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Márcia Junges – Tradução Benno Dischinger
“Ricci acreditava que o cerne da fé cristã que ele vinha proclamar podia ser encontrado na verdadeira origem e nos caminhos da cultura chinesa, se fossem cuidadosamente estudadas as formas originais da antiga tradição confucionista”. A afirmação é do padre jesuíta Antoni Üçerler, membro e professor visitante do The Ricci Institute for Chinese-Western Cultural History, da Universidade de São Francisco, nos Estados Unidos. A entrevista foi concedida por e-mail à IHU On-Line, com exclusividade. De acordo com ele, ainda hoje os chineses, cuja maioria é não cristã, “lembram e consideram Ricci como alguém que se tornou um amigo fiel de seu povo”. E continua: “para Ricci não se tratava tanto da questão de transplantar uma “árvore cristã” plenamente desenvolvida para o solo chinês, mas de descobrir os tênues brotos para a fé cristã na cultura chinesa e cultivá-los de modo que pudessem crescer e se desenvolver numa robusta arvora cristã chinesa”. Com as missões desenvolvidas na China e no Japão, os jesuítas realizaram uma verdade “ponte” cultural e humana entre o Ocidente e o Oriente.
Antoni Üçerler é pesquisador do Instituto Histórico Jesuíta em Roma (IHSI). Doutorou-se na Universidade de Oxford. Antes dessa titulação, lecionou por vários anos no Departamento de Cultura Comparativa da Universidade de Sophia, no Japão.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Pode-se considerar Ricci e outros missionários como precursores da globalização com base na religião? Por quê?
Antoni Üçerler - Globalização é uma palavra hoje muito usada e abusada. Tornou-se muito fascinante, mas, com freqüência, refere-se exclusivamente a assuntos econômicos em geral ou, por vezes, ao desequilíbrio no relacionamento entre as multinacionais em países industrializados e países em desenvolvimento. No entanto, Ricci tem sido considerado um precursor da globalização por diversas razões que nada tem a ver com tais questões econômicas. Em primeiro lugar, ele foi o primeiro ocidental a dominar a língua chinesa e a compor livros escolares em chinês clássico. Em segundo lugar, ele foi um dos primeiros estrangeiros que foi admitido à corte chinesa e que foi capaz de engajar estudantes chineses num diálogo sustentável sobre cultura, moralidade, religião, sociedade, astronomia e matemática. Ricci acreditava que o cerne da fé cristã que ele vinha proclamar podia ser encontrado na verdadeira origem e nos caminhos da cultura chinesa, se fossem cuidadosamente estudadas as formas originais da antiga tradição confucionista. Esta atitude de abertura cultural, que não envolvia o uso de poder para se impor, é um modelo de como engajar-se com pessoas que são diferentes de nós. Este modelo é tão válido hoje como o foi no século XVI.
IHU On-Line - Sob que aspectos a missão de Ricci na China mudou a religião e a cultura daquele país?
Antoni Üçerler - É impossível falar de um homem “mudando” um país tão imenso e antigo como a China, especialmente com referência à religião e à cultura. No entanto, a fundamental atitude de amizade e respeito de Ricci pelo “Outro” teve um profundo impacto pelos séculos vindouros, enquanto estabeleceu um padrão pelo qual todos os outros que chegassem ao “Império do Meio” pudessem ser julgados em termos de sua disposição em fazer o esforço de entender uma civilização tão antiga e complexa como aquela da China. Mesmo hoje, diversos chineses, a maioria dos quais não é cristã, lembram e consideram Ricci como alguém que se tornou um amigo fiel de seu povo. O exemplo que Ricci deixou e que seus sucessores tentaram imitar conduziu eventualmente à aceitação, junto ao Imperador, de uma pequena comunidade cristã dentro de seu reino. Foi quando os missionários se tornaram intolerantes nos séculos subsequentes que a Igreja perdeu terreno e o Reino fechou suas portas ao cristianismo e à influência estrangeira.
IHU On-Line - Pode-se dizer, com base na experiência de Ricci na China e as experiências de outros missionários jesuítas no Japão, que o cristianismo foi reinventado no Leste? Por quê?
Antoni Üçerler - O mentor das duas missões no Japão e na China foi Alessandro Valignano, que bem cedo entendeu que essa acomodação cultural era a única via de se ir em frente na Ásia Oriental. Uma de suas grandes intuições foi que o Japão e a China eram semelhantes à Igreja primitiva dos primeiros séculos. Ele escolheu são Paulo como modelo para o apóstolo ideal entre os gentios. Paulo pregou o Deus desconhecido aos gregos reunidos no Areópago de Atenas. De modo semelhante, Valignano acreditou que a mesma mensagem precisava ser transmitida de tal maneira para se tornar compreensível às tão altamente avançadas civilizações do Japão e da China. Neste sentido, era preciso “re-inventar” o cristianismo, ou seja, “descobrir novos argumentos” com os quais se pudesse mover os corações dos povos da “nova Igreja Primitiva” da Ásia oriental e persuadi-los a abraçar a fé cristã. Isso reflete o clássico pensamento do “inventar”, que vem do latim “invenire”, encontrar ou descobrir. Este termo era um conceito-chave na retórica clássica e foi adaptado pelos missionários quando eles falavam de sua missão na Ásia. Resumindo, para Ricci não se tratava tanto da questão de transplantar uma “árvore cristã” plenamente desenvolvida para o solo chinês, mas de descobrir os tênues brotos para a fé cristã na cultura chinesa e cultivá-los de modo que pudessem crescer e se desenvolver numa robusta arvora cristã chinesa.
IHU On-Line - Quais eram as peculiaridades da missão jesuítica no Japão? O que mudou em comparação com a missão promovida na China?
Antoni Üçerler - A missão no Japão foi inicialmente marcada pelo período dos “Estados Guerreiros” da guerra civil. Isso significava que os jesuítas precisavam conquistar o favor dos lordes de guerra locais a fim de serem capazes de atuar. Essa situação criou uma grande batalha repleta de incerteza e dureza. A China, por sua vez, era um império estável, controlado centralmente pela burocracia imperial. Enquanto ambas as nações usavam os caracteres chineses em sua escrita, as estratégias de tradução usadas em ambos os países eram ligeiramente diferentes. O engano inicial de Francisco Xavier em adotar “Dainichi”, um termo tomado do budismo Shingon para traduzir o conceito de Deus conduziu a um mal entendido entre os japoneses que pensaram inicialmente que ele fosse um monge budista. Posteriormente, os jesuítas no Japão foram muito cuidadosos no sentido de evitar o uso da terminologia budista e traduziram palavras latinas para expressar conceitos teológicos comuns. Na China, Ricci abraçou a terminologia confucionista, evitando cuidadosamente qualquer uso de termos budistas ou taoístas que pudessem confundir os chineses.
IHU On-Line - Quem foram os missionários enviados ao Japão e de que modo se integraram com a igreja e a sociedade?
Antoni Üçerler - Os missionários do Japão provinham de diversos países europeus, sendo vários deles italianos, portugueses ou espanhóis. Quando Valignano adotou a abordagem “top-down” (De cima para baixo), ele decidiu trabalhar primeiro e primordialmente com as elites do Japão, a classe dos lordes de guerra e dos samurais, na esperança de que, se eles se convertessem, eles fossem capazes de conduzir seus súditos ao cristianismo. Também foi por essa razão que ele estabeleceu três escolas para treinamento da juventude japonesa e, em 1580, um Colégio de nível superior para formar jesuítas europeus e japoneses em filosofia e teologia. Sem se opor a este fato, diversos outros jesuítas trabalharam com cristãos japoneses comuns em áreas remotas de Kyushu, onde treinavam líderes comunitários para se tornarem catequistas que os auxiliassem em sua obra apostólica.
IHU On-Line - Quais foram as principais dificuldades enfrentadas pelos jesuítas nesse encontro de culturas que teve lugar no Oriente?
Antoni Üçerler - Algumas das principais dificuldades foram as imensas barreiras levantadas pelas línguas japonesa e chinesa, bem como o duro empenho e tempo necessário para entender as culturas do Leste, incluindo as nada familiares tradições do budismo, taoísmo e xintoísmo. De um ponto de vista político, no Japão havia a dificuldade por mim mencionada da guerra civil, enquanto na China existia a dificuldade para os estrangeiros de obterem permissão de entrar e permanecer no país. Os missionários também enfrentaram a hostilidade dos lordes de guerra locais (no Japão), dos hostis mandarins (na China) e dos monges budistas (tanto no Japão como na China).
IHU On-Line - Até que ponto a missão jesuítica no Oriente funcionou como “ponte”, como elo com o Ocidente?
Antoni Üçerler - Durante a assim chamada “Era das Descobertas” (A época dos descobrimentos), elos intensos foram forjados entre os dois impérios marítimos, o português e o espanhol de um lado, e o Japão e a China do outro. Muitos destes contatos estavam relacionados com o comércio, mas os missionários também já estiveram bem presentes desde o início. Os grupos subsequentes aprenderam o idioma, procuraram entender as culturas e neste processo ofereceram aos povos, tanto japonês como chinês, um relance sobre a cultura e a civilização européias. Ao mesmo tempo, eles compuseram as primeiras gramáticas e dicionários de japonês e chinês em linguagem europeia. Além disso, eles escreveram milhares de cartas e relatórios, muitos dos quais continham informação detalhada sobre geografia, política, costumes, religião, flora, fauna e povos da Ásia. Neste sentido, eles cumpriram a função de “ponte” cultural e humana. Um bom exemplo disso é a história das impressoras missionárias que publicaram livros tanto em língua europeia como asiática.
IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algo que não foi questionado?
Antoni Üçerler - Frequentemente é levantada a questão se essas missões foram um “sucesso” ou um “fracasso”. Se considerarmos exclusivamente o número de conversões, então talvez ambas as missões pudessem ser consideradas um “insucesso”. No entanto, nas trocas interculturais e entre crenças nem tudo é quantificável. Quando o Japão fechou definitivamente suas portas ao cristianismo e à ulterior influência estrangeira em 1639, teve início um período de mais de 200 anos de semi-isolamento. Durante este período os cristãos foram brutalmente perseguidos, torturados e executados. E então, uma Igreja subterrânea sobreviveu sem sacerdotes durante todo esse período. Isso significa que as sementes que foram lançadas no Japão (e também na China) se desenvolveram, embora as circunstâncias não lhes permitissem crescer a não ser nas sombras e longe das vistas. Na China, a despeito de múltiplas dificuldades, a comunidade cristã cresceu para vários milhões e os cristãos chineses permanecem como vigorosa e muito comprometida comunidade de crentes. Em seu culto, eles ainda usam várias das palavras que Matteo Ricci por primeiro cunhou, inclusive “Tianzhy” ou “Senhor dos Céus” para Deus.