Edição 262 | 16 Junho 2008

Dom Casmurro: as duas pontas de Machado

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Leonardo Vieira de Almeida

Leonardo Vieira de Almeida é mestre em Literatura Brasileira, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e doutorando em Estudos de Literatura Brasileira na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). É autor do livro de contos Os que estão aí (Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2002) e de contos publicados em suplementos literários de diversos jornais e em sites de literatura. No texto a seguir, escrito especialmente para a IHU On-Line, Leonardo faz um passeio pelo romance Dom Casmurro, aproximando a empreitada de Bentinho em “atar as duas pontas da vida”, ao processo de criação literária de seu próprio autor, Machado de Assis.

Não se recupera a vida com a simples restauração de um lugar, pois, se o exterior acena com as lembranças, são estas apenas que ficam, enquanto a experiência é só uma lacuna, que desapareceu. Assim reflete Bentinho, o casmurro Dom em sua casa no Engenho Novo. Quis, copiando em tudo o antigo lar na Rua de Matacavalos, “atar as duas pontas da vida”, e restaurar na velhice a adolescência. Tarefa que parece fadada ao insucesso. Recolhida a umas poucas distrações, a consciência de Bento Santiago começa a refletir que os anos de inocência e encanto terminaram por ruir, e o que restou é uma outra vida, como ele diz, diferente, mas não pior: vida sem ilusões?

Uma vida monótona, por certo, a qual o levou a pensar em escrever uma História dos subúrbios, para matar o tédio. Então é que os bustos na sua casa no Engenho Novo começam a instigá-lo a rememorar os tempos idos. Se a vida de Bentinho tornou-se um museu de ruínas, é hora de espanar a poeira dos dias fatigados. Pondo-se a deitar no papel a história de sua vida, Dom Casmurro tenta preencher esta lacuna que se formou em seu espírito. Escrevendo, pode atar, de fato, as duas pontas: vive de novo, ao escrever.

Em verdade, a adolescência de Bentinho se dividiu entre os afetos maternos, a amizade com o agregado José Dias, tio Cosme e prima Justina, o amor por Capitolina e o protesto contra a mãe, de torná-lo padre. Uma juventude tão luminosa, que não foi sem motivos que procurou reconquistá-la, mandando construir a mesma casa dos seus primeiros anos, agora na velhice. Poderia, como ele mesmo chegou a refletir muito tempo depois, ter ido morar novamente na antiga casa de Matacavalos. Mas, após a morte da mãe, indo um dia revisitar o local, percebeu que a casa o desconhecia. Nem pensamentos seus restavam mais daqueles anos: “Corri os olhos pelo ar, buscando algum pensamento que ali deixasse, e não achei nenhum. Ao contrário, a ramagem começou a sussurrar alguma coisa que não entendi logo, e parece que era a cantiga das manhãs novas. Ao pé dessa música sonora a jovial, ouvi também o grunhir dos porcos, espécie de troça concentrada e filosófica”.

Ao querer se insinuar em meio à indiferença de sua velha morada, a “cantiga das manhãs novas”, como bom anúncio do passado, se depara com um grunhir de porcos que faz pilhéria filosófica da “música sonora e jovial”. Parece que se mostram aqui as duas pontas as quais Bentinho pretendia unir: a da adolescência, época em que ainda nutria fé na natureza humana; e a da maturidade, estágio onde se desenvolve a lucidez desdenhosa, acentuada pelo rigor filosófico.

Essa atitude não se reservou apenas ao descrente Bentinho, mas também Machado, o autor deste outro autor, chegou a um determinado ponto em que, revisitando a casa de seus antigos escritos, deve ter se deparado com aquele “grunhir de porcos filosófico”, ruído sem entusiasmo. Como afirma Lúcia Miguel Pereira, no prefácio à novela Casa velha, publicada na revista de modas Estação, entre janeiro de 1885 e fevereiro de 1886, foi ao se tornar um analista despido dos preconceitos românticos e das ilusões da mocidade que Machado de Assis pôde construir, a partir dos quarenta anos, seus melhores romances. A crítica salienta que o próprio escritor, ao ser perguntado por Mário de Alencar por que, depois de escrever Helena, tão cheio de piedade, pudera criar Memórias póstumas de Brás Cubas, respondeu-lhe que só o conseguira por ter perdido qualquer ilusão a respeito dos homens. Se de fato os motivos que o levaram a tão abrupta mudança são esses, resta também duvidar se não houve outros, tão dúbios como a traição de Capitolina. Há críticos, como Eugênio Gomes, para quem a ruptura radical, após Iaiá Garcia, se explica por uma resposta mais aguda às influências de suas leituras de escritores ingleses, particularmente Shakespeare e Swift.

O espelho da ficção recria aquele que se contempla por trás dos disfarces do trabalho artístico, da transformação pelas leituras. A arte não imita a vida, antes parece roê-la, qual um verme, até que a mesma reste em palavras. O verme da dúvida roeu o livro da adolescência de Bento Santiago, roeu-lhe a batina de sacerdote, roeu-lhe o amor por Capitu. Se era um embrião de verme, pois, na juventude, Dom Casmurro já apresentava aquela propensão para tudo analisar, com o tempo tornou-se gordo, riu-se, não das carnes do personagem, mas de sua consciência. Talvez Bentinho, se houvesse escrito uma dedicatória ao seu livro, teria deixado-a a este verme que roeu as primeiras e últimas carnes de seu pensamento.

Se uma das artes de Machado é o uso exaustivo das citações literárias em seus livros, vê-se que Bentinho não deixou de ser um homem em tudo livresco. Ao criar um autor para o seu romance, Machado de Assis embebeu a vida de Dom Casmurro das mais diversas leituras. Já na adolescência, Bentinho havia tentado escrever um soneto, que acabou inconcluso. Entre o primeiro e o último verso, páginas em branco: “Oh! Flor do céu! oh! flor cândida e pura!/ Perde-se a vida, ganha-se a batalha!”, escreve de início. Ambos seriam versos eivados de um pensamento positivo em relação à existência: a vitória por meio de um gesto nobre. Porém, logo depois, muda o último verso para: “Ganha-se a vida, perde-se a batalha!”. Ganha-se, enfim, o acento irônico. Este esboço de soneto parece representar a própria vida do personagem: atando as duas pontas, tem a intuição de que, por qualquer forma que se ganhe a vida, a batalha está de antemão perdida. Não há prêmios nem emplastros milagrosos, ou fortunas do acaso que rendam para sempre. Entre a ilusão da mocidade e a consciência amarga da velhice, cabem as páginas de um livro a ser escrito, seu início e fim.

Qual consolo recebeu Bento Santiago desta batalha perdida? No gabinete da casa no Engenho Novo ele reflete sobre uma polêmica ocorrida há anos, antes que fosse para o seminário, uma disputa de opiniões com relação à guerra da Criméia. Seu adversário de prédica, o amigo e vizinho Manduca, que aguardava no leito a vitória do maior inimigo, a lepra. Dom Casmurro ficou ao lado dos russos, Manduca dos aliados. O amigo não chegou a saber qual das frentes venceu a guerra, a doença venceu-o antes. Bentinho faz uma liquidação de sua vida, e pensa que, apesar de todos os pecados, sobrou-lhe a lembrança de ter servido de consolo a alguém que, mesmo enfermo, lutava por uma idéia. Daí que a natureza divina se diverte onde há maior contraste, pois aos mais aflitos ainda acena com uma flor, mesmo prestes a murchar, é o que acaba por concluir.

A juventude de Bentinho leva mais de dois terços do livro para murchar, as poucas cinqüenta páginas finais tratam de podar-lhe as últimas ilusões. Ele mesmo confessa que não foi outra coisa, senão a “inexperiência”, que o levou a avançar tanto, ao correr da pena, deixando o melhor da narração ainda por dizer. “Inexperiência” ou, talvez, a necessidade de reviver por mais tempo as emoções de seus dezessete anos, emoções ainda não atingidas de todo pela análise crua, reservando aos capítulos finais o rápido crescimento daquele gérmen da vaidade: “um princípio da corrupção”, como ele diz.

“Venceu a razão”, conclui. Não a razão que move o homem contra o meio, a qual o impele a superar a sociedade que o sufoca, lutando por seus ideais. A vida, para o Machado de Assis da maturidade, já não se resumia aos conflitos entre amor e ambição, ou indivíduo e máquina social. Se estes existem, são apenas aparências, conseqüências do mal essencial de cada um, enterrado nas zonas obscuras do eu. A razão alimentou a dúvida de Bentinho, fechou-lhe as portas da juventude, criou o ciúme o qual acabou por fazê-lo perder Capitu, o amigo Escobar, o próprio filho. No entanto, Iago não conseguiu mover as mãos de Dom Casmurro e estrangular o objeto de sua perdição. Como bom personagem de Machado, caberia a Bentinho um papel mais acentuadamente trágico. Nem foi a sociedade que o fez suspeitar de si mesmo, a culpa de Otelo não estava estampada em sua pele ou casta; foi antes uma gargalhada ou troçar de porcos, tão misteriosa quanto o suposto “crime” de Capitu. A última troça é que todos, amigos, família se foram. Restou o Casmurro, autor cercado de defuntos. Tentando atar as duas pontas da vida, atou um livro. Mas quando por fim o “termina”, é hora de voltar à realidade, ou à vacuidade. Volta-se para uma História dos subúrbios.

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