Edição 347 | 18 Outubro 2010

Uma missão de respeito e em pé de igualdade

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Márcia Junges | Tradução Luís Marcos Sander

 

IHU On-Line - Qual foi a importância da missão de Ricci na disseminação do catolicismo pelo mundo?

Qian Xiangyang - Em primeiro lugar, como disse o próprio Ricci, a China é uma das maiores pastagens que restam no mundo, na qual ele foi um dos primeiros pastores. Isto já é importante em si mesmo. Em segundo lugar, embora o próprio Ricci não estivesse satisfeito com sua obra, poder-se-ia dizer, levando em consideração o pano de fundo histórico, que ele foi muito bem sucedido, em vista do elevado reconhecimento que teve por parte do imperador e da aceitação por parte das pessoas às quais pregou o catolicismo. Em terceiro lugar, a forma como trabalhou ou a política que adotou poderia ser de grande valor para a disseminação do catolicismo em culturas estrangeiras por parte dos missionários do presente e do futuro.

IHU On-Line - Quais foram as principais contribuições de Ricci para a ciência na China?

Qian Xiangyang - Eu diria que a mais importante contribuição é a tradução dos primeiros Seis Livros dos Elementos, de Euclides. Isto contribuiu para o início da matemática moderna na China. Após comparar Euclides e os Nove livros de aritmética, que é um clássico chinês, Xu Guangqi, o cotradutor de Euclides, disse: “As técnicas [dos dois] são mais ou menos as mesmas, enquanto que o sentido interior está inteiramente ausente [no clássico chinês].” Com a tradução de Euclides, Ricci e Xu também estabeleceram o sistema terminológico chinês da geometria. Os termos chineses que designam o ponto, a linha, o plano e até a própria geometria foram decididos pelos dois e ainda são usados hoje em dia.

IHU On-Line - E no que tange à filosofia, quais foram as aproximações e diálogos que aconteceram àquela época entre Oriente e Ocidente?

Qian Xiangyang - No tocante à filosofia, Ricci discutiu com seus interlocutores chineses muitos temas, como, por exemplo, a religião, moralidade, ética, etc. Mas eu gostaria de mencionar especialmente um problema de epistemologia do qual o próprio Ricci talvez não estivesse plenamente consciente, mas para o qual ele contribuiu, até certo ponto, com a tradução de Euclides.
Como eu disse anteriormente, Xu descobriu as diferenças essenciais entre Euclides e o clássico chinês da aritmética. Mais tarde, isto levou a discussões epistemológicas a respeito de haver algo errado na forma chinesa de conhecer o mundo. Algumas pessoas sustentam que a forma chinesa de pensar é demasiado empírica e concreta e carece do estilo ocidental de racionalismo abstrato. Isto tende a ser compreendido como uma deficiência da cultura chinesa, como evidencia o conhecido texto de Mou Zongsan intitulado The concrete & abstract senses of the chinese, de 1936. O que também está relacionado com o problema da epistemologia é a chamada “Pergunta de Needham”: por que as ciências modernas surgiram no Ocidente, e não na China? Ela ainda é objeto de acalorada discussão na atualidade, mas também foi brevemente mencionada por Ricci.

IHU On-Line - Quais são as principais obras desse jesuíta? Qual é a atualidade desses escritos?

Qian Xiangyang - As seguintes são suas obras principais em chinês:
• O verdadeiro sentido do Senhor do céu: este é o primeiro livro de apresentação sistemática do catolicismo aos chineses, incluindo a existência de Deus, céu e inferno. Foi traduzido mais tarde para o mongol, manchu, coreano, vietnamita e japonês.
• Os seis primeiros livros de Euclides: cotraduzido com Xu Guangqi. Os termos chineses cunhados na tradução são usados ainda hoje.
• O grande mapa geográfico universal: a China está no centro do mapa. Ele contribuiu para a aceitação da civilização ocidental e do catolicismo entre a intelligentsia chinesa.
• A maravilha da escrita ocidental: o início do sistema fonético latino para os caracteres chineses.
• As vinte e cinco palavras: ensinamentos morais católicos.
• Os dez paradoxos: diálogos com dez eruditos chineses sobre os problemas da vida, da morte e outros temas relacionados à ética católica.
• A amizade: o primeiro livro de Ricci na língua chinesa, escrito originalmente para o filho de um funcionário chinês.
• As artes mnemônicas ocidentais: o método de memorização usado no Ocidente. A memória de Ricci foi outra qualidade que fez com que os intelectuais chineses o aceitassem.
• Escritos póstumos de debate e aprendizado: correspondências com alguns budistas publicadas em 1635.
• TONG WEN SUAN ZHI: escrito em 1583, em coautoria com Li Zhizao. O livro inclui a apresentação da matemática europeia com base na obra Epitome arithmeticae practicae, de Clavius, e nas obras de alguns matemáticos chineses da época. Ele poderia ser visto como uma tentativa de fundir a matemática chinesa e a ocidental.
• Outras obras sobre matemática e astronomia: Ce Liang Fa Yi, Huan Rong Jiao Yi, Hun Gai Tong Xian Tu Shuo.

IHU On-Line - Como se dá a presença da Igreja Católica na China de hoje?

Qian Xiangyang - De acordo com a estatística oficial, a China tem atualmente 1 bilhão, 18 mil clérigos e 4.600 igrejas e locais de encontro. A igreja está crescendo muito rapidamente hoje em dia, especialmente em áreas rurais e entre os aposentados nas cidades. Portanto, os números efetivos devem ser até maiores do que a estatística oficial. Muitos de meus parentes idosos em minha aldeia natal são bons exemplos disso. Embora nunca tenham ouvido falar de Deus durante a maior parte de sua vida, eles caminham quilômetros diversas vezes por semana, apesar de sua idade, para participar de reuniões regulares. Eles são fiéis, entusiasmados e bem organizados.

IHU On-Line - E qual é a influência de Ricci na cultura chinesa do século XXI?

Qian Xiangyang - Ricci merece uma posição na história da China como a ponte com a civilização ocidental. Mas, considerando sua influência no século XXI, eu diria que não só a cultura chinesa, mas todas as culturas do mundo têm algo a aprender dele em termos de comunicação e compreensão intercultural. O cerne da lição é distinguir as particularidades culturais da verdadeira universalidade. Deus, ou a verdade científica, ou os bens ou valores universais estão todos lá fora, além de nós. Nenhum indivíduo humano, raça ou forma cultural particular pode pretender que tem o conhecimento absoluto de Deus, da verdade ou do bem. Os desvios e as contingências no conhecimento são inevitáveis. Assim, neste mundo globalizado, sempre é essencial manter-se alerta: não confundir as particularidades culturais com a universalidade de Deus, da verdade ou do bem. Só se pode chegar mais perto do destino real depois da autonegação das próprias particularidades. E, como a missão de Ricci nos mostrou, culturas diferentes sempre ajudam a distinguir o destino real de nossas próprias particularidades. Por conseguinte, uma cultura estranha não é um testemunho, mas uma bênção.

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