Edição 260 | 02 Junho 2008

SUS. O sonho da universalização e o pesadelo da segmentação

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Graziela Wolfart

Para Eugênio Vilaça, o SUS não atingiu a todas as expectativas dos constituintes e do movimento sanitário

Na opinião do professor Eugênio Vilaça Mendes, a maior lacuna entre o SUS que temos e o SUS que queremos está na concepção macroeconômica vigente do sistema de saúde brasileiro, que se estrutura na perspectiva da segmentação. No entanto, ele acredita que há avanços a comemorar nesses 20 anos de SUS. E exemplifica: “Houve um incremento do acesso dos brasileiros à saúde; a atenção primária à saúde melhorou muito, especialmente, por meio do Programa de Saúde da Família; há bons resultados nos programas de imunização, nos transplantes de órgãos, no programa de controle do HIV/Aids”. Eugênio Vilaça Mendes possui graduação em Odontologia, mestrado em Administração, e doutorado em Cirurgia Bucal, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Além disso, tem especialização em Planejamento de Sistema de Saúde, pela Fundação Oswaldo Cruz. Atualmente, é assessor da Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais, professor da Escola de Saúde Pública do Ceará, consultor para o projeto Qualisus do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Banco Mundial) e consultor da Secretaria de Estado de Saúde do Espírito Santo. Confira, a seguir, a entrevista que ele concedeu por e-mail para a IHU On-Line.

IHU On-Line - Qual é a sua avaliação sobre o Sistema Único de Saúde brasileiro? Ele atinge as expectativas de quando foi planejado e implantado, com a Constituição de 1988?
Eugênio Vilaça
- Creio que o SUS não atingiu a todas as expectativas dos constituintes e do movimento sanitário, que foram os principais atores que o criaram na Constituição de 1988. O principal problema está em que o SUS foi concebido como um sistema público universal, à semelhança dos sistemas de saúde da Europa Ocidental e Canadá, mas que, na prática social, vem sendo implantado como um subsistema público de um sistema de saúde segmentado, que convive com dois subsistemas privados: o subsistema de saúde suplementar e o subsistema de desembolso direto. Os dados do Relatório Mundial da Saúde da OMS de 2008, recentemente publicados, mostram que o SUS consome apenas 44,1% dos gastos em saúde no país e os subsistemas privados, 55,9%. Assim, o sonho da universalização vem se transformando no pesadelo da segmentação, já que há evidências, na literatura internacional, de que a segmentação dos sistemas de saúde leva à iniqüidade e a resultados econômicos e sanitários pobres. O melhor exemplo são os Estados Unidos, que gastam mais de seis mil dólares per capita anuais e têm níveis de saúde piores que outros países desenvolvidos que gastam muito menos.

IHU On-Line - Quais são as maiores lacunas entre o SUS que temos e o SUS que queremos?
Eugênio Vilaça
- Sem dúvida, a maior lacuna está na concepção macroeconômica vigente do sistema de saúde brasileiro que se estrutura na perspectiva da segmentação. Um dos resultados mais claros dos sistemas segmentados, na experiência internacional, é que, nele, o subsistema público tende a ser subfinanciado. A razão é simples: os segmentados sociais melhor posicionados na estrutura social retiram-se, pelo menos parcialmente, do subsistema público, contratando planos privados e, por conseqüência, ele tende a se transformar num nicho de pobres. Infelizmente, nas sociedades com alto grau de exclusão, os pobres têm dificuldades de articular organicamente seus interesses e de vocalizá-los nos grandes centros decisórios. Isso permite manter subfinanciado o sistema público, como é o caso do SUS.

IHU On-Line - Quais são os principais desafios, avanços e dilemas do SUS hoje?
Eugênio Vilaça
- Há avanços a comemorar nesses 20 anos de SUS. Em geral, houve um incremento do acesso dos brasileiros à saúde; a atenção primária à saúde melhorou muito, especialmente, por meio do Programa de Saúde da Família; e há bons resultados nos programas de imunização, nos transplantes de órgãos, no programa de controle do HIV/Aids e outros, onde o SUS tem desempenho exemplar no cenário mundial. Os principais desafios estão, no plano macroeconômico, na segmentação do sistema e, no plano microeconômico, na inconformidade do modelo de atenção à saúde praticado no SUS. O desafio microeconômico manifesta-se na incoerência entre uma situação de saúde caracterizada pela dupla carga de doenças, com predominância relativa forte das condições crônicas, e um modelo de atenção fragmentado, voltado prioritariamente para a atenção às condições agudas. Esse modelo não deu certo em países com sistemas de saúde maduros e não está dando certo no SUS. É preciso recompor a coerência entre a situação de saúde e o modelo de atenção à saúde pela estruturação de redes de atenção à saúde.

IHU On-Line - Como está a questão tecnológica (equipamentos e infra-estrutura) no sistema público de saúde no Brasil?
Eugênio Vilaça
- Há problemas nessa área que envolvem a inovação, a incorporação e a avaliação das tecnologias de saúde. As dificuldades se tornam maiores em função da forma hegemônica de planejamento do SUS: o planejamento da oferta, do qual a concepção da PPI (Programação Pactuada Integrada) da assistência é elemento constitutivo. No planejamento da oferta, as necessidades de saúde da população são colocadas em segundo plano e os interesses dos atores sociais mais bem posicionados na arena política da saúde (prestadores de maior prestígio ou densidade tecnológica, produtores de equipamento biomédicos e laboratórios e distribuidores de medicamentos) se manifestam com maior intensidade e tendem a abortar iniciativas racionais de introdução do planejamento das necessidades, da racionalização da incorporação e da avaliação das tecnologias sanitárias. Do ponto de vista econômico e sanitário, a forma como o SUS vem se estruturando, com base numa municipalização autárquica, levou a uma enorme fragmentação do sistema, com a dispersão de equipamentos sensíveis à escala (por exemplo, hospitais e laboratório de patologia clínica) que levam a uma ineficiência sistêmica e a serviços de baixa qualidade porque, em geral, nos sistemas de saúde, há uma associação entre quantidade e qualidade. 

IHU On-Line - Por que há tanta procura por planos de saúde hoje? Como deve se sentir um brasileiro que depende exclusivamente do SUS para se tratar em caso de doença?
Eugênio Vilaça
- Não creio que haja tanta procura por planos de saúde hoje. Dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) mostram que a evolução das pessoas vinculadas aos planos privados médicos foi somente de 32 milhões em 2000 para 35,8 milhões em 2006, um crescimento que nada tem de espetacular. Por outro lado, os dados do IBGE das Pesquisas por Amostras Domiciliares mostraram que o uso regular de serviços de saúde cresceu, na população brasileira, entre 1998 e 2003, de 13,0 para 14,6%, e que esse aumento foi devido ao SUS e não ao sistema de saúde suplementar, que se manteve inalterado. Os brasileiros que dependem do SUS estão mais satisfeitos com os serviços que recebem. Pesquisa de opinião feita pelo Conass  mostrou que 45,2% dos usuários exclusivos do SUS acham que o sistema funciona bem ou muito bem; já dos não-usuários, apenas 30,3% o avaliam como funcionando bem ou muito bem. O que permite concluir que quem avalia mal o SUS são as pessoas que não o utilizam.

IHU On-Line - Considerando a caminhada do SUS desde sua implantação, há a necessidade de uma reformulação e de retomar as lutas da reforma sanitária?
Eugênio Vilaça
- Os estudos empíricos sobre reformas de saúde mostram que mudanças radicais só são possíveis quando se manifesta uma ruptura institucional, tal como ocorreu com a redemocratização do país após a derrocada da Ditadura Militar. Não havendo, como tudo indica que não haverá, uma ruptura na democracia brasileira, resta o caminho das reformas sanitárias incrementais. É o que será possível no Brasil. Os caminhos dessa reforma incremental devem se dar, concomitante e dialeticamente, em dois planos: um na tentativa de romper a segmentação vigente e consolidar o SUS como um sistema público universal para todos os brasileiros e o sistema privado como um sistema realmente suplementar que pode ofertar serviços que o Estado não ofereça gratuitamente; outro, na mudança radical do modelo de atenção à saúde praticado no SUS, integrando o modelo fragmentado vigente em redes de atenção à saúde. 

IHU On-Line - Em que medida o SUS pode ser visto como prática da solidariedade e da igualdade social? O senhor acha que ele pode ser considerado um sistema de saúde para os pobres?
Eugênio Vilaça
- Como mencionei anteriormente, o SUS como parte de um sistema segmentado de saúde, voltado principalmente aos segmentos sociais em situação de exclusão, não poderá ser, nunca, um sistema eqüitativo. O que não significa que, nestes 20 anos de existência, não tenha aumentado, significativamente, o acesso dos mais pobres aos serviços de saúde. Mas não se pode dizer que o SUS seja um sistema só para os pobres. Segmentos sociais incluídos fazem uso regular de certos serviços, especialmente aqueles mais custosos, como medicamentos de prescrição em caráter excepcional, transplantes de órgãos, controle de HIV/Aids etc., bem como de outros bens públicos, como os serviços de vigilância em saúde. Esse uso seletivo de serviços de alto custo tem duas implicações: de um lado, tende a incrementar a iniqüidade; de outro, traz para dentro do SUS uma população que, ao utilizá-lo, acaba por diminuir os preconceitos em relação ao sistema público de saúde. Uma vez que segmentos de classe média utilizem regularmente o SUS, será impossível mantê-los subfinanciados.

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