Edição 261 | 09 Junho 2008

Seis décadas de amizade. Um depoimento

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Patricia Fachin

Luiz Osvaldo Leite relembra alguns momentos da trajetória de Roberto Carlos Velho Cirne-Lima

Além de seguidores intelectuais, Cirne-Lima também consolidou fortes amizades. Um de seus admiradores e amigo, Luiz Osvaldo Leite, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), conversou por telefone com a IHU On-Line na última semana, e relata, na entrevista a seguir, alguns momentos importantes da vida pessoal e profissional do filósofo gaúcho. Amigo da família Cirne-Lima, Luiz Osvaldo Leite demonstra um carinho especial pelo filósofo gaúcho, e lembra com emoção o período em que foi seu aluno, na década de 1960.

IHU On-Line - Como o senhor conheceu Cirne-Lima?
Luiz Osvaldo Leite
– Conheci o professor Cirne-Lima nos tempos do Colégio Anchieta, em 1945. Ele estava dois anos à minha frente, mas fomos contemporâneos. Naquele tempo, as escolas eram menores e havia uma convivência mais próxima entre os alunos. Fui colega de turma do irmão dele, Luiz Fernando Cirne-Lima, que até pouco tempo foi presidente da Copesul e também ministro da Agricultura. Assim, desde então, eu acabei me relacionando bem com toda a família Cirne-Lima.

IHU On-Line – Qual é a importância da família Cirne-Lima no Rio Grande do Sul?
Luiz Osvaldo Leite
– Carlos Roberto Velho Cirne-Lima pertence a uma das mais tradicionais famílias rio-grandenses. Ele é filho de Maria Velho Cirne-Lima e Dr. Rui Cirne-Lima, que foi um dos mais eminentes juristas gaúchos. Lamentavelmente, um homem que escreveu pouco. Mas isso é conseqüência da tradição gaúcha. O Dr. Rui era uma figura muito brilhante e, junto com o irmão Heitor Cirne-Lima, fundou a Faculdade Católica de Medicina, no estado. A família Velho também era tradicional e tinha bastante conceito intelectual.

IHU On-Line – Quais são as suas lembranças da trajetória estudantil do professor Cirne-Lima?
Luiz Osvaldo Leite
– Cirne-Lima sempre foi um aluno brilhante, dedicado. Desde o curso ginasial, ele sempre se destacou como um bom estudante, o que pode ser comprovado através dos relatórios do Colégio Anchieta. Naquele período, o colégio publicava anualmente um relatório com as notas dos alunos, e o Carlos Roberto Cirne-Lima sempre estava entre os melhores.

Ao sair do Anchieta, ele foi estudar no Colégio Santo Inácio, em Salvador do Sul, onde se especializou e se tornou um emérito conhecedor da língua grega e do latim. Voltei a ter contato com ele mais tarde, entre 1948 e 1949, quando Cirne-Lima teve sua primeira experiência com o magistério. Ele lecionava no Colégio São José,  em Pareci Novo, a 72 quilômetros da capital gaúcha. Nesse período, não fui aluno dele, mas posso dizer que aprendi com seu método de ensino, pois em 1951 tive um professor de latim chamado Milton Valente. Esse professor utilizou o método de Cirne-Lima nas aulas e, de fato, todos os alunos conseguiram aprender essa língua tão difícil.

Estudos no exterior

Em 1949, após concluir o estudo básico, Cirne-Lima foi estudar na Universidade de Pullach, na Alemanha. Esse era o melhor centro filosófico dos jesuítas alemães. Aliás, o fato de ele ter se mudado para lá já demonstrava seu valor e talento nos estudos filosóficos. Tanto é que os professores e colegas ficavam espantados com a sua rapidez de raciocínio. Convém recordar que as aulas dessa faculdade eram dadas em latim, e o aluno também precisava se expressar nessa língua. Nesse período, ele foi aluno de grandes professores, como Josef De Vries, Johann B. Lotz e Walter Brugger. Em 1953, ele ingressou no curso de Teologia, em Frankfurt e Innsbruck, Áustria, onde foi aluno dos professores Karl Rahner e E. Coreth. Com certeza, esses pensadores alemães foram extremamente importantes para a sua formação. Mas recordo que ele sempre contava que uma das pessoas que influenciou bastante sua produção intelectual, ainda no tempo da juventude do Colégio Anchieta, foi o padre Balduíno Rambo.  

IHU On-Line – Depois de estudar no exterior, ele retorna ao Brasil, nessa época o senhor teve contato com ele?
Luiz Osvaldo Leite
– Ele regressa para o Brasil em 1961 e ingressa como professor na faculdade Cristo Rei e no Seminário Central de São Leopoldo, onde leciona aulas de Filosofia. Como de costume, apresenta um brilhantismo extraordinário, com argumentação fundamentada e excelente apresentação. Nesse momento, ele foi meu professor de Teologia Dogmática. O relacionamento de amizade que eu tinha com ele apenas facilitou o aprendizado. Convém registrar que ainda nesse ano ele também lecionou na Faculdade Católica de Medicina de Porto Alegre. Essa faculdade, então dirigida pelos jesuítas, hoje é a atual Universidade da Saúde de Porto Alegre.

Devido ao brilhante desempenho no curso de Filosofia, o nome de Cirne-Lima esteve presente na lista da equipe de professores que precisava ser reconhecida pelo governo, no período em que estavam montando o curso de Filosofia da Faculdade Cristo Rei, instituição que deu origem à Unisinos. Nesta lista, foram citados nomes importantes como os de padre Urbano Thiesen e  Balduíno Rambo. Essa equipe formou o núcleo inicial de professores da Unisinos, que foi aprovado com muito louvor pelo Ministério de Educação e Cultura.

Em seguida, ainda em 1961, ele volta para a Europa, novamente à Áustria, permanecendo até 1965, em trabalho de pós-doutorado na Universidade de Viena. No final da década de 1960, já em Porto Alegre, Cirne-Lima faz sua livre-docência na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Nesse momento, em 1969, ele foi caçado juntamente com outros professores e alguns parentes, como Carlos de Brito Velho e Vitor de Brito Velho. Ainda nessa época, ele casou com a renomada artista plástica Maria Tomaselli.

Incapaz de exercer a profissão, Cirne-Lima dedicou-se até 1979 às atividades empresariais. Trabalhou em empresas privadas, em setores de destaque, retornando ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS após a anistia, em 1980. Ele lecionou na UFRGS até 1991, quando se aposentou e passou a ser professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), onde atuou como professor na graduação e pós-graduação durante 10 anos. Depois, foi para a Unisinos, onde atuou até agora.

IHU On-Line - Na época da ditadura, enquanto Cirne-Lima prestava o exame de livre docência na UFRGS, a universidade foi invadida. O senhor recorda desse momento?
Luiz Osvaldo Leite
– Eu não estava presente, mas sei que ele estava em pleno exame de livre-docência quando a universidade foi invadida. Cirne-Lima e algumas pessoas da banca saíram pela janela e desceram através de escadas para o térreo.

IHU On-Line - O que o senhor tem a dizer sobre os diálogos que Cirne-Lima teve com Habermas e outros intelectuais estrangeiros?
Luiz Osvaldo Leite
– Cirne-Lima sempre teve uma vocação filosófica tanto para o magistério quanto para a pesquisa. Com a cassação de muitos professores na UFRGS, o Instituto Goethe, de Porto Alegre, foi visto como um novo horizonte filosófico, ou seja, ele se tornou uma grande agência de formação e trouxe muitos pensadores alemães que fizeram cursos em conjunto com o Instituto de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nessa época, vieram para a capital gaúcha pessoas importantes, como Jürgen Habermas.  Nesse encontro, ocorreram diálogos muito virtuosos, seja nas palestras públicas dadas no Goethe, onde Cirne-Lima estava e sempre se destacava no diálogo com pensadores estrangeiros, seja em cursos intensivos ministrados na UFRGS ou em sua casa. Ele tinha uma linda mansão no bairro Glória, onde recebia os pesquisadores. Ali, eles estabeleciam diálogos muito férteis, que serviram não só para projetar Cirne-Lima como pensador no Brasil, mas também no mundo. Prova disso é a obra Festschrift: Dialética e Liberdade,  na qual vários intelectuais internacionais participaram com discussões, mostrando o reconhecimento das pesquisas de Cirne-Lima.

IHU On-Line - Que lembranças o senhor tem da época em que participavam da Companhia de Jesus? Como foi o ingresso e a saída do professor Cirne-Lima da Companhia?
Luiz Osvaldo Leite
– O Cirne-Lima ingressa na Companhia em 1945 e faz o noviciado em 1947. Quando ele foi a Bullach, ainda era jesuíta. Eu não sei por que ele resolveu sair da Companhia. Isso só ele pode responder.

IHU On-Line - O senhor lembra da vinda de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir ao Brasil?
Luiz Osvaldo Leite
– Na ocasião em que estiveram no Brasil, eles não chegaram a vir a Porto Alegre. Nos três meses que ficaram aqui, foram ao Recife e a São Paulo. Sartre proferiu uma palestra em Araraquara, São Paulo, e naquele momento houve uma sondagem para ele e Simone virem para Porto Alegre. Ocorreram memoráveis discussões no conselho da UFRGS, mas vozes fortes se opuseram e impediram a vinda dos dois à capital gaúcha.

Armando Câmara, que havia sido reitor da UFRGS e da PUCRS, e na época era um dos grandes líderes filosóficos da intelectualidade gaúcha, chegou a dizer a frase: “Se essa mulher entrar por uma porta eu saio por outra”, referindo-se à Simone de Beauvoir. Claro que a grande oposição em relação ao casal se dava devido a suas idéias, mas, também, em relação à vida pessoal. Eles tinham um matrimônio dito aberto e nunca se casaram.  Não sei dizer se Cirne-Lima participou das discussões com Armando Câmara, naquele momento. Mas, certamente, ele não seria contrário à vinda deles.

IHU On-Line – Se o senhor fosse pontuar um momento especial que conviveram juntos, o que destacaria?
Luiz Osvaldo Leite
– Destaco nosso reencontro em 1961, quando ele retorna da Europa e foi meu professor. Ele trouxe uma dimensão muito nova de pensamento. Eu tinha sido contemporâneo dele no Colégio Anchieta e passei, nesse novo momento, a ser seu aluno. Sob influência do ambiente europeu, estávamos nessa época discutindo o Concílio Vaticano II, e ele colaborou com muitas idéias. Esse foi um momento muito rico e abriu perspectivas para os alunos da época. Eu recordo disso com alegria.

IHU On-Line - Como o senhor descreve a pessoa de Cirne-Lima?
Luiz Osvaldo Leite
– Cirne-Lima é um homem de uma grande e invejável cultura. Uma das primeiras coisas que distinguem essa cultura é o profundo domínio e conhecimento de línguas. Ele domina não só latim e o grego, - o que permite o acesso à filosofia grega, aos pré-socráticos, aos neoplatônicos -, mas também compreende línguas modernas como alemão, francês, italiano, inglês e espanhol. Além disso, é um homem com uma grande formação filosófica. Por outro lado, ele tem uma simplicidade e uma alegria muito grande, o que o torna muito simpático. Isso tudo faz com que ele mantenha um relacionamento muito bom com as pessoas com as quais convive. Além disso, posso dizer que ele é um homem extremamente coerente com suas idéias, franco e sincero. Nesse sentido, também é muito autêntico. Destaco ainda outra qualidade dele: o dinamismo. Ele não pára. Está sempre pesquisando, trabalhando e tomando iniciativas. Tudo isso faz com que ele seja uma pessoa encantadora.

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