Edição 262 | 16 Junho 2008

Governo Yeda Crusius: crise pode levar ao impeachment?

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Patricia Fachin

Para Sérgio Borjas, o impeachment no Brasil sofreu um processo de parlamentarização e passou a ser somente político

“Os partidos nacionais, na luta pelo poder, estão soçobrando e afundando gradativamente e ficando sem respostas”. A opinião é de Sérgio Borja, professor de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS). Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Borja avalia a crise do governo gaúcho e comenta o pedido de impeachment a governadora Yeda Crusius, feito pelo advogado Pedro Ruas. Para Borja, dificilmente o processo vai seguir adiante, pois este procedimento, que deveria “ser um misto de jurídico e político, tornou-se eminentemente político”. Assim, explica, “quando a presidência da mesa é do partido do governo ou da maioria governamental” acusada, “ela impede a ação, não permitindo que a mesma ande sob as mais variadas alegações”. Para ele, as crises políticas nacionais apenas reforçam a idéia de que “estamos assistindo a um processo de desconexão lenta e gradual do Estado e da sociedade civil”.
Sérgio Borja é graduado em Direito, pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), e mestre na mesma área, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

IHU On-Line - Os escândalos que marcam o governo de Yeda Crusius já podem ser considerados “crimes eleitorais”?

Sérgio Borja - Não há ainda relatório final de CPI que consolide uma posição veraz a respeito do que está havendo. Existem suspeitas e indiciamentos e já estamos na fase até de denúncias formais pelo Ministério Público. Mas as pessoas só podem ser consideradas culpadas se houver ou quando houver trânsito em julgado. O processo de impedimento pode ser iniciado através da denúncia de crime comum ou crime de responsabilidade, que é político. Este último não está sujeito à tipificação estrita, como no Direito Penal.
  
IHU On-Line - As acusações feitas ao governo e a crise atual na base governista levaram o PSOL a pedir o impeachment da governadora. Como o senhor percebe essa solicitação? Juridicamente, isso é possível?

Sérgio Borja - O Direito de Ação é abstrato, então qualquer pessoa pode pedir ou entrar no momento que achar oportuno, evitando a denunciação caluniosa ou injuriosa. Não sei que tipo de embasamento jurídico foi feito pelo advogado Pedro Ruas: se foi impeachment, que envolve a responsabilidade política mais ampla, ou se foi embasado em delito comum. Agora vamos ver se esse pedido vai prosperar, pois este processo, que tinha, em primeiro lugar, uma fase que era similar ao inquérito policial, inquisitório, e, depois, uma fase de contraditório, na Assembléia, passou a ter, depois do precedente Collor,  só uma fase, que obviou o processo.
Eu sempre defendi a tese de que o processo de impeachment no Brasil sofreu um processo de parlamentarização, pois passou a ser, depois do incidente com Collor, somente político. Ou se tem a maioria para facultar o andamento do processo, ou não se tem e ele não prospera. Via de regra, quando a presidência da mesa é do partido do governo ou da maioria governamental, ela impede a ação, não permitindo que a mesma ande sob as mais variadas alegações. O processo de impeachment, que deveria ser um misto de jurídico e político, tornou-se um processo eminentemente político, em que o public outcry (clamor popular) é a mola-mestra e essencial para o deslinde do processo. O precedente Collor faz com que os executivos, em qualquer nível federativo, não devam descuidar de suas maiorias porque, por qualquer pretexto político, poderão ser enquadrados num processo de impeachment. O inverso é verdadeiro, mesmo se tendo razões. Uma maioria tranca o andamento do processo por razões políticas que não atendem um juízo de valor jurídico ou ético. O sistema imita o voto de desconfiança, ou melhor, emula, mas paradoxalmente não se alberga dentro da cultura política nacional, que não está ainda acostumada a isto. Então, alguns partidos, se sofressem um processo eminentemente político, sem razões jurídicas, diriam que estariam sofrendo um Golpe de Estado ou alguma outra coisa. A Constituição de 1988 egressa de um regime de força, que valorizou o Congresso e os Legislativos, fazendo com que, nos cheks and controls (freios e contrapesos), o Congresso fosse sempre consultado ou concordasse com o Executivo para viabilizar o governo. Assim é que os Executivos necessitam de maiorias (apoiadores no Congresso) nesta razão.

A disputa pelo poder

O país vive formalmente o pluripartidarismo. No entanto, materialmente ou substancialmente, existe um bipartidarismo endêmico, embasado no fisiologismo e que busca o poder pelo poder sem divisar o bem público. Estas maiorias, potencializadas pelo processo de corrupção do sistema constitucional, que foi a quebra do bloco de constitucionalidade histórico, colocando a reeleição ou possibilitando-a, criaram este tipo de procedimento pernicioso, que pode ensejar ditaduras congressuais, capazes de possibilitar, inclusive, como já venho denunciando academicamente há mais de 11 anos, em conferências e em meu livro Projeto democrático (Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001), a corrosão da tri-partição dos poderes. Digo isso porque a maioria instalada nos Executivos e nos Legislativos - coligadas - indicam por oito anos os juízes para as cortes superiores. Assim que o Estado Democrático (que é Político) de Direito (que é Jurídico) passa a ser somente Político, o Político não tem mais limites jurídicos, já que consolida-se nas três funções.
  
IHU On-Line - Considerando a gravidade das declarações de Cézar Buzatto ao vice-governador, Paulo Feijó, o senhor afirma (no artigo intitulado “O impeachment da governadora Yeda”, publicado no Jornal do Comércio do dia 10-06-2008) que não basta Yeda Crusius expurgar do governo quem é confesso em aceitar o convívio diuturno de práticas espúrias. Assim sendo, ela deve renunciar? Moral e legalmente que atitudes deveriam ser tomadas nesse momento? O gabinete de transição proposto pela governadora é uma saída para reestruturar o governo?

Sérgio Borja - A governadora, no compasso em que têm eclodido as diversas crises, tem, logo após, tomado a providência de solicitar a devolução dos cargos. Constatei, pela publicação dos jornais, que ela tomou o cuidado de pedir aos denunciantes que formulassem a denúncia por escrito. Assim, eu mesmo, que pensei entrar com o processo, como cidadão, não o fiz, porque este cuidado dela oblitera o seu nexo causal de responsabilidade sob alguma forma. Não foi o caso do presidente Lula, que resistiu até o último momento sempre que seus auxiliares eram denunciados e, quando não tinha mais remédio ou as evidências eram claras, demitia sob a retórica da “facada nas costas” ou do “eu não sabia”. Acho que, se ela renunciar agora, esta atitude seria de confissão e adesão ao ato praticado pelos seus subordinados. Creio que ela tem de demitir, como tem feito, e solicitar inquéritos administrativos. Concomitantemente, deve solicitar o auxílio do Ministério Público, que de motu proprio, como dominus litis, irá, com certeza, tomar as providências cabíveis.
 
IHU On-Line - Como o senhor analisa a conversa gravada entre Paulo Feijó e Buzatto? O ex-chefe da Casa Civil procurou o vice-governador para pedir apoio e combater a corrupção ou para tentar cooptá-lo?

Sérgio Borja -  Faz onze anos que eu peregrino pelo Rio Grande do Sul, num âmbito acadêmico, fazendo palestras e conferências, a convite da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), denunciando um processo insidioso de adulteração dos freios e contrapesos e a dissolvência partidária que criam uma legitima geléia fisiológica no poder. A eclosão no cenário nacional do “mensalão” e outros escândalos, nos estados de Minas Gerais e agora no Rio Grande, com o Caso Detran, vêm todos comprovar que minha tese tinha suas raízes, reais, incrustadas na realidade partidárias e institucional do país. A destruição do sistema de garantias constitucionais ou as adulterações casuísticas foram levando a este tipo de dissolvência.

O caso Paulo Feijó é o resultado de uma guerra de poderes partidários encruados no sistema constitucional e institucional. A Folha de S. Paulo noticiou, há alguns dias, que foram feitas 60.000 gravações pela Polícia Federal já neste ano em curso, sem contar os grampos determinados pelos sistemas estaduais. Vivemos, desse modo, uma cultura do “grampo”. Se a pessoa não grava e grampeia, pode ser grampeado. E sendo grampeado não tem como explicar depois. Aí o indivíduo sai algemado e vira vagabundo, exposto ao opróbrio público, e depois ninguém tem condições de restaurar sua honra se, ao final do processo, não for condenado.

Considero que, no caso específico do vice-governador Paulo Feijó, ele agiu bem. Penso, inclusive, que ele, ao gravar a conversa e expor em público a gravação, ficou isento de qualquer acusação futura que possa colocá-lo como suspeito. Inclusive, acho criticável a posição de senadores e deputados do centro do país, do partido do mesmo, que o ameaçaram de expulsão. Eles fizeram isto porque não têm a base eleitoral no Rio Grande do Sul e, portanto, não receberiam uma resposta na urna, pelo eleitorado daqui, que é altamente ético e não reelegeria estas pessoas. Com relação às palavras do ex-secretário Cézar Buzatto, penso que elas são fiadoras da essência do que ele disse ou quis dizer, e só ele poderá interpretá-las. No contexto geral, percebo que ele foi de uma infelicidade atroz, ao supor que haveria a adesão do vice-governador a uma prática disseminada no governo.
         
IHU On-Line - Como o senhor tem percebido a atuação das CPIs em todo o país? O poder público está conseguindo cumprir com seu papel?

Sérgio Borja -   A democracia deve ter superioridade perante o regime ditatorial. No entanto, esta democracia que vivemos não tem conseguido superar-se e mostrar a que veio. Assim, antes que ela reste sepultada sobre seus escombros, é necessária uma depuração dos atos que tornam ruim seu funcionamento, como a restauração do poder soberano do povo através de uma revogação da emenda da reeleição e da restauração do bloco de constitucionalidade histórica, que não permitia jamais a reeleição não só dos presidentes, mas dos governadores e prefeitos. Tão grave quanto isto é a instituição concomitante da “não desincompatibilização”. Só assim, paulatinamente, voltaríamos a uma democracia real. A democracia partidária, do jeito que está, é péssima. Como professor de Direito Constitucional e por crença filosófica, tenho fé numa verdadeira democracia, a do povo soberano, e não numa democracia feita e construída pela usura, pelo poder econômico, que financia as campanhas, e pela dissolvência das instituições, que, lamentavelmente, vemos condensar-se como um pesadelo na realidade cotidiana que nos cerca com escândalos que atingem a totalidade do sistema partidário. Não há partido que não esteja sofrendo deste mal, o que é lamentável. Ou o sistema se reprocessa ou o povo poderá preferir a insegurança jurídica e física que vivemos.
     
IHU On-Line - Que mudanças tornam-se necessárias para dar um andamento mais efetivo no julgamento de crimes de Estado? Por que Justiça é tão lenta?

Sérgio Borja - A Justiça não é lenta. Ela está assoberbada. Esta é outra tese minha. O nível de corrupção do Judiciário é baixíssimo e não é disseminado. O que temos são alguns programas de rádio e televisão financiados por alguns daqueles que financiam campanhas eleitorais e que detêm concessões de serviços públicos. Eles denunciam a toda hora o Judiciário com críticas como: “O Judiciário não faz nada”. Respondo: o Judiciário não é para fazer nada se não provocado. Ele é para ficar impassível, pois é regido pelo princípio Nemo iudez sine actore (não há juiz sem autor). Assim, o Judiciário tem de ser provocado pelas partes ou pelo Ministério Público, que é o dominus litis ou custus legis. Este é o Fiscal da Lei e ele tem legitimidade para a causa e para o processo. Creio que o Judiciário, no momento atual, repetindo o presidente Campos Sales , é a única barreira existente para a manutenção do que resta do Estado Democrático de Direito, em razão deste momento que vivemos de um processo insidioso e sistêmico, que perpassa pelo sistema partidário e que é repassado para as instituições através de um loteamento dos órgãos do poder. Este é feito por meio de cargos de confiança e de cabos eleitorais partidários, que transferem verbas e poder a este sistema eminentemente corrupto. Defender o Judiciário hoje e o Ministério Público é defender o Estado Democrático de Direito. Fazer o contrário é submeter o Judiciário a esta “democracia partidária”, que tem demonstrado, de sobejo, de escândalo em escândalo, a que veio. Ou os partidos se retificam através do financiamento público e da extinção das coligações que dissolvem as ideologias, ou iremos inevitavelmente para um processo geral de entropia institucional.
  
IHU On-Line - A que o senhor atribui as crises políticas brasileiras? Os partidos políticos estão sem propostas? E, no que se refere às alianças partidárias, elas demonstram descaso para com os interesses do povo?

Sérgio Borja - Estamos sofrendo um mega-processo de impacto no âmbito externo, que é o processo de globalização. Os partidos nacionais, na luta pelo poder, estão soçobrando e afundando gradativamente e ficando sem respostas. O povo não está escutando a voz dos partidos. O sistema é feudal e clientelista. O povo vota para manter uma relação com um político e manter esta relação com  o sistema formal do Estado. Estamos assistindo a um processo de desconexão lenta e gradual do Estado e da sociedade civil. Um fosso imenso está sendo construído. O Estado não atende mais às demandas da sociedade e não está mais a escutando. Ele só comparece com mais e mais impostos e tributos. A imensa dívida pública cresce e, como um grande black hole, vai tragando o que resta do Estado. Mas os partidos e os políticos, todos sem exceção, não contam ao povo a verdadeira catástrofe que estamos sofrendo. O povo não tem também mais esperanças e acho que não espera mais nada deste lado. A ONU, cujos representantes não vivem como presidiários trancados em suas casas e sob o signo da violência, vem ameaçar os parâmetros de atuação do que resta da força pública. Será que ela está a serviço do capital privado também e quer nos colocar num regime de capangas? Pobre de nós, da classe-média, excluídos da classe obreira que não temos dinheiro para pagar milícias privadas. Temos hoje de pagar flanelinhas e seguranças, que, sob o pálio do desemprego endêmico, arrumam a providência alternativa de, por conta própria, venderem segurança para a sociedade civil. É a sociedade dos zeladores. Mas que zela pelos seus interesses escusos, mas não pela República.

IHU On-Line - Como o Direito pode contribuir para sanar os problemas éticos presentes na base das instituições públicas?

Sérgio Borja -  O Direito é, em termos de sociedade, o padrão mais alto de civilização que atingiu o ser humano. Dentro desta perspectiva toda, qualquer perda de referência jurídica e do Direito é um menosprezo em relação à civilização, à cultura e ao melhor de perfeição que conseguiu o ser humano na sua história no Planeta. Manter esta chama viva, a fim de orientar a ignorância, as más intenções e os interesses espúrios que teimam em derrogar este farol, é um desejo, ou mesmo um caminho de luta e abnegação, no sentido de manter a civilização e fazer com que ela ascenda a caminhos ainda mais perfeitos. Um farol na imensidão do mar e sob a tempestade é um alento para dar um norte.

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