Edição 262 | 16 Junho 2008

Machado: falta fundamental de originalidade que se torna uma força de liberação

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André Dick e Graziela Wolfart

Para o professor e ensaísta João Cezar de Castro Rocha, Machado de Assis é um “desleitor de gêneros”

Segundo o professor João Cezar de Castro Rocha, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), “Machado deixa claro que um autor criativo é, acima de tudo, um leitor malicioso da tradição, a qual então se torna um cardápio vasto e tentador, cuja lista de opções está para ser saboreada de forma apreciativa, para usar uma metáfora que Machado gostava em particular, ruminada quantas vezes fosse necessário para uma digestão apropriada, ou seja, a composição do próximo livro”. Nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, João Cezar fala ainda de diversos elementos dos contos e romances de Machado, além de abordar a questão do nacionalismo e a fundamental ligação do escritor com seu leitor.
João Cezar de Castro Rocha possui graduação em História, mestrado e doutorado em Letras e em Literatura Comparada, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Realizou pós-doutorado na Freie Universität, Berlim. Atualmente, é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor de Literatura e cordialidade: o público e o privado na cultura brasileira (Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998), O exílio do homem cordial: ensaios e revisões (Rio de Janeiro: Editora do Museu da República, 2004), Exercícios críticos – Leituras do contemporâneo (Chapecó: Argos, 2008) e Crítica literária – Em busca do tempo perdido? (Chapecó: Argos, 2008).

IHU On-Line – Na sua opinião, por meio de seus personagens, Machado de Assis conseguiu compor, como Sérgio Buarque de Holanda, uma espécie de retrato do homem cordial brasileiro, por meio de sua análise situada entre o público e o privado?

João Cezar de Castro Rocha – Penso, por exemplo, no alferes Jacobina, de “O espelho”. O personagem descobriu com alguma inquietude que o hábito faz o monge, não o oposto. Literalmente habituado a ser reconhecido pela patente, Jacobina descobre-se sozinho, ou melhor, cercado por escravos, possivelmente a forma mais cruel de solidão numa sociedade escravocrata como a brasileira. Muito em breve, principia a duvidar da própria existência (social). Na cortante formulação de Machado, “o alferes eliminou o homem”. Vale dizer, sem o espelho proporcionado pelo olhar do outro, tornamo-nos invisíveis, sobretudo a nossos próprios olhos. Sérgio Buarque deve ter recordado o conto ao delinear a psicologia do brasileiro médio: “No ‘homem cordial’, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo (...)”. Essa dualidade comparece com força na obra machadiana.

IHU On-Line – Há um texto referencial, "Instinto de nacionalidade", em que Machado trabalha, mesmo que apontando traços negativos, com o conceito de nacionalismo da literatura. Ao mesmo tempo, apontam em Machado uma ausência da cor local. Como vê a ligação de Machado com a dita cultura brasileira como obsessiva. Alguém poderia pensar que ele imaginava numa literatura independente de outras?

João Cezar de Castro Rocha – Talvez seja possível reler a definição machadiana acerca do “instinto de nacionalidade”. Proponho a seguinte possibilidade: Machado pensava no elo indissociável entre leitores efetivos e autores em potencial. Não será isso o que atribuiu aos escritores como tarefa na abertura do célebre ensaio? Vejamos: “Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro. As tradições de Gonçalves Dias, Porto Alegre e Magalhães são assim continuadas pela geração já feita e pela que ainda agora madruga, como aqueles continuaram as de José Basílio da Gama e Santa Rita Durão”.
O instinto de nacionalidade, portanto, é antes de tudo o impulso consciente de desenvolvimento de um corpus textual à roda de uma biblioteca determinada. Trata-se, então, de uma cadeia particular de leitores. Em outras palavras, trata-se da promessa de um universo virtual de autores. Em termos diretos, esse “instinto” na verdade refere-se à criação de uma tradição simbólica comum: a cultura brasileira.

IHU On-Line – De que maneira investiga os narradores de Machado de Assis, a partir da idéia de que aqueles empregados em suas crônicas podem se identificar com aqueles presentes em seus romances?

João Cezar de Castro Rocha – Na verdade, creio ter chegado a hora de relermos com cuidado um livro fundamental, porém infelizmente pouco discutido hoje em dia: Realidade e ilusão em Machado de Assis, de José Aderaldo Castello.  A releitura deste livro deve ocupar um papel destacado no futuro dos estudos machadianos, especialmente para os pesquisadores que estejam interessados no estudo da totalidade da obra de Machado de Assis. Castello identifica na crítica e na crônica machadiana, em seus contos e mesmo em sua correspondência, a disseminação de elementos recorrentes, cuja oportuna convergência ocorrerá nos romances da segunda fase.

A hipótese de uma possível contaminação entre os gêneros literários permitiria reunir perguntas que, isoladamente, já foram propostas por outros pesquisadores. Desse modo, em lugar de hipertrofiar os estudos em torno dos romances, especialmente os da segunda fase, poderíamos vislumbrar unidades temáticas e procedimentos estruturais presentes nos diversos gêneros exercitados pelo autor de Esaú e Jacó. Não é verdade que o autor da crônica, muito antes dos piparotes de Brás Cubas, tornara a irreverência a forma de lidar com o leitor apressado dos diários? Nos diversos modos de narrativa experimentados em quase oitenta contos publicados antes de 1880, não haverá um laboratório de idéias e de procedimentos, ressuscitados pelo defunto autor? Ora, na história da literatura não são raros os exemplos de nomes consagrados que realizaram percurso semelhante. Por fim, na atividade crítica não residirá uma importante via de compreensão de sua prosa? Sem dúvida, o exercício crítico machadiano domina todos os gêneros, pois constitui seu modo peculiar de examinar o mundo e de entender as relações entre os homens. Refiro-me, porém, à possibilidade de reler sua crítica, a fim de investigar se os seus critérios de avaliação trazem à superfície as obsessões que demarcaram seu lugar particular na família dos autores que se sabem sobretudo leitores. Em sua apreciação de autores, qual o peso exercido pela recusa da noção romântica de originalidade; pela valorização do ato de leitura como gesto criador; pelo caminhar sóbrio do narrador auto-reflexivo? No exercício da atividade crítica tais critérios já estavam claramente definidos como parte de uma hermenêutica machadiana, que posteriormente seria incorporada a sua própria ficção? Tais perguntas talvez estimulem uma renovação dos estudos machadianos.

IHU On-Line – Há um entrelaçamento, em pontos específicos, além do estilo singular, entre os diferentes gêneros a que Machado se dedicou (crônicas, romance, conto, poesia, teatro)? Como situaria Machado em cada um deles? E por que o considera um “desleitor de gêneros”?

João Cezar de Castro Rocha – Machado dá as boas vindas à noção de uma falta fundamental de originalidade, que se torna uma força de liberação. Se não há possibilidade de se modelar como um escritor “original”, então toda a tradição literária poderia ser livremente apropriada. Dessa forma, a fusão de Machado de vários séculos de tradição literária, gêneros literários e, acima de tudo, dos atos de leitura e escrita enunciam claramente o “anacronismo deliberado” de Jorge Luis Borges. 

Portanto, Machado transforma a noção de atraso, que acompanha o processo de modernização periférica, em um projeto crítico. Não é verdade que, no momento da predominância da escola francesa de comparativismo através do século XIX e as primeiras décadas do século XX, um autor “periférico” era comumente interpretado como o resultado de “influências” recebidas de escritores metropolitanos? Se era assim, Machado parece ponderar: permitir que este autor se torne de uma vez um leitor malicioso e, acima de tudo, um crítico cético com relação a hierarquias e glórias literárias. Machado deixa claro que um autor criativo é, acima de tudo, um leitor malicioso da tradição, a qual então se torna um cardápio vasto e tentador, cuja lista de opções está para ser saboreada de forma apreciativa, para usar uma metáfora que Machado gostava em particular, ruminada quantas vezes fosse necessário para uma digestão apropriada, ou seja, a composição do próximo livro. Mais uma vez, este é o dispositivo literário que transforma atraso em projeto crítico. A desleitura, portanto, representa a irreverência na apropriação da tradição.

IHU On-Line – É importante, na sua opinião, ligar a obra de Machado a acontecimentos históricos do país? Se sim ou não, de que modo ele consegue estabelecer uma relação entre o panorama sócio-político-cultural e seus livros, com um trabalho sofisticado com a linguagem?

João Cezar de Castro Rocha – Os leitores da obra de Machado de Assis sempre se preocuparam muito, e talvez de maneira excessiva, com os vínculos do escritor com a circunstância histórica que lhe coube — os tristes trópicos de 1839 a 1908, anos de seu nascimento e morte. Tudo se passa como se o criador estivesse condenado ao monótono papel de retrato do passaporte com o qual viaja. No ensaio “Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade”, o próprio autor ofereceu uma resposta aos afoitos hermeneutas do aqui e agora. Como se intuísse o teor de ressalvas que lhe seriam dirigidas, Machado anotou (para a posterioridade?): “O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”. Machado não via a representação da história como um conjunto disciplinado de fatos, teleologicamente ordenados em seqüência linear, mas concebia a relação com o passado através da criação de uma forma narrativa determinada. Anote-se a força da intuição: o simples acúmulo de fatos não é suficiente para sustentar o discurso do historiador, ele depende de uma decisão de sentido arbitrária. Machado pôde então duvidar da existência de um “Grito do Ipiranga” nas letras brasileiras, pois a literatura obedece a ritmo particular, não necessariamente alheio ao calor da hora, mas nunca a ele submetido. Esse ponto deve ser destacado: não se diz que Machado não tematizou a realidade brasileira, o que seria o absurdo oposto, mas que o fez com um olhar, por assim dizer, de viés: olhava para o Brasil com lentes universais e para o universo da tradição literária através do horizonte descortinado pela Baía de Guanabara...

IHU On-Line – Segundo o senhor, Machado de Assis "era um plagiário confesso, porque foi o primeiro escritor da literatura ocidental a reconhecer que o autor é antes de tudo um grande leitor". Quais teriam sido os autores preferenciais do Machado-leitor? Esta reflexão não contraria a idéia de que Machado é um “gênio”?

João Cezar de Castro Rocha – Machado ofereceu uma bela homenagem a Shakespeare, a qual mais uma vez realça sua corrosão ponderada de conceitos tradicionais de autoria. Em um capítulo de Dom Casmurro apropriadamente intitulado “A Ópera,” o narrador lembra a teoria curiosa de um velho tenor italiano, de acordo com a qual o mundo não seria nem um sonho nem um palco, mas uma ópera. Marcolino assim explica literalmente: “Deus é o poeta. A música é do Diabo (…)”. Depois de sua expulsão do Céu, o Diabo roubou o manuscrito do Pai Celestial, e compôs a partitura que, a princípio, Deus não quis ouvir. Diante da insistência do Diabo, Ele decide apresentar a ópera, criando “um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira.” Alguns parágrafos mais tarde, o leitor encontra o corolário da teoria de Marcolino: “O elemento do grotesco, por exemplo, não deve ser encontrado no texto do poeta: é uma excrescência, colocada á para imitar As Alegres Comadres de Windsor. Este ponto é contestado pelos Satanistas, com aparência de razão. Eles dizem que na época em que o jovem Satã compôs sua ópera, nem Shakespeare nem seu entremez tinha nascido. Eles chegam a afirmar que a única genialidade do poeta inglês foi transcrever as palavras da ópera com habilidade e tão fielmente que ele parece ser o autor da composição; mas é claro que ele é um plagiário”.

Isto talvez pareça um elogio estranho. Afinal de contas, como podemos reconhecer que um autor se supera em sua criação exatamente quando ele permite se tornar um plagiário original?  O paradoxo parece inevitável, mas somente se mantivermos noções românticas de autoria, nas quais a “ansiedade de influência” é tão contagiosa (e infundada) quanto o ciúme de Otelo e Bento Santiago. Entretanto, se um autor encara sua própria situação como precária, então, o reconhecimento de “influências” anteriores (e vamos usar o termo para mencionar a teoria de Harold Bloom ) não pode ser experimentado como ansiedade; eles se tornam de preferência libertadores pois o ato de ser influenciado abre as portas da tradição literária como um todo. Então, dificilmente pode haver qualquer elogio mais honroso do que considerar um autor a metonímia autêntica de plagiarismo – Shakespeare.

Eu posso então concluir propondo outra definição do plagiário. Ele é um autor cuja originalidade é a consciência que nenhum autor deveria desejar ser retratado como “original”. Afinal de contas, um escritor “original” é alguém que, em última análise, não é suficientemente bem lido ou cuja biblioteca só contém volumes desinteressantes. Se é verdade que existem autores que publicam mais do que escrevem, de maneira contrária, o plagiário é um autor que leu muito mais do que ele poderia um dia publicar.

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