Edição 260 | 02 Junho 2008

Invenção - Eduardo Jorge

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André Dick

Editoria de Poesia

Nascido em Fortaleza (CE), em 1978, Eduardo Jorge publicou as plaquetes de poesia San Pedro (2004) e Caderno do estudante de luz (São Paulo: Lumme Editor, 2008) e o livro Espaçaria (São Paulo: Lumme Editor, 2007). Seu verso mostra influência visível do neobarroco, como costuma se chamar a revitalização contemporânea do período que foi de 1580 a 1756, iniciado na Espanha e depois introduzido em Portugal durante o reinado filipino. No entanto, a poesia de Eduardo não traz nenhum excesso metafórico, como costuma ser dito a respeito de obras com elementos barroquistas. Pelo contrário: trata-se de um poeta que consegue versos com equilíbrio quase matemático e depuração de palavras. Ele compõe uma síntese a partir de observações literárias, filosóficas e das artes plásticas em geral. Suas imagens, mesclando abstração a elementos concretos, configura-se a partir de duas idéias: uma procura o discurso mais profícuo, como vemos na plaquete San Pedro, em que há textos mais longos, com uma procura pela retórica, mesmo que de maneira implícita; a outra toma como referência a leitura do poeta Haroldo de Campos, sobretudo de Xadrez de estrelas, com uma organização sintética do verso. No entanto, Eduardo não dilui Haroldo. Pelo contrário: ele busca essa organização a partir de imagens mais estranhas do que aquele que foi um dos criadores da poesia concreta.

Em seu livro Espaçaria, ele produz alguns poemas originalíssimos a partir de imagens de serpentes – uma das imagens recorrentes na fase inicial de Haroldo, sobretudo em poemas de Auto do possesso. Num desses poemas, “Áspide”, Eduardo apresenta os seguintes versos: “língua de luz: / a abertura – fornalha / pedindo passagem: / / às cegas, roliça: / clarão repentino / - abre e fecha. / / guizo musicando / a presença: rastro / da que vigia / a escuridão”. Em Caderno do estudante de luz, Eduardo compõe poemas que dialogam com fotografias experimentais, mostrando um entrelaçamento entre artes. Num dos poemas, parece descrever uma paisagem em movimento, em que o sujeito carrega alguns objetos: “quando se anda assim de / bicicleta, o quê mais úmido, eis: / as listras da pista de pouso, / algodão até às avessas, / enquanto segura o que é / portátil, também a casa vazia, / comigo e duas mudas de trevo, / na valise, a troca de assunto: / um livro permanece fechado”. No poema “Fotogenia” (de Espaçaria), lida novamente com o detalhamento das imagens: “aquele sorriso jeito / guardado / / como ainda fosse / ajeitar-se / / a eternidade ousou, / incompleta luz / indecisa”. Eduardo busca concentrar o discurso num espaço capaz de alcançar o leitor e mesmo perturbá-lo. Parece que ele seleciona uma determinada imagem que vai desfocando até que o leitor se esqueça do conceito original. No entanto, nesse movimento, ele começa a alcançar uma espécie de síntese do discurso que apresenta, sintetizando ambientes e sensações estranhas a partir de um novo olhar. As questões da memória e do esquecimento também estão presentes nesse caminho. Diretamente ligadas à literatura, essas questões revelam a procura do poeta por um caminho que busca conciliar leitura e um processamento de novas informações, como num dos dois poemas inéditos que ele enviou a esta IHU On-Line, intitulado “os gatos de merce cunningham”, em que coloca como personagens o coreógrafo norte-americano Cunningham e o músico John Cage, que viveram e fizeram trabalhos juntos. Nessa metalinguagem, o poema de Eduardo também remete a outro, chamado “Os gatos de John Cage”, do poeta Aníbal Cristobo, igualmente lembrado em seus versos. Enquanto isso, no poema “cobre, 29”, Eduardo escreve: “a crença parafísica encontrava-se em alguma curvatura (espaço esquina com o tempo, travessa Haroldo de Campos)”, remetendo o leitor à obra Crisantempo – No espaço curvo nasce um, de Haroldo, poeta, como já mencionado, referencial em sua obra.

Ao mesmo tempo, com mais uma característica do neobarroco – sem filiá-lo a um determinado movimento, mas procurando pontos de contato em sua poesia com alguns dos maiores poetas da atualidade, a exemplo do cubano José Kozer –, Eduardo tem um verso extremamente musical, voltado ao corte minucioso das palavras e capaz de captar as ligações entre o silêncio e o movimento ruidoso da vida contemporânea. Simultaneamente, essa sua capacidade de encontrar o eixo de um discurso quase filosófico, o coloca de frente com questões como a solidão do homem, a ligação com o mundo animal e a presença cada vez maior da cultura oriental no mundo ocidental. De modo geral, a poesia de Eduardo é um lugar em que o leitor pode buscar estranheza e perceber uma nova realidade, o que não é pouco. 

 


quando o desvio

1.


se um passo ou outro, cobre a palma, fala de ci-

gana – às portas do mercado:

e acalma pelo pulso: duas embarcações, se. ossa-

tura e músculos às teses cartesianas

dobradas, pois retas tortas para tentar uma

morada. Aliás, gaiola dentro da gaiola: o preto

risca o velho, gargalha no mínimo

quatrocentos anos de rocha batida, pisada e

contornada; aquele desenho não está lá anos à

toa.  

2.


um passo ou ouro, entre a oração silenciosa, o

que ler: mão à mão: pupilas. eis os braços:

duas figas e vai;

a pele plissada a fé: vem desconhecido, pisa e

apaga o passo ou outro, rasura se te

escreveram antes as duas embarcações, guarda

a pele em dobras cautelosas e some esfumado

sobre cobalto, canta o carvão e vira o vai e

vem do mar, de um sopro.   

 

os gatos de merce cunningham


os mesmos nadadores ou banhistas em frascos escuros, craw

o que mais compartilhamos john, o

silêncio, a respiração? e não há nada expressivo nisto

como a distância entre a música e o movimento,

deixe as figuras fora disto, e o como também,

isto é entre eu e você. e os gatos.

sim e quem vai ficar com eles: os outros gatos,

agora tão de aníbal quanto teus, os nossos, pois

vem a medula e a imaginação, puro movimento aquático e aberto,

e a explicação firmada, leve tentativa

a ação física era toda em leveza como uma atmosfera

sem terra, ou um céu sem inferno. agora a (te chamarei

assim); cunningham, o velho merce vem, escrevendo com o movimento

roubado dos gatos, o espaço sem centro, deixou as sombras ou

ele mesmo, parece de longe o avesso do mergulho no ar, algo repetido

todo o dia em acaso e sombras. inúmeras tentativas de

abrir o espaço e sumir com seu próprio corpo.

na legenda, além do pêlo preto e o branco com riscos cinza

tinham com amarelo, gatos. e com verticalidade andam

com pequenas almofadas nas patas e pulam sobre quem

consente, o ar, o que temos em comum, agora.

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