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Márcia Junges | Tradução Luís Marcos Sander
Nenhum estrangeiro podia viver na China, ser sepultado lá ou aprender chinês. Ricci superou todos esses tabus. Apesar de nunca ter se encontrado pessoalmente com o imperador Wanli, foi aceito e acolhido naquele país. Para Ricci, a mensagem religiosa e a ciência europeias compunham um todo integrado: “a astronomia fazia parte da matemática, a matemática fazia parte da filosofia, e a filosofia fazia parte da teologia, que é a ciência de Deus. Assim, não havia divisão ou distância ou oposição entre a ciência e a fé; com efeito, ambas eram vistas como parte da mesma formação e vindas de Deus”. A afirmação é do Pe. Gianni Criveller, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. De acordo com ele, Ricci não pode ser considerado apenas como agente de intercâmbio cultural e científico. “Ele foi bem mais do que isso”. Foi o responsável pela disseminação de disciplinas importantes na China, como a matemática, em especial a tradução dos livros de Euclides para o chinês, a astronomia e a cartografia. Os mapas de Ricci, por exemplo, trouxeram noções novas aos chineses, ao retratar as Américas.
Criveller explica que, ocasionalmente, Ricci é aclamado como uma espécie de precursor do diálogo inter-religioso: “Ricci de fato teve conversas e disputas com monges budistas proeminentes, mas ele criticava severamente e se opunha ao budismo, ao taoísmo e às religiões populares”. Para os chineses, era difícil aceitar a doutrina da encarnação e do sofrimento de Jesus, pois isso soava como uma humilhação do Senhor do Céu. Mas o grande traço fundamental do legado desse missionário jesuíta é a amizade: “Ricci era um homem capaz de aprender, aceitar e viver num ambiente estrangeiro como amigo, e não como inimigo. Ele estava aberto para a ‘diversidade do outro, diferente de mim’, sem medo nem agressividade”. E completa: “Se uma só palavra pudesse resumir a abordagem de Ricci para com a China, essa palavra seria ‘amizade’, um valor humanístico que Ricci apreciava e estimava muito. (...) A amizade pode, portanto, ser considerada um manifesto do projeto de Ricci: entrar na China pela porta pacífica da amizade”.
Gianni Criveller é missionário em Hong Kong, do Pontifício Instituto para as Missões Estrangeiras, congregação religiosa fundada na Itália. Doutor em História da Igreja na China, é um reconhecido pesquisador sobre Matteo Ricci.
Confira e entrevista.
IHU On-Line - O senhor afirma que Ricci e Aleni nunca se encontraram, mas suas vidas estavam estreitamente unidas. Quais são os aspectos que os aproximam?
Gianni Criveller - Provavelmente Aleni foi o missionário que melhor corporificou o legado apostólico de Ricci: a adoção do confucionismo como introdução ao cristianismo; o apostolado científico como parte integrante da evangelização; o método da acomodação; o apostolado através de livros. Além disso, Aleni escreveu a primeira Vida de Matteo Ricci redigida em chinês (1630). Aleni considerava Ricci seu mestre e modelo.
IHU On-Line - Qual é a importância de Ricci na disseminação do cristianismo no Oriente?
Gianni Criveller - Matteo Ricci levou o cristianismo para a China. Antes dele não havia cristãos na China; quando de sua morte, havia cinco residências de jesuítas e seis comunidades cristãs na China, nas principais cidades, todas elas (com exceção da de Xangai) fundadas pelo próprio Ricci. Esta é uma realização duradoura e notável, obtida enfrentando dificuldades de toda espécie: nenhum estrangeiro podia viver na China, nenhum estrangeiro podia aprender chinês, nenhum estrangeiro podia ser sepultado na China. Ricci superou todos esses tabus.
IHU On-Line - Quais são as peculiaridades de sua espiritualidade nesse país?
Gianni Criveller - É claro que o cristianismo é diferente de outras religiões chinesas porque se baseia na mensagem de Jesus Cristo, que os cristãos acreditam ser a encarnação da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Todos esses conceitos eram extremamente estranhos para os chineses e também difíceis de aceitar. A doutrina da encarnação e a do sofrimento de Jesus eram as mais difíceis de aceitar para os chineses porque eles as consideravam uma humilhação do Senhor do Céu. Para muitos chineses, imbuídos do neoconfucionismo imanente, a transcendência e pessoalidade de Deus (o Deus cristão é um Deus pessoal) também eram extremamente difíceis de aceitar. Outra dificuldade era o ensino moral: os missionários não permitiam aos cristãos chineses ter mais de uma esposa, numa época em que ter várias concubinas era uma prática comum. Muitos não entravam na igreja porque não conseguiam superar essa dificuldade.
IHU On-Line - Quais são os principais legados de Ricci à ciência oriental?
Gianni Criveller - Ricci introduziu na China muitas noções científicas estrangeiras, da Europa e do Renascimento, provenientes de disciplinas como a matemática, astronomia, cálculo do calendário, geografia, cartografia, medicina, física, arquitetura, linguística, fonética, filosofia, moral, belas artes, música e, naturalmente, teologia. Muitas pessoas veem Ricci apenas como um agente de intercâmbio cultural e científico. Entretanto, ele foi muito mais do que isso. Dentre as disciplinas mencionadas, são particularmente importantes a matemática, em especial a tradução dos livros de Euclides para o chinês, a astronomia e a cartografia (os mapas famosos de Ricci introduziram muitas noções estranhas aos chineses, como as Américas, por exemplo).
IHU On-Line - Em que ciências esse missionário jesuíta se destacou e como aconteceu o debate junto à corte imperial chinesa?
Gianni Criveller - No tocante às ciências, Ricci se destacou na China especialmente por causa de suas noções de matemática e cartografia. De fato, Ricci foi recebido na corte, mas nunca se encontrou pessoalmente com o imperador (o imperador Wanli só costumava se encontrar com alguns poucos eunucos, e com mais ninguém). Houve contatos entre o imperador e Ricci, mas por meio de terceiros. O imperador nunca respondeu aos pedidos que lhe foram enviados por Ricci; na verdade, o imperador Wanli nunca respondeu a quaisquer pedidos. Entretanto, é certo que Wanli tinha conhecimento de Ricci e de bom grado lhe permitiu ficar em Pequim, receber apoio do Estado e ser sepultado solenemente em solo imperial.
IHU On-Line - Como analisa o debate fé/ciência promovido por Ricci?
Gianni Criveller - Ricci considerava a mensagem religiosa e a ciência europeias um todo integrado: a astronomia fazia parte da matemática, a matemática fazia parte da filosofia, e a filosofia fazia parte da teologia, que é a ciência de Deus. Assim, não havia divisão ou distância ou oposição entre a ciência e a fé; com efeito, ambas eram vistas como parte da mesma formação e vindas de Deus (veja o famoso dito de Galileu : “O livro do Universo, que fica continuamente aberto a nosso olhar, não pode ser entendido a menos que se aprenda primeiro a compreender a linguagem e a ler os caracteres em que está escrito. Ele está escrito na linguagem da matemática”). Estudar ciência era estudar a Criação, isto é, a obra de Deus, de modo que estudar a ciência era conhecer a Deus. Na China, Ricci chamou seu ensino de “estudos celestiais” (tianxue); este termo tem um duplo sentido: ciência do céu físico (o firmamento, isto é, astronomia) e ciência do céu metafísico (Deus, isto é, a doutrina cristã). A separação ou até a oposição entre fé e ciência veio um século mais tarde, com o Iluminismo. Ricci não tem nada a ver com isso.
IHU On-Line - E quais são os impactos que deixou para o diálogo inter-religoso?
Gianni Criveller - Ocasionalmente, Ricci é aclamado como uma espécie de precursor do diálogo inter-religioso. Ricci, de fato, teve conversas e disputas com monges budistas proeminentes, mas ele criticava severamente e se opunha ao budismo, ao taoísmo e às religiões populares. Depois de passar dez anos na China, em 1595, Ricci abandonou seu hábito semelhante ao dos budistas e passou a usar o manto de seda dos homens de letras confucionistas. A partir de então, a melhor forma de resumir a atitude de Ricci para com a religião chinesa é a seguinte sentença de quatro caracteres: bu ru yi fo, “aperfeiçoe o confucionismo e substitua o budismo”. Ricci abriu um diálogo com o confucionismo, mas foi muito polêmico contra o budismo e incluiu argumentos antibudistas em seus livros.
IHU On-Line - Fazer-se chinês entre os chineses era um dos lemas de Ricci. Nesse sentido, ele foi um dos precursores da globalização? Por quê?
Gianni Criveller - A rigor, esse lema não era de Ricci, mas de seu companheiro Michele Ruggieri. Entretanto, Ricci escreveu frequentemente que se “adaptava” de todas as formas ao estilo de vida chinês. Ricci era um homem capaz de aprender, aceitar e viver num ambiente estrangeiro como amigo, e não como inimigo. Ele estava aberto para a “diversidade do outro, diferente de mim”, sem medo nem agressividade. Ele foi considerado por Joseph Needham um dos mais notáveis homens da história da humanidade porque colocou em contato duas das mais célebres civilizações da história da humanidade: a China da dinastia Ming e o Renascimento europeu. Sua lição e seu legado são muito importantes até mesmo na atualidade.
IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Gianni Criveller - Gostaria de dizer algo a respeito da amizade. Se uma só palavra pudesse resumir a abordagem de Ricci para com a China, essa palavra seria “amizade”, um valor humanístico que Ricci apreciava e estimava muito, junto com um amplo círculo de amigos, tanto europeus quanto chineses. Ele sempre se manteve em contato com eles, como manifesta sua extensa correspondência. De acordo com o sinólogo jesuíta contemporâneo Edward Malatesta , Ricci foi até um mártir da amizade. Sua morte precoce, em 11 de maio de 1611, na idade de 57 anos, deveu-se a um excesso de trabalho ao receber amigos e hóspedes e retribuir suas visitas. A amizade, Jiaoyou lun, foi, com exceção do mapa-múndi, o primeiro livro que Ricci escreveu em chinês, tendo sido publicado em 1595. Os amigos e conhecidos chineses de Ricci obviamente valorizavam seu amor ao aprendizado, seu desejo da verdade e estima da amizade, valores que também se encontravam em sua própria cultura antiga. A amizade é uma das cinco relações cardeais no pensamento social confucionista, uma relação baseada na participação voluntária, não no status comum, na mesma profissão ou no parentesco. Tendo recebido uma formação renascentista humanística, Ricci se sentiu muito à vontade nesse espírito de revisita aos clássicos e deve ter se sentido à vontade num mundo tão distante e, ainda assim, aparentemente tão próximo dele.
Ricci e seus amigos chineses viam na amizade um precioso ponto de encontro comum entre dois mundos que compartilhavam uma abordagem humanística da vida. A amizade pode, portanto, ser considerada um manifesto do projeto de Ricci: entrar na China pela porta pacífica da amizade. O livreto bem-sucedido, compilado em Nanchang, permitiu que Ricci abrisse essa porta. De acordo com os relatos dos jesuítas, as últimas palavras de Ricci antes de sua morte lembraram a imagem da porta: “Deixo a vocês uma porta aberta para grandes méritos, mas também para muito perigo e trabalho árduo.” A amizade foi a porta aberta por Ricci, embora os missionários depois dele nem sempre tenham conseguido manter essa porta aberta.