Edição 348 | 25 Outubro 2010

Reduções jesuíticas: um projeto político e evangelizador

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Patrícia Fachin

Segundo Adone Agnolin, os inacianos se tornaram instrumentos da política de desenvolvimento da Colônia, servindo aos interesses da Coroa Portuguesa

Na ideologia imperial da Espanha e de Portugal, a “missão religiosa não se distinguia daquela política (...). Essas duas perspectivas ofereceram-se, conjuntamente enquanto fundamento do projeto de monarquia universal”, menciona Adone Agnolin, em entrevista à IHU On-Line, por e-mail. Segundo ele, o “‘encontro catequético’ que se realiza, no século XVI, junto às comunidades indígenas mostra como, além de prepará-lo, realiza no encontro a abertura de uma série de convergências de horizontes simbólicos que se produzem enquanto construções históricas decorrentes do impacto colonial”.
Na entrevista que segue, Agnolin ressalta que o objetivo evangelizador se constituiu, também, “enquanto base de um projeto propriamente colonial (...) e se tornou fundamento de um entusiástico projeto missionário que via no bom selvagem a imagem de uma inocência que apontava para a possibilidade de fecundar sua alma virgem”. Na base do processo de catequização, observa, “impunha-se o trabalho enquanto instrumento de civilização”. Nesse sentido, avalia, “o processo (civilizador, antes que missionário) de redução manifesta, portanto, o domínio político enquanto policiamento endereçado a modificar os (excessos dos) costumes indígenas: processo de ‘mediação concreta’, sucessiva e, depois, paralela e complementar à linguagem religiosa enquanto área privilegiada da ‘mediação simbólica’ entre diferentes culturas”.
Adone Agnolin participará do XII Simpósio Internacional IhU – A experiência missioneira: território, cultura e identidade, com a conferência Adaptação dos catecismos à realidade missional, na manhã do dia 28-10-2010, às 9h, no Auditório Central.

Agnolin é graduado em Filosofia pela Università degli Studi di Padova, Itália, onde realizou, também, especialização em História das Religiões. É doutor em Sociologia e pós-doutor em História Social pela Universidade de São Paulo - USP. Desde 2003 é professor em História Moderna na Universidade de São Paulo e, atualmente, integra o Projeto Temático “Dimensões do Império Português”, junto ao Departamento de História: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Cátedra “Jaime Cortesão”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como se deu a atuação missioneira junto aos indígenas nos séculos XVI e XVII, no âmbito do Império português?

Adone Agnolin - Esta pergunta inicial resulta bastante ampla pela complexidade dos problemas que envolve: problemas políticos, religiosos, culturais. Ao mesmo tempo, todavia, na sua generalidade, ela nos permite delimitar devidamente a perspectiva a partir da qual, em nosso estudo, enfrentamos a questão. Nos termos da “política religiosa” da época, preocupada em incentivar, mas também em controlar, o processo de expansão das monarquias ibéricas, a atuação missionária no âmbito do Império português se desenvolvia sob a égide da instituição do Padroado que, de fato, devia realizar a unidade da dimensão político-administrativa com aquela religiosa. Mas, evidentemente, a distância atlântica das colônias portuguesas, a complexidade de situações nas novas terras americanas (bem diferenciada, inclusive, ao longo dos dois séculos), e, enfim, os diferentes âmbitos da ação missionária – da realidade dos colégios nas sés metropolitanas à atuação junto às populações portuguesas locais ou, no contexto propriamente indígena, àquela junto às reduções (decorrentes dos “descimentos” indígenas) ou às missões itinerantes – acabaram condicionando profunda e diferentemente esta atuação de um sonho imperial. Na diversidade desses contextos e ao longo do período histórico em questão, portanto, esta atuação missionária encontra bem diferentes soluções históricas e estruturais: de um lado, geralmente, orientadas pelas estruturas do Império português e da Igreja romana, mas, sobretudo, mais proximamente à realidade local indígena, historicamente condicionada pelas concretas experiências catequéticas missionárias e pelas “respostas”, nem sempre concretamente imagináveis, que essas encontravam no mundo indígena relido em termos de um novo “catecumenato”.

IHU On-Line - O senhor diz que desde os primórdios de sua constituição, o cristianismo determinou um nexo íntimo entre as coisas da fé e a vida política. Como, a partir desse pensamento, outras culturas foram ajustadas? Como se dá, a partir disso, a relação entre fé e política para as culturas ocidentais?

Adone Agnolin - Para responder a essa pergunta, precisamos ficar atentos ao fato (histórico) do “fideísmo ” cristão que tem marcado toda a cultura ocidental. É somente verificando a contingência histórica e a necessidade teórica que tornaram fundamental para o cristianismo a profissão de fé que podemos entender, também, a ideologia imperial ibérica. E isto porque o Império remete ao modelo romano, no interior do qual, com o afirmar-se do cristianismo, o ato de fé numa realidade ultramundana vinha se propondo enquanto superação do condicionamento mundano da nacionalidade ou, genericamente, do nascimento. Nesta direção, o cristianismo se propunha enquanto uma outra modalidade do Império que, em termos cristãos, superava a dimensão étnica, não tanto em termos civis (de uma civitas romana), mas em termos transcendentes (uma civitas Dei) – que nós identificamos enquanto dimensão religiosa. Para o novo cristão, a superação de sua dimensão étnica era obtida através de um (simples) ato de fé no Reino dos Céus que, além disso, em vida, podia ser somente esperado e não experimentado. No entanto, de experimentável havia o Império romano, isto é, o único modelo histórico da realidade meta-histórica, defrontada pelos cristãos em chave de universalidade: por meio dele superava-se o condicionamento étnico através da distribuição da civitas Romana às pessoas de qualquer raça. Com o cristianismo, portanto, tornar-se súdito do Reino dos Céus significava subverter idealmente os reinos terrestres: historicamente, significou subverter o Império romano, o próprio modelo da universalidade; e contra os “subversivos”, súditos do Rei dos Céus, o Império romano procedeu em termos de lei. A subversão tornou-se martírio, testemunha: uma testemunha constituída, também, em termos de lei, tanto que a fé testemunhada tornou-se lei, por sua vez, quando o Império romano se transformou em Império cristão, um império no qual caia-se na ilegalidade se não “se acreditasse” ou não se acreditasse da justa forma. A alternativa do crer tornava-se perigosa e, de qualquer forma, ilegal.
É nessa direção, como bem analisou Anthony Pagden , que a extensão da cristandade continuou, sucessivamente, circunscrita ao território que teria sido ocupado pelo Império romano. Segundo os termos do autor: “O orbis terrarum se converteu, assim, através da variação efetuada por Leão o Grande  no século V, no ‘orbis Christianus’, que por sua vez se transformou de imediato no ‘Imperium Christianum’. Um século depois, Gregório o Grande  o traduziria por a ‘sancta respublica’, uma comunidade dotada da mesma exclusividade simultaneamente aberta que havia caracterizado a ‘respublica totius orbis’ de Cícero ”. Mesmo que, a partir dessa perspectiva e nos termos do direito natural, todos os homens, fossem eles pagãos ou cristãos, tivessem idênticos direitos políticos “os não-cristãos, pagãos, que também eram barbari, deviam ser animados para juntar-se à ‘congregatio fidelium’, da mesma forma em que haviam sido impulsionados os ‘bárbaros’ a integrar-se à civitas romana”.

IHU On-Line - Quais são as bases históricas da ideologia imperial da Espanha e de Portugal que implementam os pressupostos dos projetos evangelizadores?

Adone Agnolin - Aquelas acima apontadas são as bases históricas da ideologia imperial a partir das quais se constituíram os pressupostos fundamentais de um projeto evangelizador como base da ideologia imperial ibérica. É preciso entendê-las no interior desta formação histórica para poder levar em consideração o projeto catequético (evangelizador), implícito nesta ideologia, enquanto elemento de coesão (ideológica) fundamental dos respectivos projetos imperiais. E esta coesão era garantida, fundamentalmente, pela “fé na fé”, segundo a expressão sugerida por Dario Sabbatucci  (conforme a obra de minha autoria Jesuítas e Selvagens: a Negociação da Fé no encontro catequético-ritual americano-tupi - séc. XVI-XVII. São Paulo: Humanitas/FAPESP, 2007, parte III, cap. 1: A Fé como Fato Histórico: entre a “Civitas” do Império e a Catequese Cristã). Lá observávamos como, dessa herança cultural, do Império romano resultou o instituto da Monarchia Universalis. Esta, segundo Anthony Pagden, com o antigo sonho dos imperadores cristãos, “transformou a ambição pagã de civilizar o mundo no objetivo análogo de converter literalmente todos seus habitantes ao cristianismo. O único sistema legal unificador (o koinos nomos) se converteu, dessa forma, num único sistema de crenças. A enorme influência que teve a noção estoica de lei nas reformulações realizadas pelos Padres da Igreja, de Santo Agostinho a São Tomás, assegurou um alto grau de continuidade teórica entre os impérios pagão e cristão e a convicção (...) de que a conversão não podia alcançar-se de forma plena ou adequada sem uma correspondente transformação política e cultural”.


 

IHU On-Line - Em que consistia o projeto imperial e evangelizador? Qual é o reflexo desse projeto do século XVI nas missões, no processo de catequização dos indígenas?

Adone Agnolin - No interior do percurso histórico apontado, ressemantizado com suas especificidades no contexto ibérico, se insere a ideologia imperial da Espanha e de Portugal, dentro da qual a missão “religiosa” não se distinguia daquela “política” (a ideologia que estruturava a instituição do Padroado): essas duas perspectivas ofereceram-se, conjuntamente, enquanto fundamento do projeto de monarquia universal. A extensão da universalidade do imperium constituiu-se, portanto, na imposição paralela de “civilizar” o mundo, segundo o modelo da civitas romana, e de “converter” seus habitantes, segundo o modelo do cristianismo. Finalmente, vale destacar como o pressuposto (fideístico) missionário e os choques dele decorrentes encontrar-se-ão à base da obra e dos equívocos da catequização que, em princípio, pressupunha ter que resolver “simplesmente” os problemas da forma (da doutrina) e de seu veículo (linguístico).

Esta ideologia, todavia, manifesta seu necessário limite em projetar-se, simplesmente, como “reflexo” (segundo o termo proposto pela pergunta). De fato, o “encontro catequético” que se realiza, no século XVI, junto às comunidades indígenas mostra como – segundo a análise que propusemos em nosso trabalho (sobretudo na Parte III, cap. 2: Os Sacramentos entre os Tupi) –, além de prepará-lo, realiza no encontro a abertura de uma série de convergências de horizontes simbólicos que se produzem enquanto construções históricas decorrentes do impacto colonial. Isto quer dizer que a cultura colonial nascida no interior do projeto imperial e civilizador vai alimentando, progressiva e necessariamente, um processo de seleção, absorção e transformação de elementos e estruturas culturais outros, nos respectivos dois lados do encontro: e isto, obviamente, na medida em que esses elementos faziam sentido para a cultura (indígena ou missionária) que os recebia, quando não eram transformados nessa direção. A cultura colonial acaba, de fato, constituindo-se nesse processo de convergência que a transforma numa “cultura híbrida” ou “mestiça”. Finalmente, até algumas categorias peculiares de análise ocidental, que serviram para interpretar a alteridade nesse processo histórico de encontro desenvolvido no interior do Ocidente, constituíram-se enquanto “categorias híbridas”: é o caso emblemático, por exemplo, do próprio conceito de “religião”. Por outro lado, não podemos perder de vista o fato que, no contexto da instituição do Padroado (português), mesmo em sua posição peculiar, os inacianos acabaram se tornando instrumentos da política de desenvolvimento da Colônia, servindo, portanto, aos interesses da Coroa portuguesa: nessa perspectiva a obra dos jesuítas no Brasil se caracterizava também por procurar um método alternativo de conquista e assimilação dos povos nativos, os “negros da terra”.
Portanto, não podemos perder de vista como o objetivo evangelizador se constituiu, também, enquanto base de um projeto propriamente colonial: e nesta base, inicialmente, se tornou fundamento de um entusiástico projeto missionário que via no bom selvagem a imagem de uma inocência que apontava para a possibilidade de fecundar sua alma virgem. Assim, pouco depois de sua chegada, o Pe. Manuel da Nóbrega  podia afirmar, com um tom manifestamente entusiástico em relação à atuação de seu projeto missionário, que se trata de “gente que nenhum conhecimento tem de Deus, nem ídolos” e, sucessivamente, que “esta gentilidad a ninguna cosa adora”. Mas pouco a pouco, a tabula rasa da cultura indígena devia manifestar-se em toda sua ameaçadora dimensão que arriscava não permitir nem a conversão (religiosa) nem a colonização (política). As ausências, até em seus fundamentos linguísticos, de Fé, Lei e Rei revelavam-se não mais como base do projeto colonial e missionário, mas sim como o perigo do fracasso da empresa colonial global. E, em sua especificidade “religiosa”, assiste-se à transformação da interpretação de Nóbrega. Em 1556, a sua consideração a respeito não é mais uma (pretensa) interpretação etnográfica: ela se torna, enfim, numa desesperadora lamentação:

“Se tiveram rei, podérão se converter, ou se adorárão alguma cousa; mas como não sabem, que cousa é crêr, nem adorar, não podem entender a prégação do Evangelho, pois ella se funda em fazer crêr e adorar a um só Deus, e a este só servir, e como este genio não adora a cousa alguma, nem crê em nada, tudo o que lhe dizeis se fica em nada”.

A possibilidade de constituir uma humanidade única – enquanto sistema de comparações de suas formas específicas: hoje diríamos de suas culturas – era ameaçada pela impossibilidade de encontrar uma série de valores (“religiosos”) comuns que deviam fundamentar a comparação. Essa ausência constituía-se como a impossibilidade de realizar uma conversão/tradução autêntica por parte dos missionários. A própria ação demoníaca caracterizava-se tênue e timidamente, neste vazio de crenças, como eco das caracterizações que o Período Clássico e a Idade Média haviam projetado nas alteridades da Índia, da Etiópia e da Escandinávia e que se transferia para a América em seguida à sua expulsão ocorrida na Europa. Mas, nas desnorteantes ausências das terras americanas, o próprio demônio corria o risco de se encontrar sem chão para implementar sua ação.

Para fundamentar a possibilidade de uma conversão autêntica, tornava-se necessário, então, efetivar a possibilidade anterior de uma “traduzibilidade” (apesar da novidade) da cultura americana. Fazia-se necessário encontrar uma gramática das culturas outras que permitisse lê-las. Nessa direção, tratava-se, antes de mais nada, de instaurar uma possibilidade de comunicação que, única e consequentemente, podia permitir, de alguma forma, uma conversão: é a partir deste ponto de vista que adquire uma importante relevância o fato das palavras “conquista”, “conversão” e “tradução” encontrarem-se envolvidas numa relação semântica tão estritamente recíproca, na época.


 

IHU On-Line - Como, a partir da religião, se deram os primeiros diálogos entre europeus e indígenas? De que maneira a linguagem religiosa se constituiu em uma área privilegiada da mediação simbólica entre diferentes culturas?

Adone Agnolin - Quanto apontado acima permite evidenciar, aos nossos olhos hodiernos, a difícil identificação unívoca de um “partir da religião”. Segundo a ótica de então, podemos dizer que é difícil distinguir o objetivo “religioso” daquele “político”. Dito de outra forma, ainda, a isso devemos responder propondo uma perspectiva que muda a própria pergunta: em princípio, não se parte da “religião”, mas, eventual e historicamente, se chega a ela. Isto é, ela se oferece enquanto resultado histórico de um percurso entendido enquanto “código” prioritário de identificação de determinados fenômenos que são interpretados sub specie religionis (isto é: na perspectiva religiosa). E, tendo em vista quanto apontamos relativamente à pergunta anterior e respondendo em termos gerais à presente, podemos dizer que a base do diálogo entre europeus e indígenas se deu, portanto, na perspectiva de uma (fundamental) mediação de um “religioso” que se estabeleceu enquanto código comunicativo privilegiado que devia permitir uma penetração da cultura ocidental nas outras culturas, ao mesmo tempo em que devia permitir uma inscrição das outras culturas num reconhecimento ocidental de sua (eventual e característica) “religiosidade”.
Nesta base, o diálogo propriamente dito foi se tecendo com e inscrevendo no mundo simbólico indígena: este, enfim, teve que se abrir, sempre que pôde, a uma perspectiva de tradução frente à linguagem (religiosa) de mediação simbólica dos missionários, às vezes criando ou ameaçando equívocos de que – a convivência estreita, junto com a perspicácia, de – certos missionários se deram, finalmente, conta. Assim, por exemplo, o jesuíta Acosta aponta para os problemas que se determinaram ao longo dessa experiência missionária nas Américas: segundo o missionário jesuíta, essa última manifestava claramente quanto podia ser contraproducente e perigoso falar de “igrejas”, “monastérios” e “padres” a povos que não conheciam essas coisas. Portanto, a lição dessa experiência missionária constituiu-se na necessidade de adequar-se ao grau de compreensão dos próprios indígenas: assim, corrigiam-se, necessariamente, algumas perspectivas catequéticas iniciais. Neste contexto, mas não somente nele, portanto, a “religião” tornou-se o instrumento conceitual que se modelou, mais uma vez, manifestando sua vocação em constituir-se como resultado privilegiado de uma comunicação intercultural. A projeção das categorias religiosas ocidentais nas outras culturas refundava (religiosamente) suas hierarquias de sentido: todavia, na ótica de um “diálogo” com as outras culturas, não podemos deixar de observar como essa tradução devia constituir-se como recíproca, na medida em que a cultura indígena, por exemplo, podia transformar, por sua vez, o sentido missionário das “igrejas”, dos “monastérios” e dos “padres”, a que se referia a preocupação acostiana.
Finalmente, grave ameaça do fracasso da empresa colonial global, quando a perspectiva de uma fundamental interpretação religiosa do outro se chocava com a identificação missionária de uma desesperadora ausência de religião, como acontece, por exemplo, na transformação da interpretação de Nóbrega, segundo os termos do próprio jesuíta (propostos em seu Diálogo sobre a Conversão do Gentio), realiza-se o reviramento da própria estratégia da missão jesuítica: da prioridade de uma inicial catequese como aviamento à civilização, à priorização absoluta da civilização dos indígenas a fim de poder enraizar nela, de fato, um possível (e quanto mais sólido) “processo civilizador” (o Plano Civilizador, de fato). É este método alternativo de evangelização que, finalmente, foi identificado com a operação de “redução” das culturas indígenas que, antes de institucionalizar-se nos famosos modelos alternativos da organização social que levaram esse nome, constituiu-se como prática necessária de um reconhecimento e de uma indagação próprios. E os primeiros reconhecimentos parecem delinear-se, decididamente, em forma de excessos, por um lado, e de ausências, por outro. Como analisamos em nosso trabalho, num primeiro tempo, os excessos serão identificados com os costumes e as ausências com as crenças: e, no imperativo missionário de cristianizar os indígenas, os primeiros parecem, a princípio, ter preocupado mais do que as segundas. Neste sentido, na base do processo de catequização impunha-se o trabalho enquanto instrumento de civilização. De fato, tanto a aldeia quanto as reducciones constituíram-se como lugares de trabalho que, enquanto tais, eram finalizados à civilização do indígena americano: estabilidade, regularidade, hierarquia, constituíam-se quase como uma administração de diferentes temporalidades. O processo (civilizador, antes que missionário) de redução manifesta, portanto, o domínio político enquanto policiamento endereçado a modificar os (excessos dos) costumes indígenas: processo de “mediação concreta”, sucessiva e, depois, paralela e complementar à linguagem religiosa enquanto área privilegiada da “mediação simbólica” entre diferentes culturas. E, ao que parece, se a mediação concreta intervém para corrigir os excessos, aquela simbólica intervém para preencher algumas significativas ausências em relação à memória, à vontade e, finalmente, à religião: e isso, apesar do definitivo reconhecimento (religioso) da alma dos indígenas americanos.

IHU On-Line - Quais as diferenças e peculiaridades dos projetos de catecismos jesuíticos compostos nas missões asiáticas e no ocidente?

Adone Agnolin - Face à tradição humanista europeia, esquematicamente podemos tentar resumir as peculiaridades e as diferenças dos projetos catequéticos jesuítas relativos às missões asiáticas na dupla perspectiva “religiosa” e “política”. Olhando para o Oriente, de fato, o humanismo renascentista descobrira, sobretudo, uma outra modalidade de construção do civil: às vezes aproximado ao mundo antigo, este último processo de civilização afastava-se dele, sobretudo no caso chinês, por constituir a base de uma possível “moralidade sem deuses”. Se a redescoberta e a investigação do mundo clássico (paralelamente à formulação de um determinado ideal e mito humanos) preparava, condicionava e estruturava um caminho para a percepção e a conceituação de uma inesperada “nova humanidade” (aquela apresentada pelas descobertas americanas), antes disso, ganhava em profundidade a dimensão desse “civil” quando o humanismo do século XVI se debruçou sobre os “costumes civis” do Oriente. Antes da descoberta do “selvagem” americano, o “civil” oriental trazia importantes modificações – com relação ao “civil” do Mundo Clássico – no próprio processo da “construção da humanidade” que caracterizara a Renascença.
Nesta direção, portanto, o Oriente redescoberto nessa época vinha sendo interpretado enquanto resposta a esses anseios da cultura ocidental, na medida tanto mais significativa quanto mais suas culturas pareciam desvendar uma “religiosidade” bastante peculiar quando não umas preocupações morais autonomizadas em relação à religião. E se nem sempre a estrutura tranquilizadora (a leitura sub specie religionis) conseguia absolver sua função, por outro lado o estabelecimento de semelhanças e identidades (em termos de compatibilidade) era constituído, enfim, na base de uma interpretação “moral” de suas “doutrinas”: esboçava-se, assim, uma dimensão “política” que vinha preenchendo os limites da difícil compatibilização “religiosa”.

Por outro lado, vale a pena levar em consideração uma característica política (e “religiosa”) interna às próprias culturas orientais: e, tanto nela quanto na tradução jesuítica desta tradição, encontramos, de fato, a exemplificação mais representativa desses pressupostos e, na base deles, do impor-se da nova estratégia missionária jesuítica. Foi dessa maneira, enfim, que o os missionários jesuítas conseguiram, de algum modo, relativizar sua ação e seus instrumentos culturais adaptando-os à situação cultural específica na qual estavam atuando: e a nova estratégia foi se delineando, pelo menos, desde meado do século XVI.
Exemplo significativo que delineia o impor-se da nova estratégia missionária jesuítica no Oriente é, entre outros, aquele relativo ao Japão: derrubando a anterior política de discriminação contra o clero indígena instaurada por Francisco Cabral, primeiro superior da missão, com a virada da política jesuítica proposta pelo visitador Alessandro Valignano, os missionários se encontraram na possibilidade (e na necessidade) de adotar uma “política de adaptação” com os senhores feudais (daimyo) contra o budismo que se tornava seu comum e principal inimigo (acompanhando, por exemplo, os samurai cristãos para a guerra com o capelão jesuíta e com as bandeiras que representavam a cruz!): e tudo isso quando, paradoxalmente, muitos jesuítas japoneses foram monges budistas. Enfim, no esforço missionário que se destinava a realizar a tentativa de uma possível convivência com uma cultura estranha, a compatibilidade com a Escritura judaico-cristã entrecruzava-se, necessariamente, com um sistema de compatibilidades dentro do qual, segundo o entendimento dos jesuítas, chineses e japoneses deveriam poder inserir-se, partindo de sua peculiar ótica cultural.

Além do mais, precisamos destacar uma característica contextual que diferencia profundamente a situação das missões no Oriente com relação àquelas das Índias ocidentais: esta diferenciação se encontra, sem dúvida, na base das profundas diferenças de estratégias que, nos diferentes contextos, os missionários tiveram que adotar. No caso da conquista da América, permanece fora de dúvida o fato de que se tratou, antes de mais nada, de uma conquista baseada no uso da força: as próprias missões cristãs dependiam, neste caso, antes que da própria ordem religiosa (com suas peculiares estratégias de “conquista de almas”), da ordem criada pelas armas dos espanhóis e dos portugueses. Em contraposição à América, a situação das missões na Índia, no Japão e na China encontrava-se profundamente diferenciada: aqui os missionários podiam contar somente com as próprias capacidades. E se, entre o Atlântico e o Índico, o esforço comum do próprio missionário em terra de missão era, em princípio, sobretudo aquele de traduzir, possivelmente de forma clara e sem equívocos, a mensagem evangélica, entre as refinadas culturas asiáticas a ação evangelizadora teve que propor-se com muito maior cuidado para não trair e extraviar a própria mensagem.
Diferentemente do caso americano, no caso das missões no Oriente, a alteridade se constituía não mais numa oposição que criasse um mecanismo de recíproca complementariedade, mas numa significativa “oposição de alternativas”. Confirmação disso é o fato de que, no século XVI, as duas máximas autoridades jesuíticas neste lado do mundo, o Pe. Valignano , em Goa, e o Pe. Francisco Cabral , em Macau, deram início a uma áspera polêmica – através de suas respectivas correspondências para o geral da Companhia, Claudio Aquaviva  – em relação a uma oposição radical a respeito dos programas e dos métodos missionários. Nesta disputa, Valignano acabou impondo um próprio Livro das regras ou, como foi geralmente definido, Cerimonial. Sua aprovação não foi concedida sem reservas. As Regras dos ofícios, que entraram em vigor definitivamente em 1592, foram, enfim, o resultado de uma longa contratação.

Paradoxalmente, a reação ao Cerimonial de Pe. Aquaviva, geral da Companhia, demonstra quanto grande foi o sucesso da tentativa de Valignano: a apropriação de uma cultura diferente conseguiu tornar o cristianismo quase que irreconhecível aos olhos de seus próprios superiores; a escolha de imitar os bonzos do budismo “zen”, apesar de instrumental para a dissimulação, havia conseguido cancelar os traços fundamentais da missio jesuítica. Trata-se, no fundo, da repetição daquilo que Matteo Ricci , o mais célebre representante do método da “acomodação”, experimentou naqueles mesmos anos: isto é, quão pouco conveniente teria sido insistir demasiadamente com o símbolo do crucifixo; quão difícil era explicar, para os chineses, o que representava aquele homem crucificado. O próprio Ricci, ao final, resignou-se a falar dele como de “um grande santo de nossa terra”.

De qualquer maneira, todavia, enquanto ia se definindo o desfecho do percurso, na circularidade das linhas de organização da experiência missionária, entre a Europa e os países extraeuropeus, segundo Adriano Prosperi , dois tornaram-se os eixos de orientação da prática missionária: “as artes da ‘acomodação’ e da simulação, elaboradas para as culturas ‘altas’ e para os países não dominados militarmente por príncipes cristãos – Japão e China –, foram reservadas às classes dominantes e, em particular, aos soberanos dos Estados europeus não católicos. As técnicas didáticas destinadas aos ‘rudes’ da América encontraram aplicação nas missões internas que investiram as campanhas dos países católicos”.

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