Edição 348 | 25 Outubro 2010

Missões jesuíticas no Maranhão e Grão-Pará

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Patricia Fachin

De acordo com o pesquisador Karl-Heinz Arenz, o método utilizado pelos jesuítas nas missões foi o da aculturação, um fenômeno sociocultural que aceita e promove a superposição de elementos culturais de origens diferentes

“O que caracteriza os jesuítas dos séculos XVI a XVIII é a sua contribuição à teologia e à antropologia, no sentido de ‘enquadrar’ os diferentes povos americanos, asiáticos e africanos até agora ‘desconhecidos’ na cosmovisão euro-cristã.” A definição é de Karl-Heinz Arenz, em entrevista à IHU On-Line, por e-mail. Segundo ele, os inacianos conceberam conceitos novos e reinterpretaram os velhos, “abrindo assim o caminho para uma justificação bem ampla da atividade missionário-catequética junto aos ‘povos gentios’, inclusive os índios das missões”. No campo filosófico-jurídico, Arenz destaca que os jesuítas utilizaram o conceito de “soberania dos povos e da liberdade sob tutela”, ou seja, “todos os povos tinham uma noção de sua pertença a uma sociedade e possuíam um tipo peculiar de organização”. Nas missões, enfatiza, o objetivo era, “sem dúvida alguma, o da evangelização”. Os indígenas não precisavam abandonar seu modo de vida, apenas deviam se sujeitar a um “soberano católico”, integrar-se à cristandade.

Pesquisador da realidade missioneira no estado do Maranhão e Grão-Pará, Karl-Heinz Arenz conta, na entrevista a seguir, como se deu o processo missioneiro na Amazônia e os motivos que levaram ao sucesso e insucesso do projeto missioneiro na região.

Arenz participa do XII Simpósio IHU – A experiência missioneira: território, cultura e identidade, às 14h, em mesa-redonda, que discutirá Modelos e estratégias missionárias
Karl-Heinz Arenz possui graduação e mestrado em Teologia pela Faculdade Filosófico-Teológica de Sankt Augustin, Alemanha. Tem doutorado em Teologia Dogmática com concentração em Missiologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, São Paulo-SP. Também cursou mestrado em História Moderna e Contemporânea com concentração em História do Brasil e do Atlântico Sul pela Universidade Paris IV (Paris-Sorbonne), França. Doutorou-se em História Moderna e Contemporânea com concentração em História do Brasil e do Atlântico Sul pela mesma instituição francesa. Atualmente, é professor na Universidade Federal do Pará, em Belém.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como a historiografia aborda o sucesso do século jesuítico (1653-1759) no estado do Maranhão e Grão-Pará?

Karl-Heinz Arenz - Há basicamente quatro tendências. A primeira, de caráter apologético, destaca a contribuição “civilizatória” da Companhia de Jesus num processo chamado de “desbravamento” da Amazônia. Não é de se admirar que o maior expoente dela seja um jesuíta, o Pe. Serafim Leite , além de diversos historiadores regionais. A segunda foi marcada pelo forte antijesuitismo do século XIX e tende a destacar uma suposta política “interesseira” dos inacianos, no sentido de eles terem visado ao próprio enriquecimento em detrimento do bem comum da colônia. A terceira, mais recente, parte de uma interpretação marxista. Nesta perspectiva, ela divide a presença jesuítica em uma fase inicial dita “profética” – por causa do engajamento em favor da “liberdade dos índios” – e um período posterior que é chamado de “empresarial” e tido como uma traição dos primeiros ideais. Atualmente, vê-se uma forte tendência de fazer uma leitura a partir da Lebenswelt daquele tempo marcado profundamente pela cultura barroca e a filosofia humanista da modernidade. Por conseguinte, há um intuito de deixar “falar” os documentos e as fontes da época.

IHU On-Line - Qual a relação das missões do Paraguai com outras experiências missionárias, especialmente as do Brasil?

Karl-Heinz Arenz - Primeiramente, a experiência dos aldeamentos não foi algo específico do Paraguai, embora este país – ou melhor, a área das missões subsumidas sob este nome – seja, de certa forma, o “remanescente” mais famoso e conhecido dela. Nos séculos XVI a XVIII, temos as missões dos Chiquitos (na Bolívia), dos Mojos e de Mayna (no Peru), no México (inclusive Califórnia), no Canadá e até no Chile. No que se refere ao Brasil, nós temos duas experiências bem distintas: a do Estado do Brasil onde o modelo das missões entrou em crise no final do século XVI e a do Estado do Maranhão e Grão-Pará (a Amazônia) onde o sistema começou tardiamente em meio de uma situação conflituosa, em meados do século XVII. Dentro de todas estas experiências, as missões do Paraguai chamam a atenção por causa de sua relativa longevidade num espaço relativamente afastado dos centros de decisão. Cobrindo uma área fronteiriça – de grande permeabilidade – e abrangendo povos indígenas de afinidade cultural (guarani), as reduções se tornaram um fator econômico, sociopolítico e cultural fundamental numa região cuja “integração” só foi reivindicada – por Espanha e Portugal – a partir de meados do século XVIII.

IHU On-Line - O que levou os jesuítas a optarem pelo sistema reducional?

Karl-Heinz Arenz - O sistema reducional remonta às primícias da ocupação ibérica nas Américas. As primeiras missões foram fundadas no início do século XVI no Caribe por frades franciscanos e dominicanos. Interessante é a opinião de Bartolomeu de Las Casas . Ele propôs, num primeiro momento, aldeias missionárias mistas, isto é, centros de catequização e produção onde casais europeus e indígenas viveriam juntos sob os cuidados de padres. Ao ver a inviabilidade deste propósito, ele optou pelo sistema de reduções bem afastadas dos centros habitacionais dos colonos. Os jesuítas, que chegaram meio século depois às Américas, viram a utilidade deste modelo, o adotaram e o aperfeiçoaram mediante regulamentos internos e leis favoráveis.

IHU On-Line - Quais os objetivos dos jesuítas nas reduções? Eram somente religiosos e humanitários, ou também políticos?

Karl-Heinz Arenz - O primeiro objetivo foi, sem dúvida alguma, o da evangelização. Para garanti-la, é verdade que os jesuítas usaram, sobretudo, de sua influência junto às cortes europeias onde eles atuaram como preceptores de príncipes, confessores de rainhas e, sobretudo, conselheiros de reis. Eles conseguiram, assim, leis favoráveis e isenções consideráveis para sua causa, geralmente dentro do sistema do padroado. Porém, aquilo que nós chamamos hoje de “civilizar” não constou como objetivo. O primeiro documento colonial que emprega esta palavra é do Diretório dos Índios de 1757, cuja introdução na Amazônia Portuguesa constituiu uma das medidas que antecederam à expulsão dos jesuítas dois anos mais tarde. Naquela época, o índio podia e devia continuar índio, só queria obter-se a sua cristianização e a sua sujeição a um soberano católico, isto é, sua integração à cristandade. Para isso, ele não se precisava vestir como um europeu ou falar português. Ao contrário, foram os missionários que aprenderam as línguas indígenas. O fato de a catequese ter sido realizada dentro do moldes do barroco ibérico – ela foi geralmente superficial e formal –, muitos elementos “europeus” acabaram entrando na visão do mundo dos índios. Aliás, o surgimento de culturas sincréticas ou “mestiças”, que conseguiram essencialmente guardar a sua matriz indígena no interior das missões, remonta às dinâmicas sociais espontâneas que escaparam do controle dos missionários. Muitas vezes, o próprio religioso se “indianizou” (assumindo língua, comida, remédios índias) mais, do que o índio se “europeizou”. Neste sentido é bom lembrar que o método usado pelos jesuítas foi o da aculturação, um fenômeno sociocultural que aceita e promove a superposição – certamente assimétrica e muitas vezes controlada – de elementos culturais de origens diferentes. Esta prática criou uma grande polêmica entre jesuítas e outros religiosos nas Missões do Oriente (China e Índia), onde os inacianos integraram o culto chinês aos antepassados no ritual católico , ou onde eles imitaram a vida ascética dos monges hindus.


 

IHU On-Line - Quais os fundamentos ético-morais e filosófico-jurídicos das missões?

Karl-Heinz Arenz - O que caracteriza os jesuítas dos séculos XVI a XVIII é a sua contribuição à teologia e à antropologia, no sentido de “enquadrar” os diferentes povos americanos, asiáticos e africanos até agora “desconhecidos” na cosmovisão euro-cristã. Assim, os inacianos conceberam conceitos novos ou reinterpretaram velhos. Do lado teológico-ético podemos destacar a “teologia da graça”, que parte da universalidade da salvação e da incondicionalidade da graça, abrindo, assim, o caminho para uma justificação bem ampla da atividade missionário-catequética junto aos “povos gentios”, inclusive os índios das missões. Do lado filosófico-jurídico, os jesuítas trabalharam com o conceito da “soberania dos povos” e da “liberdade sob tutela”. A argumentação partiu da ideia de que todos os povos tinham uma noção de sua pertença a uma sociedade e possuíam um tipo peculiar de organização. Em princípio, nenhum grupo precisava abrir mão disso, somente se exigiu a sua sujeição a um soberano católico, isto é, o rei espanhol ou português. Os índios foram, desde a bula papal Sublimis Deus de 1537 considerados como, em princípio, livres e aptos para a fé católica. Com base nisso, os jesuítas se esforçaram no sentido de estabelecer sobre eles uma tutela, argumentado que, mesmo livres, os indígenas seriam como crianças e precisariam de ser orientados na vivência da fé e no uso da razão. É bom lembrar que os jesuítas não questionaram a instituição da escravidão em si e admitiram existir certas condições que justificavam uma escravização legítima.

IHU On-Line - Em seus estudos, o senhor menciona uma crise interna que afetou a missão do Maranhão entre 1661 e 1693. Quais as razões dessa crise?

Karl-Heinz Arenz - A crise foi, primeiramente, “global”, isto é, ela afetou todo o mundo colonial de então. As origens estão nas consequências da importação maciça do metal sul-americano para a Espanha, o que causou uma inflação – fenômeno então desconhecido. Além disso, a concorrência cada vez mais acirrada de outras nações europeias no cenário colonial – sobretudo a Holanda, a Inglaterra e a França – levou à rearticulação de rotas, à abertura de novas plantações e, por conseguinte, à variação dos preços de certos produtos. A produção açucareira no Nordeste brasileiro perdeu sua importância devido ao grande rendimento da cana-de-açúcar nas Antilhas Inglesas, Holandesas ou Francesas. No que diz respeito à Amazônia, esta colônia revelou ser pouco rentável, prestando essencialmente para o extrativismo florestal (óleos vegetais, plantas medicinais e aromáticas). Para chegar a estas “drogas do sertão”, se precisava dos Índios, conhecedores da mata. Os jesuítas denunciaram os constantes abusos contra os indígenas que foram requisitados para remar e fazer a colheita, sendo que as famílias foram tidas reféns para evitar fugas ou boicotes. Vieira  conseguiu reverter o quadro, no sentido de implantar uma lei que regulamentava o cativeiro dos índios e fez dos padres os tutores deles. O desespero dos colonos desembocou em dois levantes, em 1661 e 1684, contra a Companhia de Jesus. Querelas na metrópole, no reinado de D. Afonso VI (1662-1667), tido como desequilibrado, enfraqueceram a influência dos jesuítas na corte, sendo que eles perderam o monopólio sobre os índios. Todos estes fatores contribuíram para que as missões entrassem em decadência e o grupo dos missionários ficasse muito reduzido e internamente dividido.

IHU On-Line Quais os motivos da reputação negativa da Missão do Maranhão entre os próprios jesuítas?

Karl-Heinz Arenz - Há principalmente duas explicações. Uma primeira se refere ao ambiente amazônico habitado por povos considerados como “brutos” e “inconstantes” e dotado de uma natureza extremamente perigosa. De fato, os naufrágios e as doenças constituíram os maiores problemas. A segunda explicação está ligada à visão interna dos jesuítas. A Missão do Maranhão teve muitos “coadjutores” (isto é, jesuítas que só tiveram os três votos simples, muitos sendo irmãos leigos) e poucos “professos” (ou padres que já emitiram os quatro votos). Este dado foi interpretado no sentido de uma ausência de um clima intelectual e espiritual à altura das outras províncias. Além do mais, a Missão foi vista como um perigo para a castidade devido a um suposto comportamento sexual desordenado dos índios e das índias.

IHU On-Line - Qual a influência de Pe. Antonio Vieira nas reduções do Maranhão e Grão-Pará?

Karl-Heinz Arenz - O Padre Antônio Vieira merece ser chamado o “refundador” da Missão do Maranhão. Ele assumiu, em 1653, o cargo de superior de uma missão praticamente inexistente, haja vista que o fundador, Padre Luís Figueira, pereceu em 1643. Vieira articulou logo uma política ambiciosa de expansão da rede das missões, de aumento do grupo de missionários e de garantias legais bem claras com respeito à posição dos jesuítas enquanto tutores dos índios. Fica, porém, a questão se ele estava consciente da precariedade da Missão em si e da inviabilidade de suas ideias em meio a um ambiente altamente conflituoso e num espaço não ocupado. Sua intransigência frente aos colonos causou, em grande parte, a insurreição de 1661 e a sua expulsão no mesmo ano. Mas ele continuou, até a sua morte, muito interessado na Missão.

IHU On-Line - Por que as missões do Maranhão, sob os cuidados da Companhia de Jesus, foram consideradas as mais difíceis e desafiadoras?

Karl-Heinz Arenz - Primeiro, os povos indígenas foram consideradas como “bárbaros e rudes”, e, sobretudo, “inconstantes”. Esta última categorização remonta o Pe. Manuel da Nóbrega que se queixou que os indígenas se convertem logo e sem maiores esforços, mas que depois eles continuam praticando os seus velhos rituais. Nóbrega não entendeu o quanto as culturas indígenas são inclusivas, isto é, aquilo que vem de fora é considerado como complementar ou enriquecedor e não necessariamente como antagônico. Fazer uma coisa, sem deixar a outra – eis a lógica de muitos índios. Além disso, a natureza exuberante com seus perigos inerentes, como acidentes ou doenças, não contribuiu a tornar a Missão muito atraente. Um terceiro fator significativo que manteve os jovens jesuítas à distância eram as “poucas chances de sofrer o martírio”. Este foi visto como o ato sublime da vida missionária dentro da concepção barroca e, como tal, foi sistematicamente incentivado nos colégios e universidades. De fato, a pouca resistência dos indígenas contra a pregação da fé diminuiu muito as chances de morrer mártir.

IHU On-Line - Que aspectos diferenciam as missões orientais e ocidentais? Nesse sentido, que comparações os missionários faziam entre ambas?

Karl-Heinz Arenz - As Missões do Oriente tornaram-se, desde a partida de Francisco Xavier para Goa em 1542, as preferidas dos jesuítas. A este apego emocional às primeiras missões se junta à suposta superioridade dos povos na Índia, China e Japão. O fato de eles disporem de uma escrita, literatura, filosofia, religiões com um clero hierarquizado e estruturas imperiais eficientes só aumentou a popularidade destas regiões junto aos jovens jesuítas. De fato, influenciados pela leitura das cartas e dos relatos de missionários do Oriente nos refeitórios dos colégios, muitos pediram, ainda estudantes, para serem enviados para a Ásia. Já as Missões do Ocidente, isto é, as das Américas, sofreram as consequências da fama de serem habitadas por pessoas rudes com um nível cultural supostamente baixo. Esta distinção entre as duas Missões se deve, em grande parte, ao Pe. José de Acosta, que, em 1588, publicou uma classificação dos povos não-europeus. Ele aplicou o critério da complexidade cultural como fator decisivo para a capacidade de acolher o Evangelho e, por conseguinte, para o sucesso do missionário. Se indianos, chineses e japoneses se encontram na primeira categoria, os índios dos planaltos, isto é, incas e astecas, estão na segunda. Já os povos das planícies – para Acosta, os africanos e os ameríndios da zona tropical –, eles se viram relegados à terceira e última categoria.

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