estão reprimidos, isolados. Nós já estamos em junho, e o estado não gastou um real nas rubricas de reforma agrária, seja de apoio aos assentados, ou compra de terras. É um governo que vai pagar um preço alto pela sua postura antipopular, anti-desenvolvimento econômico. É um dos governos mais reacionários, conservadores e ineficientes que o estado teve nas últimas décadas.      

IHU On-Line – Para o senhor, a economia do Rio Grande do Sul hoje é condizente com o histórico de valores que nosso povo sempre carregou? Como o senhor vê a entrada das grandes empresas reflorestadoras aqui no estado?   

Raul Pont – A economia gaúcha não está mal. Pelo contrário: ela tem crescido igual ou até mais do que a economia nacional. É uma economia diversificada. O que está mal são as finanças públicas. Além disso, o governo do Rio Grande do Sul, por não ter políticas para o desenvolvimento harmônico e sustentável do estado, aceita, estimula e faz propaganda (como se estivesse fazendo um grande feito) por trazer como um atrativo de investimento esta silvicultura na região sul, no centro do estado e na fronteira oeste. Esta política é completamente equivocada. É uma política danosa, desastrosa, suicida para o estado, a médio e longo prazo. É uma política que tem despertado a impunidade dessas empresas diante da lei. Em alguns casos, como o da Stora Enso, na fronteira oeste, é totalmente de responsabilidade desta empresa o fato de não ter alcançado licenciamento para os seus projetos. Não é só o problema da margem e da faixa de fronteira. É que sem nenhum respeito à legislação, sem nenhum zoneamento prévio, essa empresa achou que estava num quintal do Terceiro Mundo, e que podia comprar terra em qualquer lugar, onde bem entendesse. Está se liquidando o bioma pampa  com uma política suicida e que, além dos monopólios das papeleiras, tem a incompetência e a cumplicidade de governos como esse que temos aqui no Rio Grande do Sul.

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