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Márcia Junges
Origens – Sou natural de Três Passos. Meu pai sempre foi vendedor, e eu sempre o admirava por isso. Vendia muito mais do que produtos, vendia ideias e sonhos. Minha mãe fez um concurso para professora, com 15 anos, escondida de meu avô, Almiro Feix, que proibia as filhas de estudar (naquela época era natural que só os homens estudassem). Mas ela teve o apoio de minha avó e acabou passando em primeiro lugar no concurso. E então o prefeito de Horizontina, que não poderia contratá-la porque só tinha 15 anos, chamou meus avós e teve uma conversinha com eles. Então ela pôde estudar e ser professora. Este ano meus pais completaram 48 anos de casados. Tenho duas irmãs, a Solange, cinco anos mais velha do que eu, pedagoga, e a Djanine, 15 anos mais nova, especialista em Direito Previdenciário.
Infância – Tenho muitas imagens da infância, mas para escolher uma, escolho a da mala preta. É uma mala que meu pai guarda até hoje, com carinho. Ela tem relação com um episódio bonito e triste, ao mesmo tempo. A casa onde vivíamos incendiou completamente. Minha mãe era professora e estava em sala de aula quando isso aconteceu. Na volta do trabalho, viu a casa em chamas. Já escurecia e ela pensou que eu e minha irmã mais velha (a mais nova não tinha nascido ainda) estávamos dentro dela. Mas justamente naquele dia, meu pai nos convidou para ir com ele a um bar próximo. Estranhamos o convite, mas o acompanhamos. Foi por esse detalhe que não estávamos dentro de casa quando houve o incêndio. Minha mãe nos viu no meio da multidão, e foi muito emocionante. Algumas pessoas se machucaram, pois houve explosões. O episódio marcou toda minha família, para sempre. Em seguida ao ocorrido, toda a comunidade se mobilizou e reconstruiu nossa casa, muito melhor e mais bonita do que era antes. Mas, antes disso, moramos um tempo sem nada, porque havíamos perdido tudo. No local que ficamos, nos fundos de um bar, o piso foi coberto com serragem, e o cheiro dela, até hoje, traz as lembranças na minha memória. Meu pai guarda até hoje uma mala preta, com todos os registros das doações que recebemos. A arrecadação se iniciou com um funcionário do Banco do Brasil, o Sadi Kern e muita gente aderiu. Em pouco mais de quatro meses tínhamos nossa casa nova. Esse exemplo que tive no início da vida me mostrou que o ser humano pode nos surpreender positivamente, e que vale a pena acreditar.
Formação – Sou advogada formada pela Unisinos. Integro uma sociedade de advogados em Porto Alegre e dou aulas na Unisinos desde 1992. Vivi na Índia por três anos, de 1998 a 2001, com meu ex-marido, que é físico, e meu filho. Fui para lá a contragosto, pois estava trabalhando e acabava o meu mestrado na PUC, e estava feliz com o escritório que recém se mudara para nova sede. Entre 2003 e 2006 fiz o doutorado em Direitos Humanos, na Unisinos, na área do multiculturalismo, pois queria trabalhar o choque cultural e o diálogo entre culturas. Sou filha desta casa, apesar de ir para lá e para cá. Meu pós-doutorado será na área de propriedade intelectual e informática (Open Access e Universal Access). Gosto de sentir que nunca parei de estudar, e espero nunca parar. O dia que eu parar algo deverá estar muito errado. E é importante buscar horizontes novos e lugares que nos desafiam, que nos fazem respirar. Além de professora do curso de Direito da Unisinos, mantenho a sociedade de advocacia em Porto Alegre. Em função de meus quase 20 anos dedicados à propriedade intelectual e publicações, sou nomeada para perícias judiciais na área de patentes, marcas, direito autoral (plágio, pirataria), não apenas no RS, mas em outros estados.
Família – Meu filho Guilherme tem 16 anos, e estuda no segundo ano do ensino médio do Colégio Farroupilha, em Porto Alegre. Organizamos nossa vida por lá, pois ele gosta do ambiente dessa escola. O Guilherme foi alfabetizado na Índia, em inglês. Assim, quando voltamos para São Leopoldo, teve certa dificuldade de adaptação. Lázaro, o pai do Guilherme, mora na China. Estamos indo visitá-lo e, na volta, ficarei na Alemanha para fazer o pós-doutorado. É um excelente pai e amigo. Na verdade, em função dos compromissos profissionais ele nunca mais conseguiu voltar para o Brasil, apesar de um período curto aqui, há 2 anos. Da Índia foi morar na Espanha, de lá foi para a China.
Vivendo na Índia - Cheguei a lecionar na faculdade de Direito de Nashik e da Universidade Amravati, na Índia, na graduação e no mestrado, na área de propriedade intelectual. Quase iniciei meu doutorado lá. Nesse período mantive uma troca de mensagens intensa por e-mail com o padre Bruno Hammes. Sem me perguntar, ele expunha esses e-mails no mural dos professores do Direito. Imagina o susto que levei quando soube. Meus colegas liam e riam à beça a respeito das coisas peculiares que eu contava da experiência indiana. Vários colegas que liam essas mensagens eu vim a conhecer só depois, quando retornei. Como tudo isso se tornou público, as coisas que escrevi viraram um livro: Índia, muito prazer, em 2003 (2ª ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2009). Mas não era só o Pe. Bruno que tornava público os textos que eu enviava, meu marido também fazia isso enviando para os colegas que eu nem conhecia, também sem eu saber, no princípio. Essas pessoas são responsáveis para que tudo virasse um livro gostoso de ler. Eu mesma rio de tudo o que houve. Na verdade, de prazer, são só as risadas dos leitores, porque para mim não era muito engraçado. Foi quase uma tragédia. Depois do problema cardíaco que tive e de ir parar no hospital (na Índia, e de onde saí completamente curada mas cheia de piolhos na cabeça), é que decidi retornar para o Brasil. Em primeiro lugar, eu não queria sair do Brasil, sempre fui apegada ao nosso país. Felizmente a vida nos ensina que o desapego é importante, em todos os sentidos, e hoje já não tenho esse medo de ir embora.
Choque cultural - Chegando à Índia, tive muita dificuldade de me adaptar. Não pela língua, não pela comida, pois tive algumas aulas de hindi e dava para se virar com o inglês, uma das 17 línguas oficiais do país. Nunca fui louca por churrasco e deu para viver sem ele. Viramos vegetarianos na marra mesmo. As tentativas de comer carne sempre resultaram em outras pequenas tragédias...
Saia justa - Lembro de uma vez em que convidei para jantar várias pessoas que conhecemos lá. Queríamos fazer uma confraternização. Em determinado momento, os convidados se separaram para comer. Foi um para cada lado. Não entendemos o que estava havendo. Acontece que quem pertence a castas diferentes não pode fazer as refeições juntos. Assim, nós ofendemos as pessoas, pois as reunimos para uma refeição sem levar em conta que pertenciam a castas distintas. Até aprendermos a lidar com isso, foi muitíssimo difícil. Noutra ocasião fui convidada para um dia na casa de uma amiga hindu, e ela passou o dia nos servindo, do nascer ao pôr do sol (!), com alimentos variados, e depois nos presenteou com peças de prata. Ao final eu precisava dizer se estava satisfeita, pois, se eu estivesse, ela receberia a bênção tão desejada de Deus. Eu disse que estava “muitíssimo satisfeita” e que ela, se dependesse de mim, seria muitíssimo abençoada. Mas afinal, queria saber o que tanto ela pedia a Deus, e ela respondeu: “Morrer antes de meu marido”. Tudo aquilo para isso. Por outro lado, os alunos nas escolas tiram os calçados para entrar na sala de aula, pois a sala é sagrada. Mas um dia os alunos ficaram boquiabertos só porque “assassinei” uma mosquinha com um enorme apagador, que pousou na lousa. Era bom morar num bairro onde havia muçulmanos, hindus e nós, cristãos. Esse diálogo multicultural era extremamente fascinante. No final das contas, minha tese trata justamente sobre o diálogo intercultural. Eu precisava teorizar essa prática, e assim escrevi Universalidade dos direitos humanos e diálogo na complexidade de um mundo multicivilizacional (Juruá, 2008).
Artes –
Desafios da docência – Observo o quanto algumas situações permitem que o melhor ou o pior de nós venha para fora. Pois espero que, como professora, venha o melhor para fora. Como professora, noto, com espanto, as peculiaridades desse ser “pós-humano”, fruto da sociedade digital. Hoje, é extremamente difícil ser professor, em especial para os primeiros semestres. Lidar com um aluno que me diz “Professora, pela primeira vez vou ler um livro inteiro” é algo absurdo. E o aluno que diz isso espera ver o professor sorrir de satisfação. Eu obviamente fico chocada. Não dá para sorrir e ficar chocada ao mesmo tempo. Preocupa-me o plágio nos trabalhos. Semana passada a OAB começou um debate solicitando a aprovação de uma lei que trate de punições para quem compra trabalhos. E vejo que há também necessidade de se punir quem vende. A figura do Ghostwriter (escritor fantasma) é folclórica, e o livro “Budapeste” de Chico Buarque é sensacional nisso. Mas o fato é que não é possível formar acadêmicos se as pessoas podem comprar teses e dissertações em 8 vezes pelo cartão de crédito. Isso é escandaloso. Acho que uma das grandes dificuldades para o professor hoje é entender que, apesar de ter estudado para lecionar determinado conteúdo, também precisa ensinar boas maneiras... e com amor. Não estou dizendo que consigo isso, mas que esse é um desafio permanente. Os alunos acham que o que a tecnologia permite é lícito e moral. Essa relação não existe. Não é porque você possui uma câmara digital que te permite tirar fotos que você pode usá-la e fazer o que quiser com as fotos das pessoas, colocando na internet, etc. Isso só para citar um exemplo entre centenas. Isso é preciso ensinar. E isso faz parte do meu trabalho.
Ser mulher hoje - As mulheres ainda são bastante discriminadas, como demonstra o relatório da ONU deste ano. O Brasil inclusive regrediu, segundo o relatório. Noto que uma mulher sempre tem que sofrer mais para alcançar seus objetivos. No Brasil não são raros os casos em que ainda precisa ser duas ou três vezes melhor do que o homem para atingir a mesma posição que ele ocupa. E se você for uma mulher negra, é ainda mais difícil: é preciso ser quatro, cinco vezes melhor do que um homem. Essa é a nossa realidade. É muito grave e jurássica. Vejo que ainda temos um longo caminho nesse sentido. Na política o Brasil tem dado bons exemplos. A peculiaridade de gênero não pode dificultar o gerenciamento, pelo contrário, a sensibilidade não é um privilégio feminino ou masculino, nem mesmo a ética, a força de vontade, a inteligência, o talento ou a coragem. O Brasil está caminhando mais lentamente nesse sentido do que alguns países, e não precisaria ser assim.
Religião – Sou feliz na minha relação com Deus. É uma relação tumultuada, de desafio permanente, e sei que não é fácil para Ele. Aprendi o que significa “temer a Deus” de um modo muito especial, e isso me permite ter muita coragem e aceitar muitos desafios. Você não precisa temer mais nada, se teme a Deus, mas esse temor é algo que só a experiência de Deus pode explicar. Antes de ir para a Índia, tive uma experiência religiosa forte. Recebi um atendimento fantástico e fiz a experiência do retiro espiritual, algo importante e que me preparou para aquela fase no Oriente. Acabei percebendo que o jesuíta tem muito de budismo, é extremamente aberto para o diálogo religioso e o que importa é estar com Deus, e não o caminho que se encontra para (re-ligar/reli-gião) com Deus. O caminho depende de cada um. Para você aquele pode ser melhor, para mim, este. Isso permitiu que eu não me deslumbrasse com a religião na Índia, pois eu já tinha motivos suficientes para me deslumbrar com Deus. Faço meditação para tentar sempre ouvir melhor, e também para dominar o tempo, que nos atropela inexoravelmente. É difícil explicar isso, mas é a resposta para a seguinte questão: “Como é possível experimentar a eternidade se ainda estamos vivos”? Essa pergunta eu tive que responder e respondi. Talvez um dia eu publique algo que escrevi sobre isso. Mas é uma experiência pessoal, cada um tem a sua. Por muito tempo lamentava ir e sair do retiro, pois a paz que se encontra é fantástica. Hoje sei que não é preciso sair nem ir a lugar algum. Todas as respostas estão dentro de nós, um templo muito particular, que sempre nos acompanha, se desejarmos.
Instituto Humanitas Unisinos – Acompanho a revista. O IHU em si é fundamental na Unisinos. Penso que é o coração da universidade. É um local que ajuda a refletir temas de fronteira. Presta os mais diversos auxílios e representa, como vejo, uma sala de entrada para os ingressantes e um braço estendido à comunidade.
Unisinos – Desde 1992, quando fui contratada, muita coisa mudou na universidade. De certa forma sinto-me parte da transformação da Unisinos. Vários redemoinhos passaram por aqui. O fantasma da mercantilização do ensino é um deles, e a Unisinos tem uma posição clara, que é apostar na excelência e qualidade do ensino. Mas esse não é o maior desafio da instituição hoje. O maior desafio é de gestão. O maior desafio mesmo é a própria gestão em si, de hoje, que precisa conviver com teorias contemporâneas da amoralidade maquiavélica, do sucesso do empreendedorismo e da inovação. Livros sobre como aumentar o poder nas organizações são lidos avidamente, é a moda da autoajuda nos negócios, que parte do ponto de vista que a justiça não existe, e que o poder segue nas mãos dos que são simplesmente hábeis politicamente. Enquanto isso os valores jesuítas não convivem bem com o poder, pelo contrário. O jesuíta fala em servir. Servo de Deus. Veja que não é fácil hoje em dia administrar uma universidade que preza a excelência. A famosa oração de Santo Inácio é uma das coisas mais difíceis que eu já vi de se praticar. A mais difícil. Mas eu acredito plenamente que é justamente por conhecer o valor de servir que a Unisinos é capaz de sempre se renovar e encontrar saídas para os problemas. A Unisinos serve de grande exemplo de competência em meio à crise, conseguiu sempre se renovar em meio a grandes crises. E agora conseguimos uma deferência importante pelo MEC, que valorizou as conquistas dos cursos. É a excelência vencendo o pragmatismo puro. Todos nós ganhamos com isso, todos aprendemos com isso, o que é muito motivador.