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Márcia Junges
“A estratégia de Ricci funda-se em uma teologia da Criação que reconhece a possibilidade de manifestação do Dom de Deus em todas as manifestações culturais da humanidade”, afirma o diretor do Centro de Estudos Chineses da Companhia de Jesus em Pequim, o Beijing Center, Roberto Mesquita Ribeiro. Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, ele acentuou que a missão de Ricci na China precisa ser compreendida sob o signo da amizade, herança valiosa para a Igreja como um todo em nossos dias. Segundo ele, o maior legado desse missionário jesuíta para o diálogo com as diferentes culturas é “a possibilidade de inventar caminhos novos para a mensagem de Cristo”. Certamente havia o sonho de inúmeras conversões no Império do Meio, mas números não eram prioridade para Ricci, pondera Ribeiro: “O que lhe era essencial era que a mensagem de Cristo, que os valores do Evangelho fossem conhecidos por todos. Ele queria que Cristo fosse uma voz no diálogo, e essa é a grande contribuição de Ricci”. Além disso, Ricci introduziu os fundamentos da matemática aplicada e ciência moderna na China, com contribuições à filosofia, cartografia, música, astronomia, pintura e teologia. “Desse modo, o aspecto mais importante da passagem de Ricci que se faz sentir na China de hoje é a relação de respeito e crescimento mútuo entre um ocidental e seus amigos chineses”.
Roberto Mesquita Ribeiro é padre jesuíta, natural da Bahia. É advogado, mestre em Literatura pela Universidade Federal da Paraíba – UFPA, estudou Filosofia na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia – FAJE, em Belo Horizonte, e Teologia no Centro Sèvres, em Paris. Vive na China desde 2007, primeiro em Taipei, Taiwan, depois em Pequim, desde 2008. Atualmente, é diretor do The Beijing Center for Chinese Studies – TBC, centro jesuíta de estudos superiores para estudantes das universidades ligadas à Companhia de Jesus interessados em cursar um semestre ou um ano na China. Trabalha, portanto, como educador, sobretudo promovendo estudos chineses nas universidades jesuítas e também promovendo pesquisas na área da história do cristianismo na China.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é o fundamento teológico da estratégia de Matteo Ricci?
Roberto Ribeiro Mesquita – Não é fácil apontar os fundamentos teológicos da estratégia de evangelização idealizada por Alessandro Valignano , Visitador das missões do Oriente, e utilizada por Matteo Ricci na China a partir de 1582. Em certos aspectos, Matteo Ricci é filho de seu tempo. Sua primeira preocupação, por exemplo, será a tradução das orações do Pai Nosso e do Credo, atividades simples de catequese, como fizera São Francisco Xavier . O que é inovador na estratégia de Valignano e Ricci, o “modo soave” em seu modo de dizer, é que há uma grande atenção e respeito pela cultura local. Ricci percebe que o povo e a cultura chinesas são especialmente sofisticadas e merecem ser respeitadas e apreciadas. Todo o seu apostolado na China vai se definir pelo seu crescente interesse pela língua, pela cultura, e pelos amigos que Ricci fará na China. Desse modo, a estratégia de Ricci evolui de um modelo no qual a mensagem se impõe para um modelo no qual a mensagem se transmite através do diálogo. E creio que isso somente foi possível porque Matteo Ricci reconhecia a presença de Deus nas culturas, um dom comunicado através da Criação. Em outras palavras, a estratégia de Ricci funda-se em uma teologia da Criação que reconhece a possibilidade de manifestação do Dom de Deus em todas as manifestações culturais da humanidade.
IHU On-Line - Em que sentido o “outro eu” é considerado “amigo” nessa perspectiva de evangelização desse jesuíta?
Roberto Ribeiro Mesquita - A expressão “O meu amigo é a metade de mim e, portanto, o outro de mim mesmo” foi utilizada por Ricci na sua primeira obra em língua chinesa, o Tratado sobre a amizade. Na verdade, trata-se da tradução feita de memória do De Amicitia, de Cícero . Ao escolher essa obra, no entanto, Ricci comunica duas verdades. Primeiro, ele reconhece o valor das relações da amizade na cultura chinesa - uma verdade ainda atual. Segundo, ele reconhece a radicalidade do dom da fraternidade proclamado na fé cristã. Trata-se, enfim, do cuidado do outro, a atenção às pessoas e, em última medida, do amor radical pelo próximo, sobretudo pelos mais necessitados.
IHU On-Line - De que forma a missão de Ricci inspira a Igreja e os homens de hoje para um diálogo com a alteridade?
Roberto Ribeiro Mesquita - Ao iniciar sua obra na China com uma obra sobre a amizade, Matteo Ricci estabelece toda a missão na China sob o signo da amizade, e isso é uma herança valiosa para a Igreja hoje. Isso significa que o respeito pelas pessoas tem a primazia, que o diálogo no qual a missão se desenvolve é um caminho aberto a ser definido pelas curvaturas das palavras trocadas. Ricci jamais poderia antecipar que o caminho iniciado em 1582 em Macao o levaria a ser considerado mandarim, e a terminar seus dias próximo da corte, em Pequim. Certamente Ricci levava uma mensagem, a palavra revelada, o Cristo e as Escrituras. Mas o modo de comunicação dessa mensagem foi desenvolvido de modo inédito no diálogo que Ricci estabeleceu com seus amigos na China. É essa, no meu entendimento, a maior e melhor herança de Ricci para o diálogo com as diferentes culturas: a possibilidade de inventar caminhos novos para a mensagem de Cristo.
IHU On-Line - Quais são os reflexos dessa missão evangelizadora na Igreja de hoje?
Roberto Ribeiro Mesquita - Em primeiro lugar, a figura de Ricci é uma figura de abertura e respeito. Por isso é uma figura aceita em diversos círculos na igreja e na sociedade. Durante as celebrações do IV centenário de sua morte em Pequim, a figura de Ricci não somente foi aceita, mas de certo modo celebrada pelas instâncias oficiais na China. Em segundo lugar, Ricci é uma fonte de inspiração dentro da Igreja para o diálogo entre fé e cultura.
IHU On-Line - Que aspectos apontaria na cultura da China atual que foram marcados pela passagem de Ricci no país?
Roberto Ribeiro Mesquita - Ricci foi o primeiro ocidental a estabelecer uma presença contínua na China, depois da presença de Marco Polo e dos franciscanos na dinastia Yuan, no século XIII. Sobretudo, na primeira fase dessa presença ocidental na China, Ricci e diversos outros jesuítas irão construir um diálogo extraordinário com a cultura local. Ricci irá introduzir os fundamentos da matemática aplicada e ciência moderna na China, além de muitas outras inovações. Junto com Paul Xu, o pilar da igreja chinesa, como dizia Ricci, ele traduzira Euclides para o chinês. Sua contribuição para a cultura chinesa incluirá filosofia, cartografia, música, astronomia, pintura e teologia. Desse modo, o aspecto mais importante da passagem de Ricci que se faz sentir na China de hoje é a relação de respeito e crescimento mútuo entre um ocidental e seus amigos chineses. Essa relação está em violento contraste com a dura história de conflito entre Oriente e Ocidente nas guerras do ópio do século XIX.
IHU On-Line - Como se dá o diálogo intercultural na China de hoje?
Roberto Ribeiro Mesquita - A China é hoje um país central no cenário mundial. Não somente a sua força econômica, mas também a sua relevância cultural tem crescido aceleradamente. O estabelecimento dos Institutos Confúcio e outros centros de idioma e cultura chinesas são uma demonstração desse interesse e abertura da China para o diálogo com outras culturas. No ano passado, a Academia de Ciências Sociais da China criou um centro de Estudos Brasileiros, por exemplo. Também no ano passado, a Universidade de Comércio Internacional e Economia, onde o nosso centro (The Beijing Center for Chinese Studies) está estabelecido criou um departamento de português. Esses são apenas dois exemplos de como a China e os chineses se interessam pelas diferentes línguas e culturas. É preciso, porém, compreender que a China é um país imenso, extremamente diverso e filho de uma história contínua de mais de cinco mil anos. Muitas vezes, o diálogo intercultural é uma realidade dentro mesmo da China, que oficialmente possui 55 minorias étnicas.
IHU On-Line - E quanto às religiões, há um diálogo entre os diferentes credos na China? Se sim, em que medida Ricci contribuiu para esse aporte?
Roberto Ribeiro Mesquita - A China possui cinco religiões oficiais: budismo, islamismo, taoísmo, catolicismo e cristianismo (o governo chinês distingue os dois grupos cristãos como duas religiões distintas). Dentre essas religiões, apenas o taoísmo é uma religião nascida na China. O budismo, porém, se enraizou na China de tal maneira que nos é impossível compreendê-lo sem suas expressões tipicamente chinesas. Já o islamismo e o cristianismo, porém, tiveram menos ocasião ou menos oportunidade de se enraizar profundamente na cultura, de modo que se apresentam como religiões estrangeiras e minoritárias. Talvez por causa desse contexto, mas também por conta do cenário político na China contemporânea, o diálogo inter-religioso não é particularmente ativo. No tempo de Ricci, inicialmente houve muita proximidade com o budismo – Ricci, no começo, se vestira como monge budista, antes de assumir o perfil de mandarim. Mas, pouco a pouco, Ricci foi se distanciando para criar o espaço necessário a fim de comunicar a novidade de uma mensagem inédita. De todo modo, tanto no tempo de Ricci como na China contemporânea, o diálogo sobre as expressões culturais da humanidade reveladas através das diversas religiões parece ser a porta de entrada para uma melhor compreensão mútua.
IHU On-Line - Qual foi a importância da missão de Ricci na disseminação do catolicismo pelo mundo?
Roberto Ribeiro Mesquita - Em uma de suas cartas, Ricci dirá que não é o tempo de colher, e não é sequer o tempo de semear, mas apenas tempo de limpar o mato e preparar o terreno para a semeadura. Ricci certamente sonhava com numerosas conversões, mas o número jamais foi prioridade para ele. O que lhe era essencial era que a mensagem de Cristo, que os valores do Evangelho fossem conhecidos por todos. Ele queria que Cristo fosse uma voz no diálogo, e essa é a grande contribuição de Ricci. A colheita jamais nos pertence, de fato. O que nos compete, hoje e sempre, é a abertura de um espaço, de uma brecha para que a Palavra comunique, que Ela siga seu caminho. Ricci acreditava que faz sentido viver a vida com base no amor e na reconciliação. Ele acreditava que essa verdade faz seu próprio caminho. Eu também acredito.