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Márcia Junges | Tradução Luís Marcos Sander
“Diferentemente de outros contextos coloniais, onde as culturas locais foram forçadas a adotar formas europeias de pensamento e organização sociopolítica, na China os europeus se confrontaram com uma alteridade que contestava muitos de seus pressupostos”. A afirmação é do historiador Eugenio Menegon, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. De acordo com ele, “o papel intelectual dos jesuítas e de outros missionários foi crucial na introdução dessa percepção de relativismo cultural na Europa”. Além disso, o “encontro com a China também abriu novas perspectivas para a compreensão da própria religião entre os cristãos”. Menegon acentua que o que atraiu os homens de letras chineses nos Ensinamentos Celestiais dos jesuítas era a natureza orgânica deles.
Eugenio Menegon é graduado pela Università Ca' Foscari, na Itália, e PhD pela University of California, Berkeley, em história chinesa. Leciona história chinesa e história mundial na Boston University, nos Estados Unidos. Seus interesses incluem as relações da China com o Ocidente no período tardio do império, as religiões chinesas e o cristianismo na China, bem como a ciência nesse país. É autor de uma biografia sobre o jesuíta Giulio Aleni, pioneiro na China no século XVII, intitulada Un solo Cielo. Giulio Aleni S.J., 1582-1649. Geografia, arte, scienza, religione dall’Europa alla Cina (Brescia: Grafo, 1994).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais foram os principais frutos do encontro entre a cultura chinesa e a cultura europeia?
Eugenio Menegon - Antes de as Guerras do Ópio do século XIX mudarem para sempre a dinâmica das relações sino-ocidentais, introduzindo elementos de violência e intrusão tecnológico-militar, que fizeram a balança de poder pender para o lado dos países ocidentais, os europeus na China tinham de se adaptar a um contexto de completa dominação chinesa. Em termos políticos, militares e culturais, o império chinês exercia uma atração magnética tanto sobre mercadores quanto sobre missionários. Mas, para interagir com a China, os europeus tinham de aprender a fazê-lo do jeito chinês, e dentro dos limites das leis, dos ritos e dos costumes chineses. Penso que este talvez tenha sido o mais importante fruto do encontro: diferentemente de outros contextos coloniais, onde as culturas locais foram forçadas a adotar formas europeias de pensamento e organização sociopolítica, na China os europeus se confrontaram com uma alteridade que contestava muitos de seus pressupostos. Muitas vezes ela os fazia se sentirem inferiores.
O papel intelectual dos jesuítas e de outros missionários foi crucial na introdução dessa percepção de relativismo cultural na Europa. As consequências foram muito além do que os missionários pretendiam e ofereceram aos pensadores iluministas elementos para criticar a dimensão religiosa do Antigo Regime. Mas o encontro com a China também abriu novas perspectivas para a compreensão da própria religião entre os cristãos.
IHU On-Line - Quais eram as peculiaridades na prática da religião cristã naquele país?
Eugenio Menegon - Nas últimas décadas, os pesquisadores da sociedade e das religiões da China, particularmente aqueles que lidam com o taoísmo, o budismo, grupos devocionais leigos e a religião das aldeias, vêm desmantelando o mito da China como um país que estivesse inteiramente sob o domínio de valores confucianos inculcados pelo Estado e pelas elites locais. De fato, as tentativas do Estado e das elites de criar uma integração cultural ortodoxa e uma padronização cultural de práticas e crenças corriam paralelamente às práticas e crenças de expressões religiosas locais diversificadas, frequentemente heterodoxas em termos teóricos e práticos aos olhos do Estado e das elites. Novas pesquisas sobre as missões católicas nos séculos XVII e XVIII e sobre o protestantismo e o catolicismo no final do século XIX e no início do século XX reconstruíram a experiência dos chineses cristãos na construção do Estado, na história intelectual, na sociedade civil e nas atividades religiosas e mostraram que, em muitos locais, os cristãos faziam parte de círculos intelectuais nativos mais amplos e redes de parentesco, estando, assim, plenamente integrados na dinâmica da vida social chinesa.
Além disso, a experiência histórica das comunidades cristãs em diferentes partes do império variava de acordo com normas e práticas sociais localizadas. Os cristãos não necessariamente praticavam rituais e seguiam normas sociais inteiramente em harmonia com o contexto sociorreligioso dominante. Para os convertidos, ser local e cristão na China significava criar uma nova identidade religiosa, tanto chinesa quanto católica, local e, ainda assim, universalista em termos de aspiração. Este não era um caminho fácil. O processo de localização estava carregado de conflitos e exigia negociações contínuas com a sociedade local e reações à intervenção estatal. A nova religião local contestava a sociedade no tocante a algumas das questões centrais da organização social, incluindo os rituais ligados aos ancestrais, às normas de gênero e de cultos religiosos locais. Embora os rituais católicos chineses continuassem sendo fundamentalmente semelhantes aos da Igreja universal, a ênfase em valores como a piedade filial, divisões de gênero e coisas semelhantes lhes deram efetivamente traços chineses. Além disso, durante os séculos XVII e XVIII, as comunidades locais conseguiram alcançar um equilíbrio delicado em suas aldeias, através de alianças de parentesco e negociações nuançadas.
IHU On-Line - Quais foram os principais desafios da missão jesuíta na China? Nesse sentido, qual é a o papel de Matteo Ricci no sucesso da empreitada cristã na China?
Eugenio Menegon - Num recente estudo histórico da antiga missão dos jesuítas na China, Liam Brockey identifica a falta de pessoal como o principal calcanhar de Aquiles da missão quando atingiu seu pico em termos numéricos. Quando o número de cristãos aproximou-se de 250 mil em 1700, até mesmo soluções jesuíticas criativas como o estabelecimento de irmandades leigas foram insuficientes para ministrar os serviços sacramentais de que as comunidades locais necessitavam. Minha própria pesquisa sobre a missão dominicana numa pequena parte de Fujian (sul da China) mostra que a presença de um número adequado de sacerdotes lá fortaleceu o enraizamento do cristianismo dentro das redes locais de parentesco e permitiu a sobrevivência da tradição mesmo em épocas de perseguição. Isto também aconteceu nas comunidades jesuíticas onde o investimento de pessoal foi mais intensivo e as tradições familiares eram mais fortes. Ricci entendeu a importância de preparar o terreno para gerações futuras, através do apaziguamento da elite dominante, e este foi seu papel. Ele não poderia e não deve ter visionado todos os cenários futuros possíveis. Mas o que ele escreveu em sua história da missão tem qualidades proféticas: “(...) todas as coisas, mesmo aquelas que mais tarde se tornarão muito importantes, são tão pequenas e fracas em seus primórdios que ninguém se convence facilmente de que elas acabarão dando origem a coisas momentosas”. Consciente dos primórdios modestos para os quais estava contribuindo, sua contribuição ofereceu uma visão de longo prazo do desenvolvimento da empresa cristã na China.
IHU On-Line - Em que medida se pode falar numa propagação indireta da fé através da ciência? Quais foram os recursos utilizados para isso? E quais foram as contribuições de Ricci para a ciência chinesa?
Eugenio Menegon - A ciência e a religião, na formação dos primeiros jesuítas modernos, bem como no momento cultural que hoje chamamos de Renascimento, não eram campos desarticulados como o são atualmente, mas faziam parte de um mesmo projeto cultural e religioso. Através de uma concepção de “filosofia natural”, era possível obter compreensão do mundo e, indiretamente, de seu Deus criador. Assim, mesmo na China, “usar” as ciências para fazer propaganda religiosa não era tão instrumental quanto poderíamos pensar hoje em dia. Quando, na década de 1670, Ferdinand Verbiest tentou conseguir a permissão imperial para incluir textos aristotélicos no currículo imperial chinês, sua esperança era introduzir ideias filosóficas e científicas básicas da tradição ocidental para, mais tarde, explicar a teologia cristã. O plano não se concretizou, mas mostra quão orgânica era a teoria do conhecimento daquela época. Ricci, que era um representante do Renascimento inicial, estava inteiramente envolvido nesse tipo de estratégia. Mas não deveríamos enfatizar excessivamente a importância das noções levadas pelos europeus à China. Essas noções tiveram impacto sobre setores estratégicos da pauta governamental do império (calendário, tecnologia militar, cartografia), mas não causaram um impacto imediato no rumo da ciência chinesa nem na sociedade chinesa em seu conjunto.
IHU On-Line - Como a metafísica do cristianismo se relacionou com o confucionismo?
Eugenio Menegon - Os jesuítas chegaram à China na década de 1580, num momento especial da história chinesa. A última parte da dinastia Ming foi um período de grande prosperidade econômica e de diversidade e abertura intelectual sem precedentes, mas também uma época de forte polarização social, de desordem governamental, de lutas implacáveis entre facções políticas e de desastres ecológicos devastadores. Em consequência disso, os homens de letras chineses buscavam uma forma de entender seu mundo fragmentado e de reformar o império. Os antigos valores confucianos pareciam estar em crise. Dentre as muitas opções disponíveis para as reformas moral e política, um grupo seleto de homens instruídos de círculos governamentais acharam atraentes as ideias oferecidas por esses novos “Ensinamentos Celestiais” (Tianxue), como eram chamados, que os jesuítas traziam.
O que atraiu esses homens de letras nos Ensinamentos Celestiais dos jesuítas era a natureza orgânica deles. Na Idade Média e no início da Modernidade, o conhecimento era organizado de modo diferente da atualidade. Nós percebemos a história, teologia, filosofia, física, química, etc. como disciplinas separadas. Além disso, dificilmente se veem as ciências humanas em diálogo com as chamadas ciências exatas. Entretanto, este não era o caso no passado. Antes do iluminismo, o conhecimento na Europa era construído numa única hierarquia de disciplinas. Embora algumas disciplinas fossem mais importantes do que outras, todas eram vistas como parte de um corpo unitário de conhecimento. Na hierarquia do início do período moderno, a teologia estava no topo, seguida pela filosofia e depois pelo que chamamos de ciências duras ou exatas, e que eles chamavam, em termos amplos, de filosofia natural. É isto que quero dizer com o termo “orgânico”: todos os ramos do conhecimento estavam inter-relacionados, e as ciências exatas que mediam e descreviam o mundo físico apontavam para a ordem superior da realidade metafísica descrita por filósofos e teólogos.
Conhecimento orgânico
Na China, a situação era semelhante em muitos sentidos. Apesar da existência de diferenças na classificação do conhecimento e na forma como o mundo era concebido, os pensadores chineses também colocavam a metafísica numa posição elevada da hierarquia. Os chineses não separavam o físico do metafísico tão completamente quanto o faziam os ocidentais. Não obstante, eles acreditavam, de maneira semelhante, que todas as formas de conhecimento, incluindo as ciências exatas, visavam a revelar e explicar o padrão oculto, ideal do universo. Como seus equivalentes europeus, eles também perseguiam um projeto de conhecimento orgânico.
É justamente essa crença comum na natureza orgânica do conhecimento, tanto no Ocidente quanto na China, que explica o interesse inicial pelos aspectos religiosos e científicos da missão jesuítica na China. Os jesuítas, como a maior parte das pessoas de sua época, incluindo Galileu e Newton , criam que havia uma hierarquia unificada de conhecimento. Eles pensavam que o conhecimento das realidades metafísicas tinha como premissa o conhecimento da realidade física. No cerne de sua hierarquia, contudo, permanecia um sistema moral centrado num supremo princípio ordenador do universo, o Senhor dos Céus cristão. Alguns dos eruditos da era Ming, em sua busca quase obsessiva de uma forma de reformar sua sociedade decadente através do que chamavam de aprendizado prático, acharam esse sistema moral, religioso e científico bastante atraente, e não incompatível com seus ideais confucianos.
Divindade encarnada
Mas aí também residia a dificuldade: o Deus antropomórfico dos cristãos não é um princípio filosófico, exceto em alguns modelos teológicos rarefeitos. O Deus cristão é uma figura paterna, que gerou um filho concebido por uma mulher mortal. Isto era demais para muitos eruditos chineses que estavam em busca de princípios da ordem universal. Eles tinham sido formados, através das sutilezas do pensamento budista e da cosmologia neoconfuciana, para conceber o princípio supremo como uma força cósmica, difícil de definir, imanente nas coisas, mas certamente sem ter formas humanas. Como poderiam aceitar a divindade encarnada do cristianismo?
Entretanto, um pequeno número de chineses aceitou a ideia. Eles podiam fazer isso definindo criativamente o Deus cristão de formas chinesas, enfatizando seu papel paterno e a ideia de um deus-rei, de um “Senhor do Céu”, de um “Imperador do céu”. Contudo, na década de 1630, nos últimos anos da dinastia Ming, os detentores dos mais elevados graus acadêmicos pararam de se converter ao credo estrangeiro. Desencantados com seus esquemas fracassados para a reforma política e moral, eles viviam num país ameaçado por rebeliões dos camponeses e ataques dos bárbaros, e ficaram cada vez menos interessados em fazer experimentos, com o que percebiam em grau crescente como uma importação estrangeira. A partir de então, a comunidade de conversos cristãos compreendeu principalmente pessoas comuns.
IHU On-Line - Qual é a situação da Companhia de Jesus hoje, nesse país?
Eugenio Menegon - Pelo que vi em minhas viagens à China nas últimas duas décadas, o trabalho que os jesuítas iniciaram nesse país está, de muitas formas, em harmonia com a abordagem de Ricci. Trata-se de uma abordagem de longo prazo, que abre mão de resultados imediatos em favor de um diálogo constante, silencioso. Essa abordagem começa com base em contatos e aspectos comuns em termos culturais e humanísticos, mediante atividades letivas na universidade, o estabelecimento de programas de pesquisa sino-estrangeiros conjuntos e o desenvolvimento de intercâmbios culturais entre intelectuais e estudantes chineses e seus colegas fora da China. Trata-se de uma abordagem que exige paciência e mostra uma fé fundamental na bondade da natureza humana e na importância do diálogo sem camisas de força ideológicas ou religiosas preconcebidas.