Edição 263 | 24 Junho 2008

A vinda da Corte: determinante na concepção da função do estado de civilizar os trópicos e fundar a nação

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Graziela Wolfart e Patricia Fachin

Para o português Robert Rowland, a elaboração de um discurso identitário nacional, no Brasil independente foi um processo complexo e dilatado no tempo

“Do mesmo modo que no século XIX o discurso identitário silenciava a escravatura, o discurso culturalista do modernismo representa a elisão dos mecanismos de exclusão que continuam a marcar a sociedade brasileira.” É dessa forma que o português Robert Rowland analisa a problemática cultural provocada pela chegada da Corte Portuguesa ao Brasil. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, enquanto se preparava para vir ao Brasil participar do Colóquio Internacional A Corte no Brasil: População e Sociedade no Brasil e em Portugal no início do século XIX, que acontece na Unisinos, nesta semana, Rowland afirma que “a importância da presença portuguesa no Brasil é, sobretudo, cultural, na medida em que a persistência de laços renovados pela imigração reforçou a matriz cultural herdada do período colonial, que se reflete na estrutura das instituições, na língua através da qual se comunicam entre si brasileiros das mais diversas origens étnicas, e em pequenos pormenores, como o consumo de rabanadas no Natal ou os bolinhos de bacalhau do bar da esquina”.
Rowland é professor de Antropologia no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em Lisboa. Atua, especialmente, nos seguintes temas: Antropologia Social, História Social, História Antropológica, História Demográfica, História da Família, História Cultural Européia e Antropologia da Medicina. É autor de Antropologia, História e Diferença (3. ed. Porto: Afrontamento, 1997) e População Família e Sociedade - Portugal, séculos XIX e XX (Oeiras: Celta Editor, 1997).

IHU On-Line - Que impactos culturais a vinda da Corte Portuguesa trouxe para a colônia brasileira?

Robert Rowland - No início, a vinda da Corte traduziu-se na tentativa de reprodução, na colônia, das principais estruturas da Corte lisboeta. Posteriormente, sobretudo após o fim das guerras napoleônicas e a elevação do Brasil ao estatuto de reino, deu-se um fermento cultural marcado pela presença de artistas e cientistas estrangeiros e pela inscrição da natureza tropical numa visão marcada pelo romantismo. Mais importante, talvez, foi o processo, estudado por Kirsten Schultz  e Jurandir Malerba,  de introdução de códigos de sociabilidade europeus e sua modificação através da interação entre os reinóis e as elites coloniais.

IHU On-Line - Depois da Independência do Brasil, como o senhor percebe a relação entre portugueses e brasileiros?

Robert Rowland - A relação foi complicada, até porque à época da independência não havia, em rigor, entre os habitantes do Brasil, nem “brasileiros” nem “portugueses”. Essas identidades, que tinham pouco a ver com a naturalidade de cada um, foram sendo definidas através dos posicionamentos de cada um frente aos conflitos do primeiro reinado. Nessa altura, e posteriormente, como tem sido documentado por Gladys Sabina Ribeiro,  o termo “português” foi utilizado por diversos atores na cena política para caracterizar pejorativamente os seus adversários. Uma longínqua herança desses episódios encontra-se, por exemplo, na imagem do “português” em alguns sambas de Noel Rosa,  e nas piadas de português dos nossos dias.

IHU On-Line - O Brasil apresentou dificuldades para definir uma identidade nacional, após o rompimento com Portugal? O que ficou deste período e permanece até hoje na identidade brasileira?

Robert Rowland - A elaboração de um discurso identitário nacional, no Brasil independente, foi um processo complexo e dilatado no tempo, que teve vários momentos: o radicalismo antiportuguês dos primeiros tempos; a exaltação da natureza tropical e da figura do índio; e a imagem, cultivada por D. Pedro II, da missão civilizadora da coroa e da criação, pelo cultivo das artes e das ciências, de uma civilização européia nos trópicos. O povo, estigmatizado pela escravatura, só começou a fazer parte desse discurso nas últimas décadas do século XIX, e fê-lo de maneira negativa, como, por exemplo (no discurso racista importado da Europa como parte desse esforço de “civilização”), da degeneração que iria ser provocada pela miscigenação. Foi só mais tarde, com o modernismo e o discurso nacionalista que se seguiu à Revolução de 1930, que se procurou alicerçar a identidade brasileira na mestiçagem cultural. Do mesmo modo que no século XIX o discurso identitário silenciava a escravatura, o discurso culturalista do modernismo representa a elisão dos mecanismos de exclusão que continuam a marcar a sociedade brasileira.

IHU On-Line - Qual é a importância dos fluxos de migração portuguesa para o Brasil ao longo do século XIX?

Robert Rowland - Os fluxos migratórios portugueses tiveram, ao longo do século XIX, uma importância numérica reduzida. Entre 1820 e 1876, os portugueses representaram menos da metade (46%) de toda a imigração estrangeira para o Brasil. No final do século, no auge da imigração italiana, eram menos de 20%. E, embora a proporção tenha aumentado para um pouco mais de um terço no começo do século XX, em 1920, os portugueses representavam apenas 20,2% dos estrangeiros residentes em São Paulo, ficando atrás dos italianos (48,1%) e dos espanhóis (20,6%). A importância da presença portuguesa no Brasil é, sobretudo, cultural, na medida em que a persistência de laços renovados pela imigração reforçou a matriz cultural herdada do período colonial, que se reflete na estrutura das instituições, na língua através da qual se comunicam entre si brasileiros das mais diversas origens étnicas, e em pequenos pormenores, como o consumo de rabanadas no Natal ou os bolinhos de bacalhau do bar da esquina.

IHU On-Line - Como o Brasil aparece enquanto horizonte para os portugueses que migraram para o País?

Robert Rowland - Até 1880, aproximadamente, a emigração portuguesa para o Brasil era em grande parte uma emigração de elite – filhos segundos de proprietários agrícolas que vinham para o Brasil juntar dinheiro no setor comercial (dominado pelos portugueses) para poderem regressar a Portugal e comprar as terras que não lhes caberiam na herança paterna. Eram, em geral, alfabetizados, porque no Brasil o trabalho manual era desempenhado pelos escravos, e mantiveram as suas tradições culturais. Instalaram-se, sobretudo, nas cidades do litoral, do Rio de Janeiro para cima. Após 1880, com a crise agrícola em Portugal, houve uma vaga de emigração de massa, homens, mulheres e crianças analfabetas das zonas mais pobres do interior do Norte do país, que tiveram de enfrentar a concorrência de outros imigrantes, mais qualificados, para se integrarem no mercado de trabalho assalariado que estava se desenvolvendo de São Paulo para o Sul. Esta nova imigração, até pelo seu caráter familiar, traduziu-se numa muito maior integração na sociedade brasileira.

IHU On-Line - Que tipo de consequências indiretas a vinda da Corte provocou no Brasil ao longo de todo o século XIX?

Robert Rowland - A vinda da Corte instituiu o Rio de Janeiro como centro político, tornando possível, após 1815, a idéia do Brasil como entidade política e territorial, e foi obviamente determinante para todo o processo da independência. Indiretamente, pelo contraste entre os modos da Corte e as condições reais da colônia, teve um papel determinante no modo como, durante muito tempo, se concebeu a função do estado como sendo a de civilizar os trópicos e fundar a nação.

IHU On-Line - O que o senhor entende pela “sombra” da Corte sob a população brasileira de 1800?

Robert Rowland - A “sombra” da Corte é aquilo que as suas “luzes” acabaram por ocultar, ou iluminar de forma negativa: uma natureza virgem tropical a ser desbravada e dominada, uma população marcada pela escravatura e pela raça, incapaz, aos olhos dos “iluminados”, de se constituir em povo e servir como base para um projeto político nacional.

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