Edição 261 | 09 Junho 2008

Carlos Roberto Velho Cirne-Lima

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Álvaro Luiz Montenegro Valls

Há uns quarenta anos, perguntei ao meu amigo e professor Francisco Taborda SJ quem era o Cirne-Lima. Ele então me resumiu mais ou menos assim: “Brilhou no noviciado, brilhou no juniorado, brilhou na filosofia, brilhou no magistério, brilhou na teologia, brilhou na Alemanha, brilhou na Áustria...”. Um currículo impressionante, para alguém com trinta e poucos anos! A idéia que tirei dessa conversa foi a de que Cirne-Lima (tal como seu amigo Puntel ) representava uma das melhores cabeças que os jesuítas do sul do Brasil haviam ajudado a formar, em muitas décadas.

No começo dos anos 1980, conheci-o então pessoalmente, depois de ter ouvido contar, por outras fontes, que ele era um brilhante administrador de empresas, tanto no ramo da celulose quanto no ramo bancário ou no imobiliário. Soube depois que um de seus orientadores exigira que ele estivesse capacitado profissionalmente para a eventualidade de um dia vir a ser cassado. Santo conselho! Ou profecia? Cirne-Lima repetiu muitas vezes o seu bordão: “Quando a revolução me obrigou a ficar rico...”.

Conheci Cirne-Lima no Departamento de Filosofia da UFRGS, quando Valério Rohden  conseguiu o retorno dos cassados: Fiori, Cirne-Lima, Stein  e João Carlos. Após a cerimônia da reintegração, dei carona ao professor Fiori, que comentou comigo: “O Carlos Roberto, sempre generoso, esqueceu de dizer que no antigo Departamento de Filosofia nem todos foram cassados porque vários cassavam”. 

Eu, recém-doutor, por ter tempo e condições de criar o mestrado, aceitei o convite de Valério para ser chefe do Departamento. Que responsabilidade, ser chefe daquela turma! Mas, no que tocava ao Cirne-Lima, quanto prazer na tarefa! Chamei-o uma vez e conversamos: “Nosso curso foi mandado para o Campus do Vale e transferido do período da noite para o da tarde: querem acabar com a Filosofia; preciso de ti na Introdução à Filosofia!”. E lá se foi o nosso professor, que encantara os europeus com a tese Der personale Glaube, seduzir os nossos jovens para o charme da filosofia. Não sei se foi nesta época que teve um enfarto, mas me lembro dele, com microfone e amplificador, dando aula para mais de cem estudantes, incansável, ele mesmo encantado com o labor filosófico. Mais adiante, quando o alunado já havia crescido bastante, combinei “promovê-lo” ao terceiro ano: “Agora, Cirne-Lima, quem quiser assistir tuas aulas terá de vencer antes dois anos do curso...”. E lá se foi ele, alegre e parceiro da estratégia, sempre com a mente voltada para sua paixão: o ensino e a pesquisa.

Formei dele minha definição: Carlos Roberto é dos últimos representantes da mais bela “aristocracia gaúcha”, que defino como uma combinação de meritocracia com boa educação. Meritocracia: trata-se, queiramos ou não, de uma elite, de mentes privilegiadas, que merecem muito mais do que recebem, que se doam muito mais do que manda a obrigação. E isso junto à esmerada educação, no duplo sentido: intelectual e social. Cirne-Lima sempre mostrou, singela e despretensiosamente, que se movia com a maior facilidade tanto pelo alemão e o inglês quanto pelo grego e o latim (uma brincadeira de nosso reitor Marcelo Aquino com ele, na Unisinos, era ir à biblioteca procurar alguma passagem de Aristóteles num volume só em grego, ou greco-latino). Cirne-Lima cita um pré-socrático no original, assim como cita um Lupicínio Rodrigues (O pensamento parece uma coisa à toa...), chamando-o “Aquele bedel da Faculdade de Direito, quando meu pai era Diretor”. Mas sua boa educação tem sido também a marca do gentleman: se critica o trabalho de um colega, ele o faz de modo a engrandecer e estimular, apontando aspectos de que discorda, e indicando caminhos que poderiam ser seguidos. Apresentar diante dele um projeto sempre foi para os colegas um desafio, desafio tanto para um Puntel quanto para qualquer jovem iniciante. Mas jamais o vi humilhar um autor de um trabalho que comenta. Esta boa educação tem um lado frágil: não tem sido tão difícil magoá-lo; basta uma combinação de grosseria com pretensão, de mediocridade ambiciosa e informal. Pois Cirne-Lima é capaz de contestar deus e todo o mundo, mas sempre o faz com elegância e respeito. O próprio Deus dos tomistas e do Papa Ratzinger não poderá levar a mal, pois se ele contesta uma imagem de deus, é porque tem em mente (viva Santo Anselmo!) uma outra superior.

Entre 1953, quando lecionou Filosofia em São Leopoldo, e 2008, quando encerra seus compromissos profissionais, Carlos Roberto lecionou na UFRGS, na PUC-RS e na Unisinos, pesquisou e orientou trabalhos de pós-graduação, deu palestras no Brasil e na Europa, num pé de igualdade com Habermas ou Apel,  com Manfredo Oliveira ou Henrique Vaz. Em centenas de debates deu a cara para bater, mas sempre levando a sua interpretação, a sua filosofia, sempre curioso e criativo. Publicou livros e CD, e entre nós acabou inaugurando o gênero literário da Festschrift, como homenageado. Além de conhecer a Filosofia como poucos, Cirne-Lima sabe muito bem cultivar a amizade.


* Álvaro Luiz Montenegro Valls, sempre na área de Filosofia, é graduado pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, de São Paulo, mestre pela Universität Heidelberg, e doutor pela Universität Heidelberg. Atualmente, é docente da Unisinos e presidente da Anpof (Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia). 

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