Edição 346 | 04 Outubro 2010

A terra, os pobres, os animais: uma visão ecológica da vida

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Moisés Sbardelotto

A Criação é o espaço de vida para todos os elementos do universo. Por isso, afirma o teólogo luterano Haroldo Reimer, há a necessidade de tempos de pausa, de descanso, de ócio. Como diria um famoso pensador judeu, o “sábado da criação abre o mundo para a eternidade”

Para compreender a natureza como Criação, é necessário partir, justamente, da Bíblia, onde o cosmos é narrado a partir de um ato criador de Deus, conforme o livro do Gênesis. Para o teólogo luterano Haroldo Reimer, pesquisador do Antigo Testamento e defensor de uma “hermenêutica ecológica” dos relatos bíblicos, “a Criação é o espaço cultural engendrado por Deus em meio ao caos”. Por isso, momentos como o “Tempo para a Criação” ou a Campanha 10:10:10 são espaços de celebração em que “as pessoas e as comunidades de fé podem contribuir com elementos próprios de sua tradição, lida e interpretada à luz das demandas ambientais atuais, para a criação de uma consciência ecológica e a formatação de uma ética ambiental de cuidado”, afirma, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Porém, diante das mudanças climáticas, é preciso buscar um novo ethos ecológico, que ultrapasse o mandato de “crescer e se multiplicar” da Bíblia – que “hoje precisa ser revisto”, segundo Reimer – e que revalorize o outro binômio no conjunto dos textos bíblicos, que ressalta a dimensão do “cultivar e guardar”. Por isso, os pobres, os animais e a terra “devem ser pensados como elementos integrantes de uma mesma grande casa”, defende o teólogo. Nesse sentido, Reimer propõe uma releitura instigante do relato de Deuteronômio 23, 12-15, em que esgoto e santidade estão intimamente relacionados. Por meio de um gesto muito humano e ao mesmo tempo repugnante, o texto bíblico convida a reconhecer concretamente os resultados da ação humana no ambiente.

Haroldo Reimer é teólogo luterano, doutor em Teologia pela Kirchliche Hochschule Bethel, da Alemanha, e pós-doutorando em História pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. É também professor da Pontifícia Universidade Católica de Goiás - PUC-Goiás e da Universidade Estadual de Goiás - UEG. Também é docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião e do Programa de Pós-Graduação em História da PUC-Goiás. É autor, dentre outros, de Toda a Criação: Bíblia e Ecologia (Oikos Editora, 2006) e Gênesis – Casa Comum: Espaço da Vida, Cuidado e Felicidade (Cebi, 2007).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em termos bíblicos, qual a importância e o significado do conceito “Criação”?

Haroldo Reimer – O termo “Criação” está profundamente assentado no imaginário religioso ocidental. Trata-se, pois, de um conceito importante. Ele tem a sua base no chamado relato da Criação nos capítulos iniciais do livro bíblico de Gênesis. Trata-se de um texto fundamental para assentar a ideia de que o mundo ou o cosmo, tal como nós o conhecemos, é resultado da ação criadora de um Deus transcendente. Este, num conjunto de ações criadoras, distribuídas nos seis dias da criação, teria disposto os elementos constitutivos do mundo natural, atribuindo ordem e sentido ao mundo criado. Esses conteúdos marcaram e continuam a marcar o jeito de pensar de milhões de pessoas, que deduzem desse relato um sentido para a sua própria existência e sua relação com o entorno ambiental. Desde a Antiguidade, passando pela Idade Média, a ideia deste Deus criador foi amalgamada com ideias provenientes do mundo filosófico grego, como, por exemplo, a ideia do motor não movido de Aristóteles, o qual é entendido filosoficamente como a causa não gerada de todos os elementos do mundo natural.

Hoje, a partir do estado de questão da pesquisa, se reconhece o relato da Criação no livro de Gênesis como uma narrativa mítica, por meio da qual a comunidade dos antigos hebreus, por meio de seus mentores intelectuais, projeta a origem última de seu mundo, bem como a ordem e o sentido dos elementos existentes neste universo criado pela ação ou palavra criadora de Deus. O mito é entendido aqui em sentido positivo como uma forma de linguagem da qual se utilizam as religiões e/ou as comunidades para expressar reconhecimentos profundos de sua estrutura cultural. Mitos transcendem culturas determinadas, revelando diálogo com outros grupos. Há sempre elementos justificadores de estruturas presentes nos relatos míticos, reveladores também da estrutura e das relações de poder no tempo da formatação dos relatos.
No relato bíblico, criação é o espaço cultural engendrado por Deus em meio ao caos. Essa dimensão é importante: criação é intervenção no ambiente no sentido de um ordenamento. Há passagens em que o verbo hebraico “criar” designa, por exemplo, abertura de clareiras em meio à mata para a instalação de estruturas que permitem a vida comunitária. Também a aço de instalação de aldeias ou cidades pode ser designado como um ato criador, tendo, neste caso, a ação humana como elemento constitutivo. Em alguns relatos do entorno cultural do antigo Israel, isto é, do mundo do antigo Oriente próximo, a ação de reis metamorfoseada de ação divina resulta na criação de cidades.

No caso das páginas iniciais do livro de Gênesis, o mundo criado, isto é, ordenado pela palavra da divindade, resulta no espaço vital para os humanos em compartilhamento com os demais elementos da Criação, isto é, do mundo natural entendido como criado. Os humanos fazem parte de uma “comunidade da Criação”. Dentro dela, os humanos ocupam posição de destaque, tal como a noção de “imagem e semelhança”. Também ocupam funções de governança. Essa atividade de governança é expressa por modos distintos. Em geral prevalece no imaginário a noção de subjugação e domínio, registrada em Gênesis 1, 26-18. Mas, ao lado dessa atuação autoritária e violenta, outra passagem insiste em dizer que a tarefa dos humanos consiste em “cultivar e guardar”. Este binômio deve ser recepcionado mais fortemente hoje em dia face aos desafios ambientais.

Importante também é reconhecer, que no relato da criação, os elementos da natureza não humana têm seu valor próprio, intrínseco, desvinculado de sua funcionalidade em favor dos humanos. O próprio relato, estruturado numa dinâmica de sete dias, é revelador de uma estrutura de tempo. O tempo de trabalho e intervenção no ambiente está restrito a seis dias, devendo prevalecer no sétimo dia um tempo de graça e descanso. Solenemente se afirma no relato que, neste dia, o próprio Deus descansou (hebraico: shabat) de seus afazeres, abençoando esse tempo de descanso e ócio ou também de oração e reflexão. Na mentalidade hebraica, com extensa recepção no mundo cristão, o dia de descanso se revela importante como um tempo para a própria criação, isto é, os humanos e o próprio ambiente natural, possam recompor as suas energias. O dia de descanso não está destinado somente para os humanos, mas também os animais e a própria terra devem poder descansar neste tempo especial (cf. Êxodo 20,8-11; Êxodo 23,10-12). Especial destaque sempre é dado também aos pobres. Aqui se revela a noção de que a criação é o espaço de vida para todos os elementos do universo e que, além da necessidade de intervenção constante no ambiente, há a necessidade de tempos de pausa, de descanso, de ócio. Um famoso pensador judeu se expressou dizendo que o “sábado da criação abre o mundo para a eternidade”.
Esses são elementos que podem e devem ser trazidos à memória das pessoas e das comunidades que celebram, refletem e oram pela integridade da criação.

IHU On-Line – O tema proposto para este ano é Criação florescente: Um momento para a celebração e o cuidado. Como esses dois aspectos – celebração e cuidado da Criação – podem ser compreendidos bíblica e teologicamente?

Haroldo Reimer – A dimensão celebrativa brota da fé, do reconhecimento profundo de que o mundo existente é fruto da ação criadora, mantenedora e recriadora de Deus. Deriva também da consciência das pessoas e das comunidades que creem em Deus de que elas têm tarefas proféticas e constantemente trazem à memória elementos fundantes da relação dos humanos com o ambiente como expressão de seu próprio modo de crer. Uma comunidade que celebra pode advertir profeticamente as pessoas e o mundo acerca de sua forma de vida muitas vezes devastadora do ambiente. Por meio da celebração, as pessoas podem lograr obter subsídios para reordenar a sua relação com o ambiente. Nesse sentido, o papel das igrejas e das comunidades de fé é esboçar e projetar possibilidades de vivência e de relações que impliquem em relações de cuidado. O termo “cuidado”, aqui, é entendido como indicador para um paradigma ecológico, resultado de uma “mutação” no jeito de pensar. Indica uma ética de responsabilidade para com as gerações presentes e futuras, como foi bem expresso pelo filósofo judeu-alemão Hans Jonas. Esse é um ideário recepcionado em muitas normas e textos legislativos em países democráticos. Pela celebração, as pessoas e as comunidades de fé podem contribuir com elementos próprios de sua tradição, lida e interpretada à luz das demandas ambientais atuais, para a criação de uma consciência ecológica e a formatação de uma ética ambiental de cuidado. Relembrar, por exemplo, que o descanso ou o ócio faz parte da existência humana e que esta não se resume e se plenifica no trabalho incessante, na ininterrupta intervenção no ambiente ou no consumo excessivo, é um serviço importante da celebração. Assim, as duas coisas podem e devem andar juntas: em fé, celebrar pela Criação entendida como dádiva divina e, em ações (respostas), ajudar a propor caminhos de existência sustentável.

IHU On-Line – O senhor fala de uma “hermenêutica ecológica”. De que forma os relatos bíblicos podem nos inspirar a assumir uma nova postura com relação à Criação? Que relatos “ecológicos” estão presentes na Bíblia e que podem nos servir de inspiração?

Haroldo Reimer – Hermenêutica é um termo muito em uso na atualidade. Alguns autores até dizem que vivemos um tempo hermenêutico. Eu utilizo o termo no sentido clássico de “arte e ciências dos processos interpretativos”. É uma arte, que se pode ter por dom ou que se aprimora pelo cultivo. É algo que lembra a dimensão artística ou o virtuosismo. Nos processos interpretativos, podem ser potencializados elementos ou perspectivas distintas que revelam existencialidades e dimensões históricas do sujeito interpretante.
Falar de uma “hermenêutica ecológica” significa estabelecer um diálogo frutífero entre os desafios ou as demandas das crises ambientais e as projeções utópicas ou heterotópicas de futuro. O elemento fundante é a ideia de que o mundo em que vivemos é o espaço de vida que temos e que precisamos preservar. Essas são noções que derivam de reconhecimentos das últimas três ou quatro décadas, basicamente a partir do momento em que o “mundo moderno” começou a se dar conta da finitude dos recursos naturais. A partir daí se abriu a possibilidade de analisar criticamente a própria ação coletiva dos humanos na “aldeia global”.
Uma hermenêutica ecológica aplicada aos textos bíblicos implica em buscar ler textos bíblicos em perspectiva ecológica, isto é, em sintonia com demandas e crises ambientais e com projeções de vida integral para as gerações presentes e futuras. Aí é o sujeito interpretante que interroga os textos bíblicos acerca de seu potencial ecológico, isto é, se faz a pergunta a respeito de se e como os textos bíblicos revelam reconhecimentos dos antigos acerca de sua relação com o ambiente. Temos que nos dar conta de que se trata de textos pré-modernos, que podem, contudo, contribuir para a formação de uma consciência ecológica ou de uma ética ambiental.

Há uma série de textos bíblicos que podem ser “garimpados” numa leitura em perspectiva ecológica. Um deles, claro, é o relato da criação em Gênesis. Entender que o mundo criado resulta de atividade de intervenção, mas que essa intervenção deve ser limitada ou balanceada por momentos ou tempos de descanso ou de “graça”, para todos os elementos da Criação. Os tempos de pausa se destinam aos humanos, aos animais e à própria terra (Êxodo 23, 10-12). Deve haver tempos especiais de reestruturação de relações econômicas geradoras de relações de dependência, com remissão ou perdão de dívidas impagáveis e possibilidade de reinício de vida em liberdade (Êxodo 21, 2-11; Deuteronômio 15, 12-18). Aí transparece a importante noção de “gratuidade”, como se evidencia nas palavras (românticas) de Jesus quando sugere olhar os “lírios dos campos”.
Eu tenho insistido em trazer à memória um texto do livro de Deuteronômio (23, 12-15), no qual se estabelece a relação entre esgoto e santidade. Trata-se aí de um tema prosaico relativo às necessidades fisiológicas de toda pessoa. Recomenda-se que, em havendo a vida comunitária, as pessoas busquem lugares fora do acampamento para fazer suas necessidades, cavando buracos para tal. O detalhe interessante no texto, muitas vezes omitido nas traduções, é a recomendação de que, após “fazer o seu serviço”, a pessoa deve ser voltar e ver o resultado. Para mim, este termo “virar-se” ou “voltar-se” é significativo. Trata-se de reconhecer concretamente os resultados de sua ação no ambiente. Aí já se antecipa a noção de “conscientização”, que implica em dar-se conta dos resultados das ações ou das intervenções humanas no ambiente. O termo hebraico derivado do verbo shub remete em outros contextos para um processo de mudança de orientação, de conversão, de algo que, depois, em grego, é expresso pelo importante conceito de “metanoia”. O ser humano deve se dar conta dos resultados tantas vezes nefastos de sua intervenção no ambiente. Isso pode abrir a possibilidade de reorientação mais sábia e menos danosa de sua vida individual e coletiva, objetivando, assim, diminuir o peso da “pegada humana” sobre a Terra. Um acampamento higiênico é relacionado com a presença do Sagrado, de Deus. É um texto que liga, pois, santidade com esgoto, podendo ser potencializado para ações individuais e especialmente para ações de políticas públicas preventivas e possibilitadoras de qualidade de vida.


 

IHU On-Line – Que contribuição as religiões ou a espiritualidade em geral podem trazer para o debate e para novas práticas em torno do cuidado com a Criação?

Haroldo Reimer – A religião é parte integrante da vida cultural. Na chamada modernidade, a religião tende a ocupar um espaço periférico. Entre nós, vivemos antes um renascimento da religião e da religiosidade. Isso não necessariamente é positivo. Contudo, é fato que lideranças de várias expressões religiosas têm envidado esforços no sentido de fomentar a reflexão sobre a dimensão do cuidado com a Criação. Isso envolve o cuidado com o ambiente, mas também o cuidado com as pessoas. Pessoas, animais e terra devem ser pensados como elementos integrantes de uma mesma grande casa. Ecologia comporta dimensões que se estendem do micro ao macro. Com repercussão internacional, devem ser lembrados os esforços por meio de ações do Conselho Mundial de Igrejas. Mas existem muitas iniciativas locais, nas quais se estabelece ligação entre elementos da fé e da espiritualidade e o cuidado com o ambiente. De uma forma geral, nas religiões tem-se redescoberto a dimensão da corporeidade, superando dualismos seculares e evitando a projeção da noção de salvação para algum momento exclusivamente no futuro vindouro. Com isso, o olhar se volta para as realidades concretas da vida das pessoas e do ambiente.
Há também uma série de iniciativas por parte de ONGs no sentido de fazer experiências, por exemplo, do tipo de economia solidária. Aí, a dimensão da espiritualidade se reflete no meio econômico, que serve como um denominador comum na vida moderna. Em países da Europa, a busca por investimentos sustentáveis muitas vezes vem em decorrência de iniciativas ligadas ao ideário da fé.

IHU On-Line – Diversos analistas afirmam que a crise climática é, no fundo, uma crise ética, com graves implicações sociais. Como o senhor analisa as mudanças climáticas? Perdemos a nossa capacidade de “conviver”?

Haroldo Reimer – No chamado paradigma moderno, a natureza é fundamentalmente um reservatório infinito de recursos para a satisfação das necessidades e dos desejos dos homens, os quais se entendem numa caminhada incessante rumo ao futuro. Isso é revelador também de um paradigma ético, na medida em que indica o modo dominante da relação das pessoas com o ambiente. A percepção das crises ambientais e a conscientização acerca da finitude dos recursos conduzem gradativamente a um novo jeito de pensar, o qual também se concretiza em ações. Com isso, o modo de relacionamento, o ethos, passa por transformações. A necessidade de adaptação e um patamar mais elevado da relação com o ambiente vão formatando uma nova ética.

É difícil ter uma opinião unilateral sobre o tema das mudanças climáticas. Sem dúvida, predomina nos discursos a afirmação das causas antrópicas das mudanças climáticas. E essa tese, em grande medida, é acertada. A partir da Revolução Industrial, houve interferências dos humanos no ambiente em proporções nunca antes havidas, exatamente pela ausência das estruturas tecnológicas de intervenção. Exemplo disso é a curva estatística do número de espécies extintas na mesma proporção do crescimento da comunidade humana sobre o planeta. As emissões de materiais poluentes no ambiente se deram em proporções, em geral, acima das capacidades de absorção natural. O efeito estufa, a chuva ácida etc. são exemplos de resultados desse tipo de intervenção. O desmatamento maciço em certas regiões também provoca ou acelera mudanças no clima.
Contudo, nem todos os fenômenos climáticos podem ser atribuídos diretamente à ação humana sobre o ambiente. Há pesquisadores sérios que vêm mostrando que certas catástrofes naturais evidenciam uma dimensão cíclica. Exemplo disso são terremotos. Nesse sentido, a história humana precisa ser pensada dentro dos parâmetros da história natural. E aí, apesar da intervenção massiva nos últimos 200 anos, o ser humano é um fenômeno relativamente recente, cuja permanência pode também cessar em algum momento futuro.

As mudanças climáticas, com seus efeitos nefastos, geram muito sofrimento em muitos lugares do planeta. Há um forte impacto das mudanças climáticas sobre o meio ambiente, a saúde, a biodiversidade, ameaçando a segurança dos seres humanos. Apesar disso, creio que essas mudanças acabarão por aumentar a sensibilidade das pessoas para com as crises e as “dores” do planeta. Estas demandarão maior capacidade de adaptação, e a condição para isso é a sensibilidade para o ciclo maior da natureza. As dimensões das crises climáticas acabarão também por mostrar novamente a pequenez dos inventos humanos em face das potencialidades do mundo natural, retirando, talvez, em parte a arrogância humana por conta da confiança na tecnologia.
A necessidade de adaptação às novas condições climáticas pode ser um excelente treino, embora doloroso, para reaprender a dimensão do conviver.


 

IHU On-Line – Como podemos repensar uma nova relação economia/ecologia a partir de perspectivas bíblico-teológicas? É possível para o ser humano “crescer e se multiplicar” sem “dominar e sujeitar” a Criação?

Haroldo Reimer – A dominação e a exploração desenfreadas do ambiente não são só uma questão do aumento populacional. Têm muito a ver com o modo de organização da vida em coletividade e, claro, com o volume do consumo. Nesse sentido, a relação entre o consumo per capita nos Estados Unidos e na Índia tem diferença de algumas centenas de vezes. Isso é um elemento indicativo. O aumento populacional, contudo, não pode ser negligenciado nessa conta, pois, por meio da ação propagandística da grande mídia, acontece uma espécie de “democratização” ou internacionalização do modo de vida americano. E isso acaba por gerar demandas de produção e consumo que intervêm diretamente no ritmo de exploração do ambiente.

O mandato de “crescer e se multiplicar” da Bíblia é enunciado para dentro de um mundo no qual o ambiente constituía um desafio e uma ameaça. Hoje, ele precisa ser revisto, pois a relação se inverteu. O ser humano se tornou uma ameaça efetiva ao ambiente. Por isso, também no campo religioso é necessário conversar aberta e criticamente sobre reprodução humana. Essa é uma questão que não pode ser relegada simplesmente a ações voluntárias ou a políticas públicas sem a participação dos segmentos religiosos. O crescimento populacional aliado com a elevação dos padrões de consumo implica necessariamente em “dominar e sujeitar”. Aliás, este é o binômio bíblico mais apreciado pelo paradigma da modernidade técnico-científica. Omite-se quase por completo a existência de outro binômio no conjunto dos textos bíblicos que ressalta a dimensão do “cultivar e guardar”. “Cultivar” implica em interferir no ambiente natural; é sinônimo de trabalho. Biblicamente até expressa o trabalho duro, similar ao trabalho de um servo. A raiz verbal dos termos é igual. O termo “guardar” expressa plenamente a dimensão do que hoje chamaríamos de uma ética da responsabilidade na linha proposta por Hans Jonas. Implica em ações que buscam resguardar o ambiente e o ciclo da vida em suas dimensões ecossistêmicas, incluindo as gerações presentes e futuras. Esse é binômio que deve ser ressaltado em qualquer ética ambiental de matriz ou influência judaico-cristã.
Defender a vida é defender a vida também em sua dimensão ecossistêmica e não somente na dimensão individual. A crítica ao paradigma do crescimento ilimitado e desenfreado deve também ser realizada no âmbito do crescimento populacional.

IHU On-Line – Em seu livro Toda a Criação: Bíblia e Ecologia, o senhor aborda uma “espiritualidade ecológica” a partir dos Salmos. O que seria essa espiritualidade? Como vivê-la hoje?

Haroldo Reimer – O livro Toda a Criação: Bíblia e Ecologia é uma coletânea de artigos que fui escrevendo para diferentes periódicos nos últimos anos. Trata-se de uma espécie de “garimpagem” de textos bíblicos, inquirindo-os quanto à sua potencialidade para ajudar na promoção e na emergência de um paradigma ecológico. Por trás disso, está o reconhecimento de que a fé judaico-cristã, além de haver contribuído com vários elementos para a estruturação do paradigma moderno de caráter predatório, também contém elementos que ajudam a pensar a relação do ser humano com o ambiente no sentido ecológico, dentro de uma ética do cuidado e da responsabilidade.

Dentro do paradigma da modernidade, que ainda marca nosso modo de ser dominante, pode-se basicamente afirmar o seguinte enunciado como representativo das opiniões compartilhadas na modernidade: a terra é uma grandeza a ser dominada e explorada em favor dos seres humanos. Esse enunciado necessita de uma completa re-visão e deveria ser expresso nos seguintes termos: a terra é a casa comum de todos os seres vivos e do próprio Deus, e cada qual tem responsabilidades de cuidado. Repensar e (re) viver esses conceitos é um grande desafio que deve ser realizado no conjunto de ações educativas de ordem inter ou transdisciplinar. As religiões, a fé, a espiritualidade podem e devem dar a sua contribuição, e pode-se dizer que têm (ainda) muito a dar. No meu entender, uma das principais contribuições reside na redescoberta de elementos de sabedoria e espiritualidade no sentido da percepção das multiformes ligações e necessidades de religação do ser humano com a Criação e com o próprio Criador. O novo que ainda está em processo de construção inclui e pressupõe um novo paradigma para vivermos como criação de Deus, cuidando-nos mutuamente. Aí se trata de uma espiritualidade.

Os Salmos bíblicos evidenciam grande diversidade de temas para a oração e a contemplação. Por exemplo, o Salmo 104 pode ser considerado, sob o prisma de seu valor poético, como um dos mais belos do Saltério. Ele constitui um hino à natureza, reprisando elementos que se encontram nos relatos de criação no livro de Gênesis. A linguagem está vazada em linhas estritamente precisas e traçadas com sobriedade. Em termos de conteúdo, é de fato o Salmo que melhor expressa a dimensão de Yahveh como o Deus criador de toda a Criação. De uma maneira bela e extremamente poética, evidencia-se a concepção de uma inter-relação entre Deus e toda a criação. Aqui se manifesta a consciência dos antigos israelitas acerca da profunda relação vital de dependência da humanidade e de toda a Criação em relação a um poder originário, identificado e celebrado como o próprio Deus de Israel. A “teologia da criação”, descrita neste Salmo, possivelmente apresenta traços ecumênicos, na medida em que o Salmo toma de empréstimo elementos do hino ao sol do rei egípcio Akhenaton, do século XIV a.C., devidamente retrabalhados a partir de uma perspectiva da fé hebraica em Yahveh, como sendo o único Deus poderoso.
Viver tal espiritualidade de ligação é uma demanda no tempo atual. Há muitas formas de experimentar isso. Um passo necessário é o exercício de sensibilidade, que depende do nível de consciência de cada pessoa. Trata-se também de perceber em que medida eu, como indivíduo integrante de um todo maior, contribuo para aumentar ou diminuir crises ambientais; claro, aquelas de reconhecidas causas antrópicas. Aí a constatação do apóstolo Paulo em sua Carta aos Romanos pode servir de alerta: “Toda a Criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora” (Romanos 8, 23).
Na espiritualidade, trata-se também de se perceber a si mesmo como integrante de uma rede maior de relações de produção e consumo. A própria necessidade de sobrevivência impõe ininterrupta intervenção sobre o ambiente. Os humanos são seres de combustão. Alimentam-se de outras formas de vida para sua própria manutenção. As intervenções, contudo, podem ser diferentemente moduladas. A “pegada humana” sobre o ambiente pode ser mais pesada ou mais leve. O nível do impacto depende do modo como se pisa! Depende do modo como a pessoa concebe a sua relação com o seu entorno ambiental. Há formas mais predatórias de organizar a vida em sociedade e há formas menos predatórias. No fundo, depende do exercício de sabedoria e de espiritualidade. Há sempre um componente de espiritualidade no prato de comida que eu como, na escolha dos ingredientes. As pessoas vegetarianas, ou as expressões religiosas que abdicam do consumo de alimentos que implicam em tirar a vida de outros seres, costumam ter uma reflexão espiritual mais apurada com relação à sua forma de consumo dos bens naturais. Aí há o que aprender.

IHU On-Line – A campanha 10:10:10, unida à proposta do “Tempo para a Criação” busca transformar o dia 10 de outubro de 2010 na data com o maior número de ações positivas contra as mudanças climáticas da história. Que figuras históricas – bíblicas ou não – podem nos servir de exemplo como pessoas que colocaram em prática “formas de vida sustentáveis” em seu cotidiano e em sua vida de fé?

Haroldo Reimer – Toda campanha que contemple iniciativas teóricas ou práticas em favor de um ambiente saudável são bem-vindas. Essa proposta de visibilizar ações no dia 10 de outubro de 2010 pode ser uma excelente forma de exercício de espiritualidade ecológica. Como exercício, será algo efêmero; durará o tempo do dia, se no dia seguinte não começar a se converter em hábito.
É difícil encontrar figuras bíblicas que colocaram em prática “formas de vida sustentáveis”. Noé é uma figura ambígua (Gênesis, 6 a 9). Recolhe os animais na arca, preservando espécies, mas silencia o todo tempo sobre a crise vindoura. Sempre achei legal o entendimento entre Abraão e Ló quando perceberam que o espaço natural é pequeno demais para ambos viverem; por isso decidiram dividir-se, encontrando cada qual seu novo espaço. A prevenção da concentração é uma forma de pensar ecologicamente.

Há um texto que sempre me ocorre como exemplo de pensamento ecológico e de sustentabilidade. Em Êxodo 23, 10-11, é proposto que ao homem é legitimamente concedido cultivar a terra e recolher os seus frutos. Aí se trata da atividade da produção. Mas o ritmo produtivo e explorador deve ser temporalmente limitado a seis anos, devendo o sétimo ano ser um tempo de “descanso sabático”, isto é, de interrupção deliberada do ritmo produtivo. O texto indica três finalidades: a) primeiro, é dito que a própria terra deve poder descansar. Isso é estranho ao nosso modo de pensar, pois estamos acostumados com a ideia de que a terra deve somente servir para a satisfação de nossas necessidades (e desejos); b) em segundo lugar, os pobres devem poder colher o que nascer por conta própria no sétimo ano, tendo uma provisão extra além de sua limitada alimentação usual; c) em terceiro, indica-se que os animais do campo devem poder comer do que sobrar. Explicitamente se inclui aí os animais do campo dentro de um ciclo ecológico. Três seres ameaçados em sua existência devem ser contemplados no modo de se organizar a vida em sociedade: a terra, os pobres e os animais. Isso é o que se pode chamar de uma “visão ecológica” da vida. Os interesses são limitados pela integridade da vida e da Criação.

Há certamente figuras históricas que são ícones de vida sustentável. Francisco de Assis  é uma delas. Mahatma Gandhi  é outra. Mas não só essas figuras-ícones devem ser tomadas como exemplos. Há muitas pessoas anônimas que dão cotidianamente sinais e exemplos de formas de vida e de produção sustentável. Cresce, por exemplo, a rede de produtores agroecológicos. Na medida em que as redes de comunicação colocarem em evidência esses sinais e essas figuras, o paradigma ecológico pode experimentar um efeito quântico. Na quase absoluta fragmentação das relações na modernidade, a ação do indivíduo pode ser de importância fundamental. Há que ousar viver melhor, e o melhor nem sempre é o maior.

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