Edição 347 | 18 Outubro 2010

Um ocidental modelado pelos chineses

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Nicolas Standaert | Tradução Luís Marcos Sander

 

Relacionamentos e estruturas sociais chinesas

2) A propagação “de cima” é uma segunda área na qual o papel do Outro pode ser amplamente demonstrado. Em primeiro lugar, deve salientar-se que o motivo da “subida de Ricci a Pequim”  não foi necessariamente a conversão do imperador. O objetivo inicial de Ricci, tal como expresso no seu Della entrata, não era chegar a Pequim, mas apenas ter uma residência no continente. Foi por causa de muitas dificuldades que os jesuítas encontraram na obtenção de permissão para entrar na China e no estabelecimento de uma residência permanente lá, que progressivamente planejaram ir para Pequim, a fim de obter o apoio do “Rei da China”.  Nessa mudança para Pequim, eles dependeram amplamente da elite.  Houve certamente decisões pró-ativas ou planejadas por Ricci e seus companheiros: eles preferiram o centro à periferia e eles escolheram viver em uma cidade, e não no campo. “Centro” significava o centro administrativo, o local com maior concentração de magistrados e letrados. Assim, eles preferiram Zhaoqing a Cantão, porque o governador estava residindo em Zhaoqing, e Cantão foi apenas a segunda opção.  E embora Ricci fosse convidado a permanecer em Nanchang, capital da província de Jiangxi, ele preferiu ir para Nanquim, que era mais importante, porque foi a Capital do Sul;  mas, quando ele não pode permanecer em Nanquim, escolheu voltar para Nanchang.  A escolha da cidade foi bastante, obviamente, relacionada com a escolha do centro.
Mas essas decisões pró-ativas ou planejadas por Ricci deviam ser suplementadas por duas decisões guiadas ou reativas, que eram tão importantes, senão mais importantes: muitas mudanças foram organizadas por meio de relações pessoais (guanxi) e um número de residências foi estabelecido, porque os jesuítas foram expulsos ou porque não tinham permissão para viver em determinados lugares. Em ambas as decisões, o Outro desempenhou um papel fundamental. O conceito de guanxi, ou relacionamentos, é fundamental para qualquer compreensão das estruturas sociais chinesas. Ela denota uma parte essencial da construção de rede dentro da vida social chinesa. As muitas dificuldades encontradas por Ricci e seus companheiros na tentativa de estabelecer uma residência em várias cidades muitas vezes são atribuídas ao fato de que eles eram estrangeiros. Enquanto isso é certamente verdade, os jesuítas também não tinham o guanxi necessário para garantir os recursos sociais necessários para seus objetivos. Eles não tinham atributos comuns: eles não poderiam se referir a um parentesco comum, a uma localidade, a uma religião ou a uma experiência de exame. A sociedade chinesa muito rapidamente tornou os jesuítas conscientes da importância dessa construção de rede e a originalidade de Ricci é ter entendido isso. Os jesuítas levaram um longo tempo; mas, depois de mais de dez anos, eles conseguiram adquirir alguns “atributos”. Os dois mais importantes foram o seu comportamento como chineses letrados e, subsequentemente, a criação de uma rede baseada em rituais cristãos comuns.

O papel do Outro mediado pelo guanxi tornou-se muito importante na mudança do sul para o norte do país e a criação de novos postos de missão, e as decisões dos jesuítas foram tomadas em resposta à iniciativa ou às circunstâncias desses guanxi. O caso de Michele Ruggieri viajando para Shaoxing (Zhejiang) é um bom exemplo dessa tomada de decisão reativa ou guiada.  Ele não estava viajando para Shaoxing por causa de uma decisão planejada de sua parte, mas sim porque ele tinha um guanxi que iria viajar para Shaoxing e que queria levar Ruggieri consigo. Outro padrão está intimamente ligado a esse. Os chineses convertidos fixar-se-iam em um novo lugar (ou retornariam ao seu local de origem), expandiriam a rede de fiéis, e, em seguida, convidariam um missionário. Esse padrão se tornava mais comuns na medida em que a comunidade de crentes aumentava e chegava a incluir alguns convertidos de maior prestígio social (especialmente depois de 1600). Aqui estão algumas estruturas da vida administrativa chinesa que desempenharam um papel importante. Tal como outros letrados, os letrados cristãos mudavam de escritórios regularmente (em princípio, de três em três anos), ou voltavam para suas cidades de origem. Suas mudanças precediam as dos missionários. Novamente, essas escolhas não foram efetivamente planejadas pelos jesuítas. A criação da comunidade em Xangai é um bom exemplo. Paulo Xu Guangqi isolou-se lá (em 1607) para três anos de luto pela morte de seu pai. Durante este período, Xu convidou os jesuítas para Xangai. A decisão de estabelecer uma comunidade lá não foi certamente inspirada pelas tendências dos jesuítas para o centro. Xangai não era a cidade que se tornou no século XIX, e os jesuítas sabiam que o seu estatuto administrativo era menor.  A escolha aqui foi principalmente baseada no relacionamento pessoal, ligado ao atributo de fé religiosa comum.

Expulsões

Outra forma de estabelecer uma comunidade em determinada cidade também foi feita em reação às decisões tomadas por outros: os jesuítas decidiram estabelecer-se em um lugar porque não foram autorizados a instalar-se no local de sua escolha original. Em alguns casos, isso era ligado à expulsão direta. Após a expulsão de Zhaoqing, em vez de voltar a Macau, Ricci atreveu-se a pedir a permissão do Vice-Rei para ir para algum outro lugar. “Foi-lhe dito, então, que qualquer outra cidade dentro da província de Guangdong estava aberta para a escolha, com exceção de Zhaoqing, a sede do vice-reinado, e Cantão, a capital. Em qualquer uma delas a presença prolongada de estrangeiros não seria tolerada.”   Ele então escolheu Shaozhou. Poucos anos depois, os jesuítas estabeleceram-se em Nanchang, província de Jiangxi, principalmente porque foi-lhes originalmente negada permissão para se estabelecerem em Nanquim; mais tarde, estabeleceram-se em Nanquim, porque não poderiam permanecer em Pequim. Paradoxalmente, se não lhes tivesse sido recusada a autorização para permanecer em Nanquim ou Pequim, provavelmente nunca teriam estabelecido uma residência em Nanchang ou Nanquim.
Em suma, a expansão do cristianismo por Ricci e seus companheiros jesuítas, conheceu uma ampla e rápida radiação. Isto se deveu, pelo menos, a várias características do Outro: a importância das relações pessoais e construção de redes na sociedade chinesa, e do potencial de alta mobilidade da elite. Além disso, também lhes recusaram permanecer em determinados lugares e, então, eles tinham de mudar-se. Ricci e seus companheiros foram, assim, guiados nas suas decisões a respeito de para onde ir pelo Outro, e essa foi a forma predominante de difusão do cristianismo nos últimos tempos da dinastia Ming.

Jesuítas alquimistas?

3) A utilização da ciência a serviço da propagação da fé também foi em grande parte determinada pelo Outro, como pode ser demonstrado nos escritos dos jesuítas e seus convertidos. A primeira apresentação da ciência europeia foi feita sob a forma de curiosidades, como um relógio e prismas, de modo que, no início, os jesuítas eram considerados alquimistas. Os primeiros escritos dos jesuítas, no entanto, (isto é, o que eles escreveram, com apenas uma influência limitada do Outro), não eram científicos, mas inteiramente de natureza religiosa e catequética. Foi devido à busca dos estudiosos chineses, que não podiam acreditar que estudiosos educados poderiam vir de tão longe, que Ricci engajou-se na composição de uma versão chinesa do mapa do mundo que ele tinha em seu quarto, a fim de mostrar de onde veio.  Um passo complementar foi a tradução de obras sobre matemática e astronomia. Muitos estudiosos têm assinalado que essa tradução teve lugar no contexto específico de aprendizagem dos últimos anos da dinastia Ming. Se os estudiosos chineses estavam interessados na ciência trazida pelos jesuítas, foi porque, antes de sua chegada, letrados chineses desenvolveram um interesse na aprendizagem prática. A busca por “aprendizagem sólida” ou “estudos concretos” (shixue) foi uma reação contra alguns movimentos intuicionista originários da escola Wang Yangming no final do século XVI. De acordo com Wang Yangming (1472-1528), os princípios de ação moral encontravam-se inteiramente dentro da mente e do coração (Xin) e não fora deles. No início do século XVII, o movimento intelectual e político influente dos pensadores Donglin reestabeleceu a importância das “coisas no mundo”. Funcionários e acadêmicos buscaram estratégias concretas para salvar o país da decadência.  É essa busca anterior que levou à interação única entre os letrados chineses e os jesuítas. Os próprios jesuítas não estavam inicialmente muito interessados em traduzir obras de matemática, mas, em resposta à insistência dos conversos, como Xu Guangqi, eles repetidamente dedicaram-se a esse longo e demorado tipo de atividades. Posteriormente, essa insistência dos chineses (convertidos) em aprendizado prático foi uma das razões que impediram os jesuítas de envolverem-se em projetos como a tradução da Bíblia.
Os primeiros missionários como Ricci não tinham formação específica em Ciências (mesmo se fossem versados nelas), e não foram enviados para a difusão de conhecimentos científicos. Só mais tarde, os missionários com uma formação científica específica foram enviados para responder à demanda do Outro e para garantir a proteção da igreja pelo Tribunal chinês. A aceitação das ciências ocidentais pelos chineses confirma, assim, um consenso geral sobre a interpretação de intercâmbio cultural: quando um elemento externo é aceito com relativa facilidade por uma cultura em que ela foi introduzida, essa aceitação é devido à presença de alguma disposição interna ou movimento para aceitar o novo elemento.

O que é verdade no campo das ciências também é verdade no que diz respeito aos ensinamentos morais dos jesuítas, que foram aceitos porque combinavam com a busca dos pensadores Donglin por uma moral heterônoma. Além disso, a tradução em grande escala e a publicação de escritos ocidentais só foi possível porque a dinastia Ming tardia tinha um sistema muito desenvolvido (privado) de edição e impressão. Assim, os jesuítas não tiveram de introduzir a imprensa. Além disso, ao contrário da Europa, não havia censura de pré-impressão na China. Como resultado, o contexto chinês permitiu aos jesuítas pôr plenamente em prática seu “Apostolado por intermédio de Livros”  e expressar livremente suas ideias.

Ritos funerários

4) Tolerância para com os ritos confucianos. Aqui também o imperativo cultural do Outro desempenhou um papel determinante (como não o fez no Japão). Por causa do poder do confucionismo como uma religião difundida, o cristianismo, como o budismo, o judaísmo e outras religiões marginais, teve de aceitar a ortodoxia do Estado e as tradições rituais do Confucionismo. As rejeições públicas e repetidas dos ritos, aprovadas pelo Estado (e constantes do oficial “Cânon dos Sacrifícios”), teriam causado aos missionários sua rotulação como “heterodoxos” e sua rejeição (como aconteceu mais tarde para os missionários e as delegações papais em várias ocasiões durante a Controvérsia dos Ritos ). No entanto, durante os primeiros anos do período de Ricci, houve toda uma evolução em sua atitude, que se tornou mais tolerante devido à presença do Outro. Isso pode ser claramente observado a partir da atitude dos missionários em relação aos funerais, que eram, e ainda são, o mais importante ritual de passagem na China.
No início, os jesuítas mal tinham consciência que a importância dos ritos funerários na China teria consequências para si próprios. Por exemplo, quando Antônio de Almeida (1557-1591) morreu em Shaozhou (Guangdong), os chineses não conseguiam entender porque Ricci e seus companheiros não usavam um traje de luto. Os jesuítas, Ricci afirma, explicaram que “nós religiosos, quando entramos na religião, somos como mortos para o mundo e, portanto, não damos grande importância a isso.” Assim, os jesuítas não se adaptavam aos costumes locais, exceto por comprar de um caixão de primeira classe, “a fim de mostrar aos chineses a qualidade dos padres, porque nisso eles demonstravam sua maneira de honrar os mortos”. A principal razão para comprar um caixão, no entanto, de acordo com a explicação de Ricci, era que não podiam enterrar de Almeida em uma igreja, como teria sido feito na Europa, e os jesuítas não queriam seguir a prática chinesa de enterrá-lo “em uma colina distante da casa”. Posteriormente, o caixão foi mantido em sua residência por dois anos, até que ele foi enterrado em Macau.

No que diz respeito aos rituais funerários específicos, nesses primeiros anos, os jesuítas adotaram uma abordagem que pode ser qualificada como purista em relação à tradição cristã e excludente em relação às tradições chinesas. Em geral, Ricci e seus companheiros jesuítas eram menos tolerantes nos estágios iniciais de suas atividades missionárias que, mais tarde. Porém, ao fazer isso, eles não aderem a um regulamento específico. Se a morte ocorresse, a prioridade dos jesuítas era a de enterrar o defunto — chineses cristãos ou missionários estrangeiros — de acordo com os ritos cristãos. Houve pouca vontade para adaptarem-se aos costumes — normalmente confucionistas — locais. A abstenção de ritos locais pelos cristãos foi vista pelos jesuítas como um sinal para ajudar a fortalecer e difundir a fé cristã. Só gradualmente alguns costumes funerários chineses foram aceitos. Isso aconteceu primeiro pela própria iniciativa dos chineses, e foi, em grande parte, devido à rede em que o jesuíta falecido ou cristão tinha sido envolvido. Enquanto a rede era muito pequena, o funeral pôde ser limitado a uma cerimônia exclusivamente cristã. Quando essa rede ficou maior, no entanto, as possibilidades de interação com práticas de funerais chinesas aumentaram.
É típico para os funerais ser um ritual “aberto”. Por exemplo, quando o jesuíta João Soerio morreu em Nanchang, em 1607, seus companheiros jesuítas não “expressaram a seus sentimentos, como era habitual na China”, porque eles “não correspondem à nossa profissão”. Ainda assim, seus amigos, vestidos de luto, vieram à sua casa para dar-lhes as condolências. Esses amigos chineses instalaram um esquife e cobriram-no como se seu corpo estivesse lá. “Eles fizeram quatro genuflexões, e, a cada vez, tocaram com a cabeça no chão.” Muitos, disse-se, lamentaram a morte do jesuíta, dessa forma tradicional.  Imperativos semelhantes para a adaptação ocorreu quando os cristãos de status social relativamente elevado morreram, como foi o caso com o pai de Xu Guangqi (1562-1633), que faleceu em Pequim em 23 de maio de 1607, no mesmo ano que Soerio. A descrição no Della entrata de Ricci faz várias referências a práticas chinesas como as extensas cerimônias de condolências, o caixão caro, e o vestido branco de luto.  Como as comunidades cristãs continuavam a crescer, a interação com os rituais locais também aumentou.

A morte de Matteo Ricci, em Pequim, em 1610, foi um ponto de viragem em alguns aspectos, porque os seus funerais e enterro foram a causa dos próprios jesuítas envolverem-se mais nos costumes funerários chineses. O primeiro passo crítico foi a decisão sobre o local de sua sepultura. Por iniciativa de um convertido ao cristianismo, os jesuítas pediram ao imperador chinês que oferecesse um cemitério adequado. Esse enterro no continente era contrário à prática dos sepultamentos dos jesuítas em Macau, até então. Nesse ínterim, o cadáver de Ricci foi mantido em um caixão chinês tradicional. Embora algumas práticas chinesas, tais como o hábito das condolências, fossem aceitas, outras, como o cortejo fúnebre, só foram aplicadas de forma limitada, porque a procissão chinesa foi considerada semelhante a um ato de “triunfo”, e não estava em conformidade com os ideais jesuítas da pobreza e da modéstia. No dia do enterro propriamente dito, 1º de novembro de 1611, todas as cerimônias cristãs habituais foram celebradas: a recitação do Ofício dos Mortos, a missa fúnebre, uma procissão eclesiástica, e as orações no túmulo diante de uma pintura de Cristo. Mas, no final, houve também alguns ritos chineses: “Muitos dias depois, vinham em massa amigos gentios para realizar seus ritos habituais para o defunto.”  Assim foi a presença do chinês que trouxe uma mudança gradual na abordagem hesitante dos missionários. Como Johannes Bettray demonstrou, após 30 anos de presença na China, os missionários jesuítas estavam, aparentemente, permitindo o desempenho desses costumes locais específicos. 

Conclusão

Olhando Ricci, podem-se perceber várias características que podem ser rotuladas como método “Ricci”. No entanto, esse método tem sido frequentemente apresentado como o resultado do self pró-ativo à negligência da influência do Outro. Nessa contribuição, tentei mostrar que o papel do Outro na formação da identidade de Ricci é certamente tão importante quanto a atividade do self de Ricci. Embora Ricci pudesse ter reagido de forma diferente da que ele fez, em todos os casos, o Outro desempenhou um papel decisivo nas reações que ele mostrou. Pode-se afirmar até que o Outro possibilitou a Ricci tornar-se quem ele se tornou. Sem o Outro, isso não teria sido possível.

Leia mais...

>> Confira outras entrevistas concedidas por Nicolas Standaert à IHU On-Line.
 
* Os jesuítas e a cultura chinesa. Edição número 330, revista IHU On-Line, de 26-06-2006; 
* “O caminho chinês. A contribuição da China para o mundo”. Notícias do Dia 28-06-2008.

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