Edição 348 | 25 Outubro 2010

Avanços e retrocessos da legislação indigenista

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Patricia Fachin e Márcia Junges

 

IHU On-Line - Como se deu o processo de demarcação estatal das terras indígenas no Brasil? Que aspectos favoreceram tal demarcação em detrimento de outro modelo?

Thais Luiza Colaço - Quanto ao processo de demarcação estatal das terras indígenas, a Constituição de 1988 vai determinar que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios tornam-se bens da União, competindo a esta “demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Sendo consideradas “por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais a seu bem-estar e às necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. São garantidos a sua posse permanente e o usufruto de suas riquezas naturais, tornando “nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse” dessas terras. Tornando-se um direito originário (anterior à lei), imprescritível, inalienável e indisponível. As terras indígenas demarcadas são de propriedade da União, mas de posse permanente das comunidades indígenas.

IHU On-Line – Quais foram os efeitos da proclamação da independência do Brasil em 1822, para as comunidades indígenas?

Thais Luiza Colaço - Com a proclamação da independência do Brasil em 1822, sob a influência dos ideais liberais, sentiu-se a necessidade de estabelecer uma política indigenista, pregando-se o término da escravidão e o surgimento de uma nova “raça brasileira”, por meio da integração e da miscigenação. Mas, de fato, pouca coisa mudou. A Constituição de 1824 nem sequer mencionava a existência de índios no território brasileiro, muito menos propunha regular as relações conflituosas entre os índios e os não-índios. Em 1831 foi revogada a Carta Régia que declarava a guerra oficial aos indígenas e à sua escravização.
Com o enfraquecimento do poder central, a partir de 1834, as províncias passam a ter uma certa independência e a tomar iniciativas próprias anti-indígenas. Sendo assim, em 1845, a única norma indigenista geral do governo imperial era o Regulamento das Missões, extremamente detalhado, representando mais um documento administrativo do que um plano político. Esse regulamento tentou oferecer uma certa proteção às populações indígenas, diminuindo a ação armada do Estado, promovendo a integração por meio da descaracterização cultural. Mas o objetivo principal era acabar com os conflitos nas áreas de expansão da sociedade não-índia, retirando os indígenas das terras e concentrando-os em aldeias.

A situação agravou-se com o incentivo da colonização europeia. A Lei de Terras de 1850 trouxe uma nova concepção da propriedade da terra, acessível apenas pela compra e pela aquisição do título de propriedade, e não mais pela posse. Assim, os indígenas foram expropriados de suas terras, que foram ocupadas paulatinamente por colonos e pelas frentes pioneiras extrativas e agropastoris. Em algumas localidades as populações indígenas foram eliminadas ou afugentadas, e em outras foram aproveitadas como mão de obra.

IHU On-Line - Qual é a novidade da Constituição de 1988 em relação às outras leis que dizem respeito ao índio?

Thais Luiza Colaço - A novidade da Constituição de 1988 é que, pela primeira vez numa constituição, se estabelece novos elementos jurídicos para fundamentar as relações entre os índios e os não-índios e garantir a manutenção de seus direitos diante da sociedade nacional.

Uma das novidades é que se acabaram as perspectivas assimilacionistas e integracionistas das constituições anteriores: o índio adquire o direito à alteridade, isto é, respeita-se a sua especifi¬cidade étnico-cultural, garantindo-lhe o direito de ser e de permanecer índio. Assim, “não é mais o índio que necessita entender e incorporar-se à sociedade brasileira, mas, sim, esta deve buscar entender os valores e concepções étnico-culturais de cada povo indígena localizado no Estado brasileiro”.

A Constituição reconhece “aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, cabendo ao Estado garantir “o pleno exercício dos direitos culturais”, protegendo “as manifestações das culturas populares, indígenas” e outras. Ainda faz menção ao direito do ensino fundamental regular diferenciado, que deverá ser “ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”, trazendo, desta forma, uma valorização cultural, incentivando a aprendizagem das línguas nativas

Direito às terras, um direito originário

Com relação às terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, também há inovações, passando a ser reconhecido o direito às terras como um direito originário, inalienável, indisponível e imprescritível.
Fica determinado que cabe ao Congresso Nacional a autorização para o “aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas”, após prévia audiência com as comunidades envolvidas, sendo assegurada a elas a participação nos resultados da exploração.

Proíbem-se as remoções de grupos indígenas de suas terras, exceto em situações de risco, como, por exemplo, em epidemias e catástrofes, porém com o consentimento prévio do Congresso Nacio¬nal, devendo essas populações retornarem às suas terras de origem tão logo cesse o perigo.

Foram reconhecidas a legitimidade processual dos índios, suas comunidades e organizações para, juntamente com o Ministério Público, ingressarem em juízo em defesa de seus direitos e interesses.
A Assembleia Constituinte evitou a utilização do termo “povos” para referir-se às nações indígenas, preferiu “comunidades indígenas”, “grupos indígenas”, “índios”, “populações indígenas” e “organizações indígenas”. A expressão “povos” no plural aparece apenas para tratar do Estado no âmbito internacional, utilizando a autodeterminação dos povos” e a “cooperação entre povos para o progresso da humanidade”. Não reconhecendo nos moldes do direito internacional o direito à autodeterminação.

Apesar de estarem garantidos os “novos” direitos indígenas na Carta Constitucional de 1988, eles apenas serão efetivados com a sua prática. Para isso, é necessária a criação de uma legislação complementar regulamentando os diversos dispositivos constitucionais que regem a matéria.

IHU On-Line - Que avaliação faz das leis formuladas ao longo da história no que se refere aos indígenas? Quais são os avanços na legislação indigenista no decorrer dos séculos?

Thais Luiza Colaço - Desde a ocupação do Brasil pelos portugueses, houve o interesse em normatizar as relações entre os índios e os não-índios e de legitimar a exploração da mão de obra e a usurpação das suas terras e riquezas.

Os antigos direitos raramente beneficiavam aos índios. A política indigenista no Brasil Colônia e Império alternava entre os interesses da Igreja e os dos colonos, às vezes pregando métodos “suaves” de “civilização” por meio da cristianização, às vezes pregando métodos violentos de exploração e de extermínio.

As leis de proibição da escravidão indígena a partir de 1755 incentivaram o aparecimento da figura da tutela orfanológica. Posteriormente surge a tutela especial por meio do Serviço de Proteção aos Índios – SPI em 1910 e da Funai em 1967. Com o Código Civil de 1916, o regime tutelar se mantém, porém com outras características, classificando o indígena de relativamente incapaz.
A maioria das constituições brasileiras quando se referia aos índios, basicamente preocupava-se com a sua “civilização” e catequese, com a sua integração à comunidade nacional, com uma garantia limitada da posse de suas terras e de usufruto das riquezas naturais.

Em 1973, implantou-se uma legislação indígena mais avançada, o chamado Estatuto do Índio, mas que ainda se encontrava impregnado do caráter integracionista, que apostava na assimilação do índio à sociedade brasileira, deixando a partir daí de ser índio e perdendo os direitos inerentes a essa condição.

Diversidade étnico-cultural

Ainda hoje existe dificuldade em definir o que é ser índio, e os povos indígenas são tratados indistintamente como iguais apesar de sua diversidade étnico-cultural. Com o advento da Constituição de 1988, põe-se termo à política integracionista e assimilacionista, os índios passam a ter o direito de ver respeitada a sua diversidade étnico-cultural e de se auto-organizar. Ampliam-se os direitos referentes às terras tradicionalmente ocupadas e à utilização de suas riquezas naturais, cabendo à União mantê-las e demarcá-las. Proíbe-se a remoção de grupos indígenas de suas terras e fica reconhecida a legitimidade processual dos índios.¬
Todos estes dispositivos constitucionais deverão ser regulamentados em legislação específica, já existindo desde 1991 um projeto de lei chamado Estatuto das Sociedades Indígenas, mas que ainda não foi aprovado. Ainda temos em âmbito internacional favoráveis aos “novos” direitos indígenas a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas da ONU e as novas constituições plurinacionais latino-americanas.

Averiguou-se a dificuldade de se garantir o direito à auto-organização e à diversidade cultural dos povos diante do Estado, que só aceita a existência de uma cultura nacional e prega a igualdade de direitos para todos, independentemente de suas diferenças. Observa-se que a legislação indígena, mesmo alcançando avanços durante os séculos de ocupação europeia, é retrógrada na sua aplicação, porque ainda interferem e prevalecem interesses alheios à causa indígena e o cotidiano desses povos está muito distante da efetiva garantia de seus direitos constitucionais.

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