Edição 259 | 26 Mai 2008

O pensamento de Karl Marx e sua anti-filosofia

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Bruna Quadros e Márcia Junges

Para Gláucia Campregher, o termo anti-filosofia não é de grande interesse. O mais importante é, sim, o entendimento e o uso da dialética marxiana como ferramenta de raciocínio

Mesmo não sendo recente, a anti-filosofia de Karl Marx ainda é referência na atualidade. De acordo com a Profa. Dra. Gláucia Campregher, a importância do materialismo-histórico-dialético hoje, mesmo enquanto filosofia, seria poder capacitar o olhar das pessoas para elas olharem bem longe no tempo e bem perto do espaço. “Esse aumento de capacidade de ver, e de ver melhor, traria consigo a necessidade de um entendimento diferente, aquele voltado à necessidade de agir”, afirmou. Em entrevista concedida por e-mail à revista IHU On-Line, Gláucia destacou, ainda, que a dialética marxiana é materialista, em oposição à dialética hegeliana, que é idealista. “Em Hegel, o mundo todo que existe só é bem pensado, bem compreendido, se capturado em sua verdade, que significa ser capturado em sua concreticidade”, ressaltou. A anti-filosofia de Karl Marx é tema do Ciclo de Estudos em EAD (Ensino à Distância) – Repensando os Clássicos da Economia, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. As aulas seguem até o dia 07 de junho.

Gláucia Campregher leciona nas Ciências Econômicas e Administrativas da Unisinos. Graduada em Ciências Econômicas, pela Universidade Federal de Viçosa, é mestre em Economia, pela Unicamp, com a dissertação intitulada Desdobramentos lógico-históricos da ontologia do trabalho em Marx, e doutora em Economia, também pela Unicamp, tendo sua tese o título Contribuição à crítica da Economia Política do não-trabalho.
Gláucia Campregher

IHU On-Line - Em que sentido se pode falar do materialismo histórico como uma anti-filosofia de Marx?
Gláucia Campregher
- O termo anti-filosofia não me parece muito interessante hoje. Teve seu momento polêmico, mas toda a polêmica é muita datada. O mais importante é o entendimento e, melhor ainda, o uso dessa fantástica ferramenta de raciocínio que é a dialética marxiana. Me preocupa o fato de termos filosofia nos currículos escolares de segundo grau e pouca gente que saiba pensar dialeticamente.

IHU On-Line - Em quais aspectos Marx supera e conserva a filosofia de Hegel, pensador que o influenciou decisivamente?
Gláucia Campregher
- A dialética marxiana é materialista, em oposição à dialética hegeliana, que é idealista. Em Hegel,  o mundo todo que existe só é bem pensado, bem compreendido, se capturado em sua verdade, o que significa ser capturado em sua concreticidade. Isso já confere alguma preocupação com a materialidade das idéias. Foi Hegel quem disse “o concreto é a síntese de muitas determinações”, frase que Marx gostava de citar. Mas é que todo esse trabalho de compreensão e síntese, todo o trabalho do pensamento, da idéia, da razão que pensa a si mesma, é que encanta Hegel, enquanto, para Marx, a compreensão pela compreensão não é nada. Daí ele acusar a filosofia de só ter pensado o mundo, quando o necessário era transformá-lo. O trabalho da idéia que compreende o mundo não é mais interessante para o Marx que todos os outros que fazem o mundo. Daí Marx sair da filosofia (como já tinha saído do direito) e passar à economia e à necessidade de compreender como, ao longo da história, os homens produziram sua vida material em sentido largo – todas as coisas e idéias!

IHU On-Line - Como o Marx filósofo influencia e dialoga com o Marx economista?
Gláucia Campregher
- O materialismo de Marx não seria materialismo, se ele próprio não tivesse chegado à economia. Ocorre que a economia a que ele chegou não era a da compreensão da produção das coisas e da troca das coisas, como se a produção, a troca e os homens que produzem e trocam tivessem uma história. A economia que Marx conheceu, a economia política inglesa do Smith e outros pensadores franceses, não tinha uma compreensão materialista histórica do que são os homens e do que eles fazem. Smith  vai dizer que  “o homem tem uma tendência natural às trocas”, sem ter a menor preocupação em ter uma compreensão do que é o homem sobre o qual ele enche a boca pra falar, se apegando, assim, a uma natureza humana que é tudo o que o Marx repudiava. Até hoje, tem gente que pensa assim, como se o homem tivesse uma natureza dada. Por isso, eu dizia no início que ainda não pensamos dialeticamente no geral. O marxismo, como disse Lênin , é fruto do pensamento filosófico alemão, do pensamento político francês (que produziu as primeiras concepções de socialismo utópicas, como diria Marx) e da economia política inglesa.

IHU On-Line – Há uma afirmação de Marx de que os filósofos se limitam a interpretar o mundo de diferentes maneiras e o que importa é transformá-lo. Seria uma pista para compreender essa anti-filosofia, que, além da teoria, parte para a práxis e para o mundo terreno?
Gláucia Campregher
- Sim. Mas o que a não realização satisfatória dessa tarefa (mudar o mundo) nos mostrou é que tudo isso era mais complicado que parecia. A filosofia não morreu depois desse seu convite ao suicídio que Marx lhe fez. Existe uma parte ruim nisso – o capitalismo a transformou em uma mercadoria a mais –, e um lado bom – as compreensões a mais que ela produziu em si mesmas são boas, mesmo que o mundo ainda esteja por ser mudado. Aliás, precisamos dessas compreensões a mais para mudá-lo ainda. A filosofia pré-Marx já discutia o mundo terreno. Se já é difícil trabalhar sobre ele com o pensamento, imagine com a ação. O Hegel era mais paciente ao dizer: “A humanidade tem muitas vidas pra desperdiçar”. O Marx tinha aquele ímpeto de achar que as vidas desperdiçadas já eram muitas. Eu compactuo da impaciência dele, mas e daí? O que nós estamos fazendo hoje, aqui e agora, para não apenas compreendermos o que ele e outros tantos dizem, mas para irmos fazendo já alguma coisa pela tal transformação necessária?

IHU On-Line - É correta a afirmação de Althusser de que o Marx idealista das Teses sobre Feuerbach não tem mais relação com o Marx de O capital? Por quê?
Gláucia Campregher
– Acredito que não. Minha tese de mestrado passa por essas questões. Seria difícil resumir. Eu diria que o Althusser é o que se chamava de um anti-humanista e, para ele, o Marx das Teses... ainda era um Marx humanista, discutindo o que o homem era ou não era. A ele interessava mais as grandes estruturas sociais. Algo como se disséssemos que, se o homem é um produto do meio, há que se entender o meio e ponto final. Claro que o Marx também diz isso, principalmente, o de O capital. Mas a boa compreensão do Marx só vai se dar quando nós conseguirmos casar o Marx filósofo, ou jovem como muitos o chamaram, e o Marx economista e velho.

IHU On-Line - Como Feuerbach e outros heguelianos de esquerda influenciaram na anti-filosofia de Marx?
Gláucia Campregher
- Feuerbach  e os seus eram críticos das concepções humanistas do Hegel que eles substituíam por outras. Para Marx, nenhuma concepção de homem é boa. Como ele diz, o homem é o conjunto das relações sociais. É como se ele dissesse “O homem não existe”.

IHU On-Line - Por que as Teses sobre Feuerbach são um tipo de certidão de nascimento do materialismo que Marx funda, conforme escreve Paulani no Caderno IHU Idéias 41?
Gláucia Campregher
- Ser materialista é colocar para a ciência a tarefa de conhecer como se estabelecem as relações sociais – materiais e históricas – que nos colocam no mundo concreto e real que vemos aqui. É em nossa materialidade de seres pensantes, trabalhantes e militantes que somos limitados por esse conjunto de fatores. Por isso, não somos livres nem criadores; não somos justos, não somos respeitadores do planeta, e mesmo não somos felizes. E não adianta sermos politicamente corretos, termos esse ou aquele discurso progressista, humanitário, que até o capitalismo hoje tem, para fazermos a tal tarefa de “mudar o mundo”. Temos de mexer nas tais bases materiais por trás das relações sociais e nas regras de apropriação do sistema. Está aí o materialismo do Marx.

IHU On-Line - Para Marx, o homem é um vir a ser. Como entender, então, que ele seja autor de uma anti-filosofia, se, junto desse tipo de idéia, ele compreende não uma essência humana, mas um conjunto de relações sociais, algo tipicamente hegeliano, e portanto, filosófico?
Gláucia Campregher
- A idéia de essência humana é que é filosófica no sentido mais limitado, certo? Para mim, Marx substitui a ontologia hegeliana do ser, pela do trabalho. Por isso, o homem é, concretamente falando, as relações sociais que o condicionam. Só que essas relações não são somente, por exemplo, o assalariamento e suas derivações mais diretas. O que quero dizer é que se no Marx fazemos a história mais que no Hegel é porque não fazemos a história em condições que herdamos pacificamente. Por isso, o estruturalismo do Althusser  era meio pobre, porque nele a história passada virou viga morta de um edifício morto, sem movimento. Muitas vezes, o raciocínio mais economicista, ou politicista, que abre mão da filosofia, perde os mil ganchos que uma época deixa para outra (e que faz o edifício ter rachas, correções, vegetações parasitas). Aliás, o que ocorre hoje em dia é que esses ganchos estão sendo todos trabalhados (para isso a academia serviu bem), o que é ótimo. O único problema é que eles estão todos soltos.

IHU On-Line - A idéia de que a consciência não pode ser outra coisa que o ser consciente, e o ser dos homens é seu processo de vida real, além de fundante do materialismo, teria também laivos niilistas, como a negação de uma instância superior que engendrasse essa consciência?
Gláucia Campregher
- Eu não diria niilista, nem mesmo não espiritualista de todo. Mas ela é, sim, a negação de uma justificativa transcendental para o que se passa aqui na Terra.

IHU On-Line - Qual é a importância de sua anti-filosofia hoje?
Gláucia Campregher
- A importância do materialismo-histórico-dialético hoje, mesmo enquanto filosofia, seria poder capacitar o olhar das pessoas pra elas olharem bem longe no tempo e bem perto no espaço. Seria isso equivalente a multiplicarmos os ângulos de visada dos seres todos que nos circundam. Esse aumento da capacidade de ver, e de ver melhor, traria consigo a necessidade de um entendimento diferente, aquele voltado à necessidade de agir.

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