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Márcia Junges | Tradução Luís Marcos Sander
“Ricci teve sucesso por várias razões. Em primeiro lugar, ele respeitava a cultura chinesa. Falava e escrevia bem chinês; aceitou o conselho de se vestir como um erudito chinês tradicional; praticava a etiqueta chinesa. Dessa forma, ganhou o respeito dos chineses. Só quando fosse, primeiro, aceito pessoalmente como um de ‘nós’, ele poderia ter a oportunidade de fazer com que seus ensinamentos religiosos fossem aceitos”. A afirmação é do advogado chinês Qian Xiangyang, em entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. De acordo com ele, “o que é especial na missão de Ricci é que ela era realizada numa atitude de respeito e em pé de igualdade, e não com a ajuda de soldados e da força, como pregavam outros missionários”. E completa: “Experiências com uma cultura estranha podem ser uma bênção para encontrar o verdadeiro sentido do Senhor de todas as raças. Neste sentido, a política de Ricci e sua aparente solução conciliatória podem ter seu fundamento bíblico”.
Qian Xiangyang nasceu em Shenxian, na Província de Shandong, na China. Advogado, é professor da Universidade de Sichuan desde 2005. Cursou Direito na Universidade de Edimburgo, e Língua Inglesa e Literatura na Universidade Sichuan. Também é graduado em Engenharia Mecânica pelo Shandong Light Industry College, na China. Escreveu The Principles of Positive Law: Meditations on the First Philosophy of Law (Commercial Press, 2007).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como se deu a inserção dos jesuítas na China? Quais foram os principais paradoxos desse encontro de culturas e religiões?
Qian Xiangyang - A inserção dos jesuítas não foi a primeira vez em que a China se encontrou com uma religião de fora. Esse país já tinha feito experiências semelhantes com o budismo e o islã, por exemplo. Entretanto, a cultura chinesa tende a sentir orgulho de sua natureza secular e, por conseguinte, tolerante com problemas espirituais. A cultura chinesa não parece ter um conceito como heresia ou herético, nem a incompatibilidade que muitas vezes o acompanha. Em consonância com isso, as religiões budista, taoísta, cristã e islâmica puderam ter uma longa história de coexistência dentro da cultura chinesa, o que poderia ser difícil para culturas baseadas numa religião. Embora tenha havido, ocasionalmente, perseguições contra religiões específicas, como o budismo, o taoísmo ou até o cristianismo, por parte dos imperadores, na maioria dos casos elas ocorreram por razões políticas, e não religiosas. Assim, quando os jesuítas chegaram com os ensinamentos novos e estrangeiros, não seria tão difícil aceitá-los se eles fossem entendidos como questões espirituais a serem exploradas, e não impostos como um problema de conversão que só admitisse um “sim” ou um “não”.
As exposições a respeito dos problemas da morte, da alma, etc. no livro de Ricci intitulado Os dez paradoxos, demonstram as diferenças existentes entre a cultura chinesa tradicional e o catolicismo. Entretanto, a publicação e popularidade do livro provaram que a China, enquanto cultura, não rejeitou a nova religião, mas, mais provavelmente, entendeu as novas ideias como compreensíveis e negociáveis, e não como paradoxos indissolúveis.
IHU On-Line - Por que a iniciativa de Matteo Ricci teve sucesso? O que ele fez para que os jesuítas fossem respeitados e aceitos no Império do Meio?
Qian Xiangyang - Ricci teve sucesso por várias razões. Em primeiro lugar, ele respeitava a cultura chinesa. Falava e escrevia bem chinês; aceitou o conselho de se vestir como um erudito chinês tradicional; praticava a etiqueta chinesa. Dessa forma, ganhou o respeito dos chineses. Só quando fosse, primeiro, aceito pessoalmente como um de “nós”, ele poderia ter a oportunidade de fazer com que seus ensinamentos religiosos fossem aceitos. Em segundo lugar, devem-se mencionar os progressos da civilização ocidental nas ciências. Ricci demonstrou seu grande conhecimento de geometria, astronomia, geografia, etc. e levou junto mapas, quadros, relógios, pianos, globo terrestre e outros dispositivos que eram novidade para os chineses. Tudo isso atraiu e fascinou a intelligentsia chinesa e foi, em consequência, útil para que a pregação moral e religiosa de Ricci fosse aceita. Sem o desenvolvimento da civilização ocidental nesses campos não religiosos, não teria havido Ricci nem seu sucesso.
Em terceiro lugar, ele foi amigo pessoal de chineses da classe alta. Embora não tenha conseguido batizar o imperador chinês, seu foco na elite da classe alta e sua habilidade nas relações pessoais foram um fator importante para seu sucesso. Outros fatores, como suas qualidades e talentos pessoais, também ajudaram.
IHU On-Line - Pode-se falar numa política de conversão realizada por Ricci? Por quê?
Qian Xiangyang - Pessoalmente, penso que sim, e acho que ela foi uma política importante. Em primeiro lugar, porque essa política era sustentada por respeito e igualdade, o que é essencial diante de uma cultura estrangeira e das pessoas que fazem parte dela. Não é a forma aparentemente arrogante do “eu converto você”, mas aparentemente uma “conversão mútua” para se encontrar um ao outro a meio caminho. Assim, quando de sua morte, Ricci se tornou o primeiro missionário ocidental a quem o imperador concedeu um local de sepultamento, porque “ele já é chinês”.
Em segundo lugar, nessa “conversão mútua”, o sentido central do ensino religioso não é abandonado por essa política, mas mantido rigorosamente no nível fundamental. Por exemplo: embora Ricci pudesse ser acusado por seus colegas ocidentais por usar vestes chinesas e aceitar rituais tradicionais de adoração dos ancestrais e valores confucionistas, ele nunca cedeu ante a forte tradição chinesa da poligamia, que era, obviamente, contrária aos ensinamentos católicos. Sua reinterpretação dos valores confucionistas e da adoração dos ancestrais em termos católicos parece necessária e semelhante à que acontece quando uma religião que está se disseminando topa com uma cultura estranha bem estabelecida, e algo semelhante já tinha acontecido nos primórdios da história do cristianismo quando este foi difundido entre os romanos e gregos.
Em terceiro lugar, a aparente solução conciliatória poderia ser tecnicamente interpretada como uma estratégia, mas é bem mais do que isso. Ela não contradiz necessariamente o ensino bíblico, mas poderia ser uma apreensão melhor dele. Deus está lá fora, além do poder humano, e nenhum ser humano pode estar certo de que seu próprio conhecimento de Deus é necessariamente mais verdadeiro do que o de outros. Experiências com uma cultura estranha podem ser uma bênção para encontrar o verdadeiro sentido do Senhor de todas as raças. Neste sentido, a política de Ricci e sua aparente solução conciliatória podem ter seu fundamento bíblico.
IHU On-Line - Quais são os principais pontos de contato e diálogo estabelecidos por esse jesuíta entre o Oriente e o Ocidente?
Qian Xiangyang – Eu cito quatro pontos fundamentais:
1) As ciências, especialmente a geometria, astronomia e geografia. Embora recentemente tenha surgido uma controvérsia entre pesquisadores chineses a respeito do conhecimento geográfico de Ricci, as ciências, aos olhos dos chineses, são sempre a parte mais valiosa na comunicação entre o Oriente e o Ocidente iniciada por Ricci.
2) A religião. O que é especial na missão de Ricci é que ela era realizada numa atitude de respeito e em pé de igualdade, e não com a ajuda de soldados e da força, como pregavam outros missionários. Infelizmente, esta última forma de missão era exatamente a que tinha sido feita na China desde o final do século XIX, o que também resultou na posterior suspensão do cristianismo no século XX e nos ressentimentos que muitos chineses instruídos têm para com a religião até mesmo na atualidade.
3) A língua. Ricci foi um dos antepassados na constituição do sistema fonético para os caracteres chineses usando o alfabeto latino, e o sistema Pinyin atualmente em uso é um dos resultados que se desenvolveram a partir dos esforços dele. Muitos termos chineses na matemática, na religião cristã, etc. foram cunhados por ele e seus colaboradores.
4) A sinologia. Ao mesmo tempo em que apresentava a civilização ocidental à China, a tradução de clássicos chineses feita por Ricci criou uma oportunidade para que os ocidentais conhecessem a China real. Diferentemente de Marco Polo, a apresentação da China feita por Ricci não se baseava apenas no que ouviu dizer.
IHU On-Line - Qual foi a importância da missão de Ricci na disseminação do catolicismo pelo mundo?
Qian Xiangyang - Em primeiro lugar, como disse o próprio Ricci, a China é uma das maiores pastagens que restam no mundo, na qual ele foi um dos primeiros pastores. Isto já é importante em si mesmo. Em segundo lugar, embora o próprio Ricci não estivesse satisfeito com sua obra, poder-se-ia dizer, levando em consideração o pano de fundo histórico, que ele foi muito bem sucedido, em vista do elevado reconhecimento que teve por parte do imperador e da aceitação por parte das pessoas às quais pregou o catolicismo. Em terceiro lugar, a forma como trabalhou ou a política que adotou poderia ser de grande valor para a disseminação do catolicismo em culturas estrangeiras por parte dos missionários do presente e do futuro.
IHU On-Line - Quais foram as principais contribuições de Ricci para a ciência na China?
Qian Xiangyang - Eu diria que a mais importante contribuição é a tradução dos primeiros Seis Livros dos Elementos, de Euclides. Isto contribuiu para o início da matemática moderna na China. Após comparar Euclides e os Nove livros de aritmética, que é um clássico chinês, Xu Guangqi, o cotradutor de Euclides, disse: “As técnicas [dos dois] são mais ou menos as mesmas, enquanto que o sentido interior está inteiramente ausente [no clássico chinês].” Com a tradução de Euclides, Ricci e Xu também estabeleceram o sistema terminológico chinês da geometria. Os termos chineses que designam o ponto, a linha, o plano e até a própria geometria foram decididos pelos dois e ainda são usados hoje em dia.
IHU On-Line - E no que tange à filosofia, quais foram as aproximações e diálogos que aconteceram àquela época entre Oriente e Ocidente?
Qian Xiangyang - No tocante à filosofia, Ricci discutiu com seus interlocutores chineses muitos temas, como, por exemplo, a religião, moralidade, ética, etc. Mas eu gostaria de mencionar especialmente um problema de epistemologia do qual o próprio Ricci talvez não estivesse plenamente consciente, mas para o qual ele contribuiu, até certo ponto, com a tradução de Euclides.
Como eu disse anteriormente, Xu descobriu as diferenças essenciais entre Euclides e o clássico chinês da aritmética. Mais tarde, isto levou a discussões epistemológicas a respeito de haver algo errado na forma chinesa de conhecer o mundo. Algumas pessoas sustentam que a forma chinesa de pensar é demasiado empírica e concreta e carece do estilo ocidental de racionalismo abstrato. Isto tende a ser compreendido como uma deficiência da cultura chinesa, como evidencia o conhecido texto de Mou Zongsan intitulado The concrete & abstract senses of the chinese, de 1936. O que também está relacionado com o problema da epistemologia é a chamada “Pergunta de Needham”: por que as ciências modernas surgiram no Ocidente, e não na China? Ela ainda é objeto de acalorada discussão na atualidade, mas também foi brevemente mencionada por Ricci.
IHU On-Line - Quais são as principais obras desse jesuíta? Qual é a atualidade desses escritos?
Qian Xiangyang - As seguintes são suas obras principais em chinês:
• O verdadeiro sentido do Senhor do céu: este é o primeiro livro de apresentação sistemática do catolicismo aos chineses, incluindo a existência de Deus, céu e inferno. Foi traduzido mais tarde para o mongol, manchu, coreano, vietnamita e japonês.
• Os seis primeiros livros de Euclides: cotraduzido com Xu Guangqi. Os termos chineses cunhados na tradução são usados ainda hoje.
• O grande mapa geográfico universal: a China está no centro do mapa. Ele contribuiu para a aceitação da civilização ocidental e do catolicismo entre a intelligentsia chinesa.
• A maravilha da escrita ocidental: o início do sistema fonético latino para os caracteres chineses.
• As vinte e cinco palavras: ensinamentos morais católicos.
• Os dez paradoxos: diálogos com dez eruditos chineses sobre os problemas da vida, da morte e outros temas relacionados à ética católica.
• A amizade: o primeiro livro de Ricci na língua chinesa, escrito originalmente para o filho de um funcionário chinês.
• As artes mnemônicas ocidentais: o método de memorização usado no Ocidente. A memória de Ricci foi outra qualidade que fez com que os intelectuais chineses o aceitassem.
• Escritos póstumos de debate e aprendizado: correspondências com alguns budistas publicadas em 1635.
• TONG WEN SUAN ZHI: escrito em 1583, em coautoria com Li Zhizao. O livro inclui a apresentação da matemática europeia com base na obra Epitome arithmeticae practicae, de Clavius, e nas obras de alguns matemáticos chineses da época. Ele poderia ser visto como uma tentativa de fundir a matemática chinesa e a ocidental.
• Outras obras sobre matemática e astronomia: Ce Liang Fa Yi, Huan Rong Jiao Yi, Hun Gai Tong Xian Tu Shuo.
IHU On-Line - Como se dá a presença da Igreja Católica na China de hoje?
Qian Xiangyang - De acordo com a estatística oficial, a China tem atualmente 1 bilhão, 18 mil clérigos e 4.600 igrejas e locais de encontro. A igreja está crescendo muito rapidamente hoje em dia, especialmente em áreas rurais e entre os aposentados nas cidades. Portanto, os números efetivos devem ser até maiores do que a estatística oficial. Muitos de meus parentes idosos em minha aldeia natal são bons exemplos disso. Embora nunca tenham ouvido falar de Deus durante a maior parte de sua vida, eles caminham quilômetros diversas vezes por semana, apesar de sua idade, para participar de reuniões regulares. Eles são fiéis, entusiasmados e bem organizados.
IHU On-Line - E qual é a influência de Ricci na cultura chinesa do século XXI?
Qian Xiangyang - Ricci merece uma posição na história da China como a ponte com a civilização ocidental. Mas, considerando sua influência no século XXI, eu diria que não só a cultura chinesa, mas todas as culturas do mundo têm algo a aprender dele em termos de comunicação e compreensão intercultural. O cerne da lição é distinguir as particularidades culturais da verdadeira universalidade. Deus, ou a verdade científica, ou os bens ou valores universais estão todos lá fora, além de nós. Nenhum indivíduo humano, raça ou forma cultural particular pode pretender que tem o conhecimento absoluto de Deus, da verdade ou do bem. Os desvios e as contingências no conhecimento são inevitáveis. Assim, neste mundo globalizado, sempre é essencial manter-se alerta: não confundir as particularidades culturais com a universalidade de Deus, da verdade ou do bem. Só se pode chegar mais perto do destino real depois da autonegação das próprias particularidades. E, como a missão de Ricci nos mostrou, culturas diferentes sempre ajudam a distinguir o destino real de nossas próprias particularidades. Por conseguinte, uma cultura estranha não é um testemunho, mas uma bênção.