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Márcia Junges
Origens – Nasci no Paraná, em Ribeirão Claro, cidade pequena e linda, no Norte do estado. É um local realmente belo, cercado por montanhas, e talvez um dos poucos remanescentes sem poluição no Paranapanema. Venho de uma família de imigrantes, tanto pelo lado materno, quanto paterno. Portanto, são origens muito humildes, de bastante trabalho. Meu pai, Oswaldo Giacóia, de origem italiana, tinha onze irmãos. Minha mãe, Ana Sogayar, de origem libanesa, também descende de uma família numerosa. Não restaram vínculos com as famílias de origem de seus países. Por méritos próprios, meu pai conseguiu cursar a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, que hoje é a Universidade de São Paulo - USP, algo espantoso para a época, já que apenas estudantes oriundos de famílias de tradição conseguiam ingressar nessa instituição.
Direito e Filosofia - Vim para São Paulo com 14 anos. Meu programa estava mais ou menos “traçado”. Eu deveria cursar Direito, e seguir os passos do meu pai. Tenho um irmão desembargador, que trabalha no Tribunal de Justiça de São Paulo, e outro que é procurador de justiça do estado do Paraná. Assim, toda nossa família está ligada ao mundo jurídico.
Naquela época, ainda existia o curso clássico, que dava, sobretudo, uma formação sólida em humanidades. Foi nessa ocasião que ocorreu meu primeiro contato com a Filosofia. Para mim, foi uma espécie de iluminação. Por outro lado, isso causou um problema grave dentro da família, pois eu havia sido “destinado” a fazer Direito. Como, então, poderia mudar completamente de rumo? Nessa época, meu pai já havia morrido, e minha mãe ficou bastante preocupada comigo. “O que você vai fazer estudando Filosofia?”, questionou-me. Ela foi para São Paulo conversar com minha professora de Filosofia para descobrir o que ela havia feito comigo. Eu disse, então, que minha vontade era estudar Filosofia, e não Direito. Ela concordou, dizendo que a Filosofia eu cursaria para mim, enquanto o Direito eu deveria cursar “para ela”. Seu raciocínio era que, se algum dia eu precisasse me sustentar na vida, o Direito garantiria isso. Então, cursei Direito na USP e Filosofia na PUC-SP.
O período em que estudei na PUC-SP era aquele sombrio, da ditadura militar. Os professores que haviam sido cassados e exilados voltaram direto para esta universidade, sob a proteção de Dom Evaristo Arns . Como não podiam lecionar em universidades públicas, foram acolhidos pelas comunitárias, e foi assim que a PUC-SP abrigou intelectuais do porte de Florestan Fernandes , Celso Furtado , José Arthur Gianotti e Maurício Tragtenberg . Foi um período áureo da Filosofia naquela instituição, e eu, pessoalmente, aproveitei esse momento para construir a minha formação filosófica.
Opção de vida - Advoguei por seis anos. Essa foi a fase em que mais ganhei dinheiro em toda minha vida. Durante um período em que estava sendo construída a linha Leste-Oeste do metrô de São Paulo, trabalhei junto de um amigo do meu irmão. Esse amigo é dono até hoje de um escritório de direito imobiliário. Naquela ocasião, nos concentramos nos trabalhos de desapropriações legais da linha do metrô. Ao mesmo tempo, eu tinha claro que o Direito era, para mim, em última instância, ética e filosofia do direito. Estudava os códigos, sabia operá-los mas não era o que me interessava.
Minha primeira oportunidade em Filosofia surgiu na PUC-SP, para assumir um contrato de 40 horas como assistente da minha professora, Iray Carone , por quem tenho profundo respeito e gratidão. Comecei a fazer Filosofia e nunca mais parei. Alguns meses antes de me casar, disse à minha esposa que não trabalharia mais como advogado. Nós estávamos muito bem financeiramente, e foi então que decidi me tornar professor.
Transdisciplinaridade - Mesmo no curso de Direito, eu usava todos os espaços da grade curricular para trabalhar no campo transdisciplinar com a Filosofia, e particularmente com a criminologia, com a psiquiatria forense e a medicina legal. Eram os campos que mais me interessavam, tanto que meu primeiro projeto de trabalho acadêmico foi, justamente, na área de criminologia. Àquela época havia acabado de ser lançado o livro de Michel Foucault , Vigiar e punir. Eu tinha intenção de trabalhar com direito carcerário. Fiz isso durante seis meses, mas circunstâncias totalmente alheias à minha vontade pessoal levaram-me a escrever uma tese estritamente acadêmica sobre um autor que hoje é pouco trabalhado no Brasil, Augusto Comte , e sua física social. No Rio Grande do Sul, curiosamente, sua doutrina é bem mais conhecida, e há inclusive uma capela positivista, a qual visitei com o professor Nelson Boeira , da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Como se percebe, são temas confluentes e uma tentativa de fazer uma reflexão sobre a sociologia, antigamente chamada de física social, e que foi progressivamente se encaminhando para uma reflexão sobre a ética que vem, inclusive, da minha opção cristã. Pensei, então, que fosse o caso de pensar a sério o desafio que o pensamento de Friedrich Nietzsche representava e apresenta para o ethos e, sobretudo, para a consciência cristã.
Opção religiosa – Evito dizer em público qual é a minha opção religiosa justamente para evitar o espanto que causa um cristão estudar Nietzsche. Há certas trilhas batidas que precisam ser deixadas de lado. Eu respondo a isso com meu trabalho. Não preciso ficar falando o tempo todo sobre minha opção e crença. Penso que isso é até demagógico. Percebo que as pessoas que tem um discernimento um pouco maior, independentemente do fato de dizermos, ou não, se acreditamos em Deus, perguntam sobre questões que são essenciais, sobre o seu próprio compromisso com os direitos humanos, por exemplo. Um debate, de fato, autêntico sobre o humanismo e princípios universais, inclusive no campo da religião, passa hoje pelo entendimento sobre aquilo que ainda somos capazes de resgatar em termos de valores que tenham alguma pretensão de validade universal, mesmo que a isso não seja dado o nome de religião ou adesão a determinada confissão religiosa. Como mencionei em minha conferência no XI Simpósio Internacional IHU – o (des)governo biopolítico da vida humana, não é à toa que, logo após escrever O futuro da natureza humana, Habermas foi discutir com Joseph Ratzinger. As questões, portanto, confluem. E é essa confluência que procuro trabalhar.
Política carcomida – Lastimo profundamente o cenário político brasileiro. Regredimos muito em termos políticos. Lembro-me do entusiasmo que se apossou de nós quando Lula foi eleito. Foi um entusiasmo genuíno, de uma geração que viveu 30 anos sob a ditadura. Percebo que não há nada de novo no cenário de discussão da política contemporânea. Todas as coisas são “sobrevividas”. Não há nenhuma opção que efetivamente aponte para uma perspectiva de futuro. Não vejo isso na oposição nem na situação. Por incrível que pareça, as coisas que aparentemente são mais atraentes vem de um campo completamente arcaico e que não está delineado no debate político partidário, que é o campo do messiânico. Esse é, de fato, o campo originário e que não está colocado na discussão política. Eu, pelo menos, não vejo isso. Não consigo avistar algo realmente revolucionário, no sentido de alterar profundamente as estruturas carcomidas das relações políticas.
Pesquisas atuais – No momento, estou conduzindo um estudo com um grupo de pesquisadores da Unicamp a respeito do tema da violência e direito. Para isso, valho-me de Agamben , uma referência interessante sobretudo para a questão essencial entre a violência, o direito e a cultura em geral. Por isso, também o campo religioso interessa-me sobremaneira, em especial no que tange à questão do sacrifício.
Esportes – Gosto muito de futebol. Torço para o Palmeiras, e aqui devo um tributo aos gaúchos, já que o Felipão está no Parque Antártida mais uma vez. Espero que ele consiga restaurar esse time, que está muito ruim. Todas as vezes que estou em São Paulo frequento uma academia, junto da minha esposa Sirlei, que é dentista. Acordamos bem cedo e vamos fazer exercícios físicos. Há algum tempo gostava de musculação, mas no momento tenho feito mais exercícios aeróbicos. Como viajo bastante, a frequência à academia não é assídua.
Cinema e música - Aprecio cinema e música erudita do período clássico. Não gosto de música experimental, e inclusive tenho certa dificuldade de entendê-la. Como não conheço teoria musical, talvez meu ouvido não esteja suficientemente cultivado para entender as vanguardas. O filme que mais me chamou a atenção ultimamente foi O anticristo, uma produção pesadíssima de se assistir, mas necessária. O cinema brasileiro mais recente também é de qualidade.
Família – Além da academia, Sirlei e eu compartilhamos o gosto pela leitura. No momento, acredito que ela esteja bastante interessada em Heidegger , bem mais do que em Nietzsche. Somos casados há 30 anos. Temos uma filha, a Rachel Cristina, que está concluindo a residência em psiquiatria na USP.
Instituto Humanitas Unisinos – A iniciativa do IHU é algo digno do mais profundo respeito. Admiro a Unisinos por várias razões, mas sobretudo por seu Instituto. O IHU é central e faz toda a diferença. Não conheço uma experiência igual no Brasil. Vi algo semelhante na década de 1970, na PUC-SP. Mas de longe não tinha esse contorno e consistência. Tenho uma admiração substantiva pelo trabalho que é feito aqui, não só porque ele se orienta na direção de valores que penso cardinais para nós hoje, mas porque há uma produção que se desdobra em várias linhas, com publicações e realização de eventos como esse Simpósio. Há um abastecimento de substância espiritual para a universidade, partindo do IHU. Além disso, trata-se de um campo não dogmático.
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>> Confira outras entrevistas concedidas por Oswaldo Giacóia à IHU On-Line.
* Nietzsche, o pensamento trágico e a afirmação da totalidade da existência. Edição número 330, revista IHU On-Line, de 24-05-2010;
* Superar a condição humana, uma fantasia antiga. Edição número 343, revista IHU On-Line, de 21-09-2010.