Edição 263 | 24 Junho 2008

Filme da semana: O sonho de Cassandra

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Voltaire Danckwardt, coordenador executivo do Curso de Realização Audiovisual da Unisinos

O filme comentado nessa edição foi visto por algum/a colega do IHU e está em exibição nos cinemas de Porto Alegre, como Arteplex, no Shopping Bourbon.

Woody Allen namora com os textos clássicos desde as comédias impagáveis dos anos 70, como A última noite de Boris Grushenko e Sonhos eróticos de uma noite de verão. Em Boris Grushenko, a alma da literatura russa parece exposta em sua essência trágica e patética, como na hilária conclusão final do personagem em que afirma nada valer a pena, pois não existem garotas na vida depois da morte e não é possível confiar em anjos. Nem William Shakespeare  escapa do olhar afiado do cineasta. Sonhos eróticos leva ao limite sua irreverência, quando analisa, transforma e sintetiza os amores de Demétrio e Lisandro pela bela Hérmia de Sonhos de uma noite de verão, nas ações de Andrew e Leopold e da delicada Ariel.

Em Poderosa Afrodite, filme de 1995, Allen busca na tragédia grega a base para a construção de um emocionado, singelo e, novamente, hilário relato do destino de um herói. Antológico é o texto da profetisa Cassandra, quando afirma: “Eu vejo desastres. Eu vejo catástrofes. E o pior: eu vejo advogados!”.

Depois da fase nova-iorquina, onde seu amor pela megalópole aparece em obras como Manhattan, Contos de Nova York, Noivo neurótica, noiva nervosa, entre outros, em 2005 Woody Allen muda, de moradia e temática, para Londres.

Novamente o lugar, o espaço vivencial e a urbanidade aparecem como pano de fundo para os filmes do cineasta. E, sempre presente, a base literária clássica tinge com cores cada vez mais fortes o discurso cinematográfico do autor. Assim é com O sonho de Cassandra, seu último trabalho. Aqui, suas leituras dos clássicos russos aparecem com a lógica diacrônica com que constrói suas narrativas. Fyodor Dostoyevsky,  com seu Crime e castigo, é o caldo com que Allen prepara a abordagem de um tema próprio da natureza humana: a culpa. Já em Crimes e pecados e Match point, a questão do herói solitário, dividido entre o desejo e as conseqüências, busca no personagem central de Crime e castigo, Rodion Românovitch Raskólnikov, as nuances comportamentais e filosóficas para a construção dos agentes das narrativas.
Em O sonho de Cassandra, Allen vai mais longe. Disseca Raskólnikov e o separa em dois, constituindo uma persona dupla, apresentada como dois irmãos que percorrem a mesma estrada do personagem russo. As mesmas convicções, desejos e, fundamentalmente, as mesmas culpas. Como duas faces da mesma moeda, os irmãos nos permitem sentir, vivenciar e julgar cada lado da tridimensionalidade própria da natureza humana.

No filme, os irmão Terry (Colin Farrell) e Ian (Ewan McGregor) têm sonhos típicos da juventude. Entre eles, um barco que eles nomeiam Cassandra. Aqui, Allen recorre novamente ao mito da profetisa que tudo vê. Mito que traz, em sua gênese a duplicidade (Cassandra e seu irmão gêmeo Heleno) e a idéia de um caminho sem volta (as duas crianças saem para brincar e ficam até perceber ser muito tarde para voltar para casa). O próprio mito é uma metáfora dos irmãos e suas decisões das quais não podem retornar. Na busca pela realização de seus anseios/sonhos, são levados a cometer um crime do qual um deles se arrepende amargamente enquanto o outro busca razões que justificariam os atos. Como Raskólnikov e seu dilema interno, como os homens e seus dilemas internos. Como os heróis e seus dois caminhos, duas possibilidades, duas conseqüências, dois castigos, dois arrependimentos.

O homem frente a si mesmo. A condição humana tratada com crueza e isenção. Woody Allen, com O sonho de Cassandra, nos propõe um espelho, um reflexo de nossa existência. Parece ser, mais uma vez, a demonstração do poder do cinema como lente, fria e precisa. 

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