Edição 259 | 26 Mai 2008

A tragédia da democracia: a repressão ao exercício de direitos políticos dos trabalhadores

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Patricia Fachin e Moisés Sbardelotto

Para o doutor em Ciências Sociais Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida, o atual processo de criminalização dos movimentos sociais surge de uma convivência trágica de democracia, que, em princípio, assegura direitos políticos iguais para todos os cidadãos, e maior repressão ao exercício desses direitos por parte dos trabalhadores

“Após 21 anos de ditadura militar, vivemos um período muito original na história do país, com uma geração que chega à idade adulta tendo nascido em um regime político democrático-burguês”, afirma o sociólogo Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida. Nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele aborda as novas lutas sociais que surgem no novo contexto político mundial, “marcado pela conjunção de democracias com neoliberalismo”, especialmente na América Latina. Segundo ele, o novo regime não elimina a existência de dominação e exploração capitalista de classe. “Além disso”, afirma, “a atual onda de democratização coincide com a implementação de políticas neoliberais, voltadas exatamente para intensificar a exploração dos trabalhadores, o que implica reduzir ou mesmo eliminar os direitos que estes conquistaram”.
Segundo ele, está havendo um declínio das lutas operárias urbanas entre as classes populares. Amplos setores dessas classes estão despolitizados, “procurando resolver individualmente problemas que são fundamentalmente coletivos”. “Mas onde há dominação há resistência”, afirma. Como exemplo, indica “a vitoriosa campanha contra a ALCA; uma série de lutas sociais, a começar pela dos trabalhadores rurais sem terra; e, desde o ano passado, lutas estudantis, especialmente em universidades públicas”.
Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida é graduado e doutor em Ciências Sociais, pela Universidade Estadual de Campinas, e mestre em Ciências Políticas, pela mesma universidade. Cursou pós-doutorado em Ciências Sociais, pela Université de Paris VIII. Atualmente, é professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

IHU On-Line - Acompanhando os movimentos sociais e políticos no Brasil, o que a trajetória de lutas e de resistência popular possibilitou, em termo de democratização da sociedade?
Lúcio Flávio
– “Democratização da sociedade” é uma expressão com múltiplos significados, mas vamos lá. No que se refere ao regime político, vivemos cerca de 23 anos de democracia liberal, o que é um recorde na história do Brasil. Existe pluripartidarismo amplo e sufrágio universal. Apenas para compararmos com alguns períodos anteriores, durante a República Velha, não havia partidos nacionais (fora o caso excepcionalíssimo do Partido Comunista), e o voto das mulheres e dos analfabetos era proibido. Essa última proibição persistiu durante a chamada democracia populista (1945-1964), quando também os partidos comunistas eram legalmente proibidos. Após 21 anos de ditadura militar, vivemos um período muito original na história do país, com uma geração que chega à idade adulta tendo nascido em um regime político democrático-burguês. Mas duas precisões se impõem. Em primeiro lugar, regime democrático não elimina a existência de dominação e exploração capitalista de classe. Em segundo, a atual onda de democratização coincide com a implementação de políticas neoliberais, voltadas exatamente para intensificar a exploração dos trabalhadores, o que implica reduzir ou mesmo eliminar os direitos que estes conquistaram. Daí esta convivência trágica de democracia que, em princípio, assegura direitos políticos iguais para todos os cidadãos, independentemente da classe à qual pertencem, e maior repressão ao exercício destes direitos por parte dos trabalhadores. É neste contexto que podemos compreender o atual processo de criminalização dos movimentos sociais.
 
IHU On-Line - O governo Lula representa o fim e o inicio de uma nova era no que se refere às lutas de classe no país?
Lúcio Flávio
- O governo Lula representa o final de um ciclo iniciado pelas grandes lutas populares e, principalmente, operárias, no final dos anos 1970 e que se prolongaram pela década de 1980, inclusive com a fundação de uma forte e combativa central sindical - a CUT - e do Partido dos Trabalhadores. Essas lutas, com todas as limitações que podem ser apontadas, foram decisivas para a crise final da ditadura militar e para a construção de um partido de massas, com profunda inserção junto a contingentes proletários e populares em todo o Brasil. Ao longo do processo, como tudo na vida, o PT e a CUT mudaram. O mesmo ocorreu, de um modo muito particular, com o principal personagem individual desta história, Lula. Mas sua eleição e a consolidação do PT como um partido da ordem podem ser consideradas como um dos aspectos do encerramento daquele ciclo de lutas iniciado no final dos anos 70.
 
IHU On-Line - O senhor fala que vivemos hoje o enceramento de um ciclo e aponta uma nova composição de lutas populares, principalmente no governo Morales. No caso específico do Brasil, ocorre o contrário, já que os antigos militantes da década de 1970 e 1980 compõem o governo. Temos nesse cenário o surgimento de uma nova classe social?
Lúcio Flávio
- As novas lutas sociais na América Latina já respondem aos desafios deste novo período marcado pela conjunção de democracias com neoliberalismo. Daí esta novidade que são movimentos de massas derrubarem, em diversos países, governos eleitos via sufrágio universal, como ocorreu na Argentina, Bolívia e Equador. E, por outro lado, a eleição de governos comprometidos com as reivindicações de amplos setores historicamente oprimidos em termos de classe e de etnia. É o que ocorre, por exemplo, na Bolívia e, em larga medida, na Venezuela. Neste caso, o impulso democrático vem de setores aparentemente “arcaicos” da sociedade, devido à forte participação de descendentes dos povos indígenas que viviam na América antes da conquista espanhola. E as forças antidemocráticas são constituídas fundamentalmente por membros da classe dominantes e de setores médios, em geral brancos, que se apresentam como ultramodernos. O caso do Brasil também é muito complexo. As posições político-ideológicas do PT mudaram, bem como sua inserção social. Isso não significa o surgimento de uma nova classe, mas a mudança de inserção social do partido e, especialmente, de seus quadros dirigentes. Muitos destes, que eram vinculados às lutas operárias e de segmentos da classe média situados mais à esquerda, hoje se vinculam aos interesses do grande capital.

IHU On-Line - Dentro da perspectiva de transformação social ocorrida no Brasil nos últimos anos, como o senhor vê dados como os da pesquisa realizada pela Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa, que revelam que, em 2008, o Brasil possui oito classes sociais diferenciadas? Na sua opinião, como é estabelecida a divisão de classes hoje no Brasil?
Lúcio Flávio
- Não conheço essa pesquisa e, portanto, não posso comentá-la. A formação social brasileira é constituída por diversas classes sociais, frações de classe, camadas e categorias sociais. Em termos bem simples, o conjunto das frações burguesas é hegemonizado pelo grande capital nativo e internacional em um período marcado por forte financeirização da economia. Basta se observar, por exemplo, os extraordinários lucros dos bancos e o que é gasto para rolar o pagamento da dívida pública brasileira, que não para de crescer. Sob este aspecto, o diferencial do governo Lula é que o capital industrial tem sido melhor contemplado do que em qualquer governo do período 1980–2002, ou seja, desde os estertores da ditadura militar. Um destaque especial cabe ao chamado agronegócio, que, amparado em altíssima exploração da força de trabalho e favores especiais do governo, especialmente na política de crédito, contribui para o saldo da balança comercial.

Entre as classes populares, permanece um declínio das lutas operárias urbanas, que procuram retomar o fôlego, inclusive com a criação de novas centrais sindicais; no bojo do desenvolvimento do capitalismo no campo, um crescimento numérico do proletariado rural sem que isto ainda se traduza em avanço das lutas; e um grande número de semiproletários – de pequenos proprietários rurais e urbanos, trabalhadores por conta própria até escravos e semi-escravos dos mais diversos tipos. A classe média brasileira sempre foi muito diferenciada, o que se acentua atualmente. Alguns setores com grande tradição de luta estão fragilizados por conta da reestruturação do próprio capitalismo brasileiro. É o caso, por exemplo, dos bancários. Outros sofreram maior impacto ideológico do neoliberalismo, como é o caso de amplos segmentos dos professores das universidades públicas (os das universidades mercantis encontram-se submetidos a relações de trabalho quase carcerárias), dos chamados profissionais liberais; já os quadros médios e superiores das grandes empresas aderem mais abertamente ao neoliberalismo.

Neste contexto, amplos setores das classes populares estão despolitizados, procurando resolver individualmente problemas que são fundamentalmente coletivos. É o caso das diversas formas de violência entre jovens pobres (proletários e semiproletários) nas chamadas periferias urbanas.

Mas onde há dominação há resistência e, no caso do Brasil, destaque-se, por exemplo, a vitoriosa campanha contra a ALCA; uma série de lutas sociais, a começar pela dos trabalhadores rurais sem terra; e, desde o ano passado, lutas estudantis, especialmente em universidades públicas.
 
IHU On-Line - Como o senhor vê a política atual do governo Lula para a diminuição da distância entre as classes sociais brasileiras? É possível minimizar os abismos que separam as classes dominantes das mais baixas?
Lúcio Flávio
- O Brasil permanece um dos campeões mundiais em matéria de desigualdade social. Mesmo dentro do capitalismo foi possível, no período 1945–1970, reduzir as chamadas desigualdades sociais. Atualmente, ocorre o contrário, o que pode se agravar caso se confirmem os prognósticos acerca de uma nova e profunda crise do sistema. Combater as desigualdades sociais sem combater a exploração capitalista é uma luta que até, em condições bastante favoráveis, pode dar resultados imediatos positivos, mas que, no conjunto e no longo prazo, não costumam se sustentar. Com muita competência política, o governo Lula consegue, até agora, realizar a extraordinária façanha de, inclusive por meio de políticas sociais de baixo custo, angariar apoio da imensa maioria dos dominados para uma política que contribui para uma extraordinária acumulação de capital. Para lembrar uma expressão de um político de triste memória (Collor), é isso que deixa os setores mais à direita (políticos profissionais) extremamente raivosos. E a esquerda perplexa.
 
IHU On-Line - Uma das características do capitalismo atual são as recentes fusões e unificações entre empresas nacionais e internacionais. O que isso pode significar para as classes sociais no país?
Lúcio Flávio
- Não é a primeira vez que isso acontece. A burguesia brasileira sempre foi muito dócil diante do capital imperialista. Um intenso processo de associação de capitais nativos e estrangeiros ocorreu durante os anos JK (segunda metade da década de 1950), o que também significou desnacionalização. Uma nova rodada ocorreu nos primeiros anos da ditadura militar. E assim por diante. Em geral, estes processos de centralização de capital resultam em maior desnacionalização da economia brasileira. Basta ver o que ocorre com os principais setores da indústria neste país. No momento ocorrem três novidades: o processo de centralização/desnacionalização atinge fortemente o capital bancário e penetra no agronegócio; mais empresas brasileiras expandem suas atividades para o exterior, especialmente nos países dependentes, reforçando a tendência a uma espécie de subimperialismo brasileiro, e algumas (pouquíssimas) fazem aquisições nos próprios países imperialistas.
 
IHU On-Line - Defensores da política de fusões sugerem que as unificações e aquisições entre empresas privadas permitem que o país tenha empresas grandes e internacionalmente competitivas. Até que ponto isso é socialmente positivo, do ponto de vista da luta de classes?
Lúcio Flávio
- Longe de corresponder a um impulso patriótico dos capitalistas, esse processo significa maiores oportunidades de acumulação de capital para as empresas que sobrevivem. Mas é importante não confundi-lo com maior bem-estar para os trabalhadores. Como temos assistido, a centralização de capitais implica redução de custos e maiores lucros para os grandes capitalistas, mas é freqüentemente acompanhada de demissões e redução do poder de barganha dos trabalhadores. Em muitos países, os trabalhadores são levados a acreditar que os estrangeiros (e não o capitalismo) são os responsáveis por essa situação, o que contribui para a xenofobia e o racismo. O ponto positivo para os trabalhadores que se disponham a lutar contra a exploração capitalista é que as relações econômicas, a começar pelas relações de produção, se transnacionalizam cada vez mais, o que produz condições objetivas para uma internacionalização das lutas anti-sistêmicas.

IHU On-Line - Dados deste ano mostram que o investimento estrangeiro direto está aumentando, assim como a competitividade interna e também diante da entrada das empresas internacionais. Por que o Brasil e suas empresas são cada vez mais atrativos para os investidores estrangeiros?
Lúcio Flávio
- Devido a uma série de razões (baixo valor da força de trabalho, inserção geopolítica, políticas cambial, tarifária e de crédito), o Brasil é um dos países que oferecem ótimas condições para investimentos externos, a começar pelos de caráter especulativo, mesmo quando voltados para empresas industriais. Não por acaso, quando sair de casa é um risco para a maioria da população brasileira, o chamado “risco Brasil”, ou seja, risco de prejuízo para que explorem a maioria do povo brasileiro, caiu. E o entreguismo festeja o tal do “investment grade”.

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