Edição 262 | 16 Junho 2008

Células-tronco embrionárias no STF. Um avanço?

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Moisés Sbardelotto

Para o juiz Roberto Arriada Lorea, a lei que autoriza a pesquisa com células-tronco embrionárias está baseada na dignidade da pessoa humana, que impõe à ciência a busca de curas para males que tornam a vida indigna

Juiz de Direito em Porto Alegre, Roberto Arriada Lorea acredita que a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal, que libera as pesquisas científicas com os embriões criados a partir da fecundação in vitro congelados há mais de três anos, constitui-se num marco histórico. “A decisão emancipou a população brasileira de uma concepção religiosa sobre quando tem início a vida humana e sobre quando esta começa a ser constitucionalmente protegida”, afirma. Para ele, é ‘injustificável’ a “presença de um símbolo católico no plenário da Corte”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Lorea afirma que a fundamentação da utilização de células-tronco embrionárias  para pesquisa está baseada na defesa da vida. “A dignidade da pessoa humana impõe à ciência a busca de novas curas para males que em muitos casos tornam a vida indigna”, explica. Segundo ele, a ciência não pode se curvar a convicções religiosas, sob pena de recuar ao obscurantismo. “Do ponto de vista ético e social, a liberação das pesquisas significou um avanço, assegurando a independência do Estado relativamente às influências religiosas, o que fortalece a democracia”, afirma. A partir de agora, diz Lorea, as pesquisas irão servir para salvar muitas vidas e assegurar dignidade a tantas outras. “Certamente, sofremos uma defasagem de três anos, pois nesse período estivemos à margem dos investimentos em pesquisas realizadas em outras sociedades”, analisa.
Roberto Arriada Lorea é também mestre e doutorando em Antropologia Social, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e professor na Escola Superior da Magistratura. Também é membro da Red Iberoamericana por las Libertades Laicas e do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR).

IHU On-Line – Qual é a sua avaliação da decisão tomada pelo STF, que julgou a validade constitucional do Artigo 5º e seus parágrafos da Lei de Biossegurança, que permite aos pesquisadores usarem, em pesquisas científicas e terapêuticas, os embriões criados a partir da fecundação in vitro e que estão congelados há mais de três anos?

Roberto Arriada Lorea – É preciso fazer uma distinção entre a lei e a decisão do STF. A lei em si nada mais faz do que acompanhar a tendência das sociedades democráticas, na busca pela cura de doenças através da medicina regenerativa. Quanto à decisão do STF, trata-se de um marco histórico, pois emancipou a população brasileira de uma concepção religiosa de quando tem início a vida humana e de quando esta começa a ser constitucionalmente protegida. Até aqui, essa concepção religiosa dominava o imaginário coletivo, aí incluído o pensamento médio dos juristas.

IHU On-Line – Do ponto de vista do Direito e da Justiça brasileiros, qual é a sua avaliação da postura do Supremo Tribunal Federal, a mais alta instância do Poder Judiciário do Brasil, nessa questão, a partir dos seis ministros que votaram a favor das pesquisas e dos outros cinco que sugeriram mudanças na lei ao longo do processo?

Roberto Arriada Lorea – Ainda não pude ler a íntegra de todos os votos, mas acredito que pelo menos oito ministros rechaçaram a tese da proteção constitucional da vida desde a concepção. Esse resultado é promissor para os direitos das mulheres, pois, no ponto mais importante da decisão, no que se refere à proteção constitucional da vida desde a concepção, o resultado pode ter sido ainda mais progressista do que sugerem as primeiras repercussões.

IHU On-Line – Como o senhor vê o papel e o poder de decisão do Estado nas questões éticas, em um país extremamente heterogêneo moral, cultural e religiosamente como o Brasil?

Roberto Arriada Lorea – O papel do Estado é manter a igual liberdade de todos, sem endossar alguma doutrina religiosa em particular. Justamente essa decisão sinaliza que o STF passará a tomar em conta a diversidade, afastando-se de uma vinculação à religião católica, a qual ainda se manifesta na presença de um símbolo católico (injustificável) no plenário da Corte. As atenções agora se voltam para outros temas relevantes no que diz respeito à cidadania sexual, como é o caso da interrupção da gravidez nos casos de mal-formação fetal incompatível com a vida e, após, na descriminalização do aborto, tema que o Poder Legislativo se omitiu de solucionar e que por isso ficará a cargo do Poder Judiciário. O respeito à diversidade implica na convivência democrática entre diferentes correntes de pensamento. Normas restritivas tendem a impor uma determinada corrente de pensamento, restringindo as liberdades.

IHU On-Line – Segundo embriologia e a biologia, o embrião já é considerado uma vida humana. E a Constituição brasileira destaca, no artigo 3º, como princípio fundamental, a dignidade da pessoa humana e, no artigo 5º, estabelece o princípio da inviolabilidade da vida humana. Nesse sentido, o embrião humano não deve ter o mesmo direito à proteção do Estado que as demais pessoas?

Roberto Arriada Lorea – Evidentemente que não. Se embrião, feto, nascituro e pessoa humana desfrutassem a mesma proteção jurídica, não teríamos os crimes de aborto nem de infanticídio, restando apenas o homicídio (matar alguém) para abranger todas essas hipóteses. O equívoco daqueles que defendem que o feto é uma pessoa humana fica evidenciado pela distinta punição para quem mata um feto (crime de aborto) e para quem mata uma pessoa (crime de homicídio). A decisão do STF, no caso das pesquisas com células-tronco embrionárias, cumpriu um importante papel na desconstrução do mito da proteção da vida desde a concepção. O que aconteceu nos últimos vinte anos foi que, embora os constituintes tenham rejeitado as propostas de incluir no texto constitucional a proteção da vida desde a concepção (vide páginas 7.419 a 7.422 do Diário da Assembléia Nacional Constituinte), o grupo conservador derrotado, estreitamente vinculado a movimentos religiosos, passou a difundir a falsa idéia de que o artigo 5º da Constituição protege a vida desde a concepção. Essa mistificação alcançou enorme êxito e contou com a participação de juristas de renome, como são os caso de Ives Gandra  e Cláudio Fonteles.  A conseqüência desse mito jurídico é que, agora, estudantes de Direito do país inteiro estão perplexos diante da decisão do STF, que nada mais fez do que respeitar a soberana decisão da Assembléia Nacional Constituinte. Se textos relevantes como a Resolução 23/81, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Convenção de Belém do Pará, Conferência do Cairo e Conferência de Beijing fossem estudados nas faculdades de Direito, certamente o quadro geral seria outro, e os estudantes estariam melhor preparados para festejar a decisão do STF. Há mudanças necessárias no ensino jurídico, especialmente nos conteúdos de Direitos Sexuais, Direitos Reprodutivos e Laicidade.

IHU On-Line – Do ponto de vista ético, em que se pode fundamentar a utilização de células-tronco embrionárias para pesquisa?

Roberto Arriada Lorea – Na defesa da vida. Isso porque a finalidade das pesquisas é assegurar maior longevidade e, especialmente, através da cura de doenças degenerativas, resgatar uma vida digna àquelas pessoas que suportam sofrimentos enormes, em razão de doenças que poderão no futuro ser superadas através da medicina regenerativa.

IHU On-Line – Em sua opinião, até que ponto a ciência tem o direito de interferir na vida humana? Como proteger a dignidade e os direitos humanos nas pesquisas científicas? Até que ponto vai a autonomia dos cientistas?

Roberto Arriada Lorea – As restrições estão definidas na lei, e, em termos constitucionais, o limite é a dignidade da pessoa humana. Na hipótese dessa lei, não há conflito, pois a dignidade da pessoa humana impõe à ciência a busca de novas curas para males que em muitos casos tornam a vida indigna.

IHU On-Line – Duas posições marcaram fortemente toda a discussão a respeito da decisão tomada. Uma afirma que, para a ciência, nada pode ser considerado ilícito e que a liberdade científica é um valor primordial. Por outra parte, afirma-se que há a necessidade de se impor limites e controles éticos nas pesquisas em geral. Como estabelecer um possível consenso entre essas posições?

Roberto Arriada Lorea – Discordo da sua interpretação. Não foi essa a minha leitura da decisão. A posição do STF não atribuiu à ciência poderes ilimitados, apenas decidiu que a ciência não pode ser limitada por convicções religiosas. O STF afirmou que a interpretação do Procurador-Geral da República, Claúdio Fonteles, de que a Constituição protege a vida desde a concepção, decorre de sua visão particular (religiosa ou filosófica) de mundo, não do texto constitucional.

IHU On-Line – De acordo com a CNBB, uma das instituições que foi abertamente contra a liberação das pesquisas, em nota publicada após a decisão do STF, “não se trata de uma questão religiosa, mas de promoção e defesa da vida humana, desde a fecundação, em qualquer circunstância em que esta se encontra”. Qual é a sua opinião sobre essa posição?

Roberto Arriada Lorea – Em primeiro lugar, é preciso ter a compreensão de que, em termos de representatividade, a Conferência dos Bispos não está legitimada a falar em nome da população católica brasileira, cujo entendimento do que é ser um bom católico está muito distante da doutrina sustentada pela hierarquia da Igreja Católica. Pode-se mesmo afirmar que, se fosse o caso de ouvir uma instituição católica que pudesse em alguma medida refletir o pensamento da maioria dos católicos brasileiros, essa instituição seria a Católicas pelo Direito de Decidir (CDD),  cuja postura em temas vinculados à sexualidade se revela melhor sintonizada com o pensamento médio dos católicos brasileiros. Contudo, o fato é que a população católica se faz ouvir através da eleição de seus representantes no Congresso Nacional, e no Congresso a aprovação da Lei de Biossegurança contou com uma maioria expressiva.

Quanto à defesa da vida desde a concepção, é preciso se perguntar por que não a defesa da vida dos espermatozóides e dos óvulos enquanto tais? Esses organismos também estão vivos e carregam o DNA. A multiplicação dos exemplos é desnecessária para demonstrar que a opção pela concepção como o marco inicial do começo da vida é, em termos científicos, aleatória. Por isso mesmo se revela uma opção de cunho religioso, dado que na doutrina católica está atrelada à inserção da alma no organismo. Essa doutrina já sofreu muitas alterações. Na suma teológica, por exemplo, São Tomás de Aquino não reconhecia aos embriões o acesso à vida eterna. Parece-me óbvio que a ciência não pode se curvar a convicções religiosas, sob pena de recuarmos ao obscurantismo.

Como o artigo 5º da Constituição veda ao Estado impor qualquer convicção religiosa, adotar a proteção jurídica da vida a partir do momento da concepção seria impor através do Estado uma determinada convicção religiosa, violando-se as liberdades laicas, que são constitucionalmente protegidas (artigos 5º, VI e 19, I).

De resto, é importante destacar que nesse episódio histórico, foi a comunidade científica que esteve a serviço da vida, não a CNBB.

IHU On-Line – A seu ver, não há uma divulgação exacerbada do tema, que leva a entender que as células-tronco embrionárias são a cura de todos os males? A utilização de células-tronco adultas, retiradas do próprio paciente, não seria uma alternativa mais viável do ponto de vista ético e social?

Roberto Arriada Lorea – Do ponto de vista ético e social, a liberação das pesquisas significou um avanço, assegurando a independência do Estado, relativamente às influências religiosas, o que fortalece a democracia. Portanto a utilização de células adultas não exclui as pesquisas com células-tronco embrionárias.

Quanto aos resultados das pesquisas, de fato, pode ter havido eventual exagero de um ou outro defensor das pesquisas quanto às possibilidades imediatas de resultados. Exageros que podem ser atribuídos à intensidade do debate. Entretanto, esse eventual exagero não autoriza afastar a esperança de que, a longo prazo, as pesquisas sirvam para salvar muitas vidas e assegurar dignidade a tantas outras. Trata-se de um campo do saber que está se tornando estratégico e poderá ser o diferencial entre os países que detêm esse conhecimento e aqueles que se tornarão periféricos em termos de medicina regenerativa. Nossa tradição de excelência em diversos campos da Medicina, certamente ficaria comprometida se essas pesquisas fossem proibidas ou severamente limitadas.

IHU On-Line – A partir da decisão tomada, do ponto de vista jurídico, quais são os próximos passos para as pesquisas e a utilização prática de seus resultados?

Roberto Arriada Lorea – O primeiro passo é recuperar o tempo perdido por conta dessa aventura jurídico-religiosa do Procurador-Geral da República. Certamente, sofremos uma defasagem de três anos, pois nesse período estivemos à margem dos investimentos em pesquisas realizadas em outras sociedades, onde a comunidade científica não foi ameaçada pela insegurança jurídica relativamente à autonomia da ciência frente aos valores religiosos.

IHU On-Line – Que medidas deveriam compor as políticas públicas desenvolvidas pelo governo brasileiro para que essas pesquisas com células-tronco embrionárias, agora permitidas, sejam acessíveis à sociedade em geral e não elitizados?

Roberto Arriada Lorea – O Ministério da Saúde tem desenvolvido projetos importantes, de abrangência universal, não elitista. Acesso à reprodução assistida – com tecnologia de ponta – está disponível no SUS. Contracepção de emergência também, assim como aborto seguro nos casos previstos em lei. Infelizmente, nossa mídia não valoriza essas iniciativas, prejudicando a divulgação dessas possibilidades à população que mais precisa e que não tem acesso à informação que não seja de grande mídia, como TV aberta e rádios populares.

O mesmo deverá ocorrer no caso das pesquisas com células-tronco embrionárias, cuja democratização do acesso irá depender, em grande medida, do acesso à informação disponibilizada pelos grandes meios de comunicação.

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